Os livros bons são nossos amigos. Trago sempre algum comigo, e vou lendo quando (e quanto) posso. O último foi a obra «O Fator Humano» de Graham Greene, da «coleção Essencial», editado pela «Leya» e pela «RTP» (10 euros).
É um livro (escrito em 1978) sobre espionagem e contra-espionagem, tema que não é da minha preferência, mas não há temas maus para escritores de talento. De tal modo que Greene «desenha» um protagonista – Maurice Castle – muito interessante, pela sua serenidade e reflexão, pela vontade inquebrantável de ajudar o povo da mulher (negra) por quem se apaixonou (ele é branco, de Inglaterra), mas sobretudo pelo amor incondicional que lhe devota, e em que é correspondido, e que é imorredouro, mesmo quando, por fim, tem que fugir para Moscovo. Chegado a Moscovo, Castle, que não tem quaisquer ilusões sobre o comunismo, desespera pelo reencontro com Sarah, que tem dificuldade em ir ter com ele, uma vez que não o fará sem levar o filho, Sam, a criança que aquela mulher trazia no ventre quando se apaixonaram um pelo outro, um menino (negro) de quem ele cuida com extremoso zelo de pai. Quando Castle, cheio de dúvidas sobre se Sarah o pode considerar um traidor, no momento em que lhe revela a sua actividade dupla, recebe dela o prémio de considerar que o «país» deles são ela, ele e Sam, e que ele nunca traiu esse «país», nem, subentendo eu, o amor que os une e os valores que partilham.
Espiões e detectives aparecem em muitos livros e filmes como consumidores de álcool. Neste livro são uísque e vinho do Porto. O autor do livro talvez gostasse de um e do outro. No caso do nosso vinho mais famoso, ele aparece citado 18 vezes (se não me enganei). Achei curiosa uma tão grande «publicidade» e dei-me ao trabalho de contar as referências, coisa em que este texto há-de ser, por certo, original. Ora veja-se:
- Davis (um jovem colega de Castle, pessoa de ideais e bondade, muito apreciado por Sam), «era viciado em vinho do Porto», pg. 22;
- «Sir John Hargreaves fez circular o porto.», pg. 47; nessa mesma página quatro linhas depois: «Beberam rapidamente o porto»…;
- Davis «gosta do porto vintage.», pg. 52;
- Quando a própria organização planeia matar Davis, para saber se é ele o agente duplo de que suspeitam, entre os superiores, pergunta-se: «Alguém sabe se ele bebe muito? - Falou em porto, não falou?»…, pg. 55;
- «um cálice de porto a mais», admite Castle, em pensamento, quando Davis estava aborrecido. Pg. 66;
- Davis sempre sonhou ser enviado para Lourenço Marques (actual Maputo, Moçambique), onde, pergunta ele a Castle, «O porto deve ser bom, não achas? Presumo que até os revolucionários bebem porto.», pg. 69. Três linhas à frente, outro pormenor de interesse, ainda por Davis: «Gosto da comida portuguesa»;
- «Não estou preocupado com o preço da comida, é o preço do porto de qualidade que me deprime», outra vez Davis, em diálogo com Castle, pg.71;
- «O Davis gasta muito em porto,» refere-se em diálogo de superiores da organização, na pg. 110;
- …«perigo do excesso de porto.» alvitrado como razão da morte para camuflar o assassínio projectado de Davis. Pg. 112;
- «No fim do jantar… Muller [um superior, agente racista da organização, inimigo frio e cruel que, em tempos, ofendera a relação de Castle e Sarah, e veio com suspeição dissimulada jantar a casa deles] aceitou um cálice de porto.», pg. 141. Mais adiante na mesma página «- Não gosta de porto? – perguntou Muller. – Costumávamos arranjar um porto excelente em Lourenço Marques»;
- Davis em diálogo com Castle: …«disse-lhe [a Percival, médico, agente da organização que planeou e executou o seu assassínio] que ia deixar de beber porto.» pg 170;
- Castle diz que «Davis não se importava com dinheiro. Só precisava de ter o suficiente para apostar em cavalos e servir-se de um bom porto.», pg 269;
- «-Não bebo porto – disse Sarah», em encontro num restaurante com Percival, que a convocara para a pressionar sobre o fugitivo Castel, pg311;
- Na sequência, Percival, responde a Sarah : … «a que propósito vem isso? Decidiremos qual o porto quando chegarmos ao queijo.», pg 312.
Para além da sua qualidade e do seu interesse, este livro tem outros motivos curiosos, que deixo de lado, para não aumentar a extensão do texto.
Só uma última nota para referir que o vinho do Porto é referido em muitas obras literárias de vulto, obras que, em Portugal, nunca terão funcionado como publicidade porque os portugueses lêem pouco. Lêem pouco, mas bebem muito, infelizmente.
Mas há quem leia muito noutras sociedades, que não a portuguesa. E ainda bem.
José Batista d’Ascenção