segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Rotundidades rodoviárias

Imagem obtida via Google
Quem viaja por Portugal de carro, de Norte a Sul, de Oriente a Ocidente, não pode deixar de notar (ou de impressionar-se com, como é o meu caso) a elevada frequência de rotundas, com dimensões entre o minúsculo e o exagerado (para mim, megalómano, nalguns casos).
Não sendo eu muito viajado, não deixo, no entanto, de constatar que o fenómeno é particularmente nosso. Enquanto condutor que não ultrapassa dezena e meia de milhares de quilómetros por ano, se tanto (o que, em minha opinião, já é muito), e contando-me entre aqueles que não têm prazer em conduzir, não vejo vantagens de tantos redondos na fluidez do trânsito nem na agradabilidade da condução. E parece-me que, se não fosse assim, outros haviam de reproduzir e multiplicar o nosso «modelo», o que não acontece. De resto, ideal seria reduzir substancialmente o número de automóveis nas estradas, o que só seria possível se tivéssemos uma rede mais funcional de transportes públicos, com destaque para os caminhos de ferro, que deixámos degradar criminosamente: no serviço prestado às pessoas, na economia, na conservação do património material e histórico (ainda temos azulejaria de grande beleza, e não apenas em casos notáveis, como a estação de S. Bento, no Porto, ou a estação de Aveiro) e no respeito pelo ambiente.
Afigura-se-me que as rotundas servem como espaços relvados preservados do pisoteio (entre nós, a relva é mais para ver, e não tanto para usufruir) e também como espaços exteriores de exibição de peças escultóricas diversas, várias das quais, alguns como eu preferiam que não tivessem sido expostas no espaço público, por não revelarem qualidade, chegando mesmo a ferir os olhos e a sensibilidade. Naturalmente, temos que respeitar quem gosta, ainda que os apreciadores se limitem a quem executou e ou ganhou de algum modo com tais obras.
Há, porém, que considerar a sinistralidade. Se tivéssemos menos rotundas havia mais acidentes? Não sei responder. Mas sei que os portugueses conduzem irresponsavelmente, em termos gerais, e têm tendência para se enfurecer ao volante, o que deve ter significado a merecer esclarecimento.
Pela parte que me toca, preferia mais educação (rodoviária), mais prudência, automóveis em boas condições de circulação, polícia de trânsito que ajude (e que inspire confiança, em vez de se dedicar à «caça à multa»), estradas sem buracos, boa sinalização (sendo que a que temos me parece bastante satisfatória) e… menos rotundas.
Mas quem pode convencer os urbanistas, os desenhadores de estradas e os autarcas?

José Batista d’Ascenção

Rotundidades corporais

Fonte da imagem: aqui.
Conto entre os familiares, os amigos mais queridos e outras pessoas que muito estimo alguns gordinhos que não imagino de outra forma, sob pena de perderem a identidade, a graça e o o encanto. São assim desde sempre e parece-me que não podiam ser de outra forma. E não, essas não são pessoas doentes. Há-as, com grande sofrimento, mas não essas.
É notório que as barrigas dos portugueses, especialmente os das classes (mais) baixas estão a pecar por excesso de rotundidade, por vezes até ao grotesco, em consequência de desequilíbrios alimentares, resultado sobretudo de ignorância, mas também de limitação económica que impede o consumo de alimentos de melhor qualidade e… mais caros.
Claro quer a obesidade não é um problema específico dos portugueses, longe disso. Hoje, no mundo, o número de pessoas com excesso de peso suplanta já o de pessoas com fome quantitativa extrema. Sabemos que a obesidade é caminho para outras perturbações de saúde, como as doenças cardiovasculares (hipertensão, aterosclerose, avecês, enfartes…) e a diabetes de tipo II. Em pessoas de quaisquer idades, mas sobretudo em jovens, a gordura patológica implica ainda forte perturbação da auto-estima, dificuldades de locomoção e problemas de coluna.
Uma ida à praia ou a passagem por salas de espera de centros de saúde bastam, talvez, para se ter uma ideia mais aguda da falta de saúde alimentar no nosso país.
Esta matéria deve merecer a atenção e a aplicação de várias entidades, enquanto problema muito sério a ir… mitigando. Informação não falta, mas é preciso fazê-la chegar ao entendimento (para alterar os comportamentos) das pessoas comuns. Instituições de apoio e segurança social, sistema de saúde, escolas e comunicação social, mormente a pública, têm muito a fazer. No caso das escolas, quanto a mim, a alimentação racional devia ter maior relevo na disciplina de ciências naturais, desde o sétimo ao nono ano de escolaridade. A não ser assim, faremos (estamos a fazer…) das nossas crianças adultos doentes, e manteremos as nossas terceira e quarta idades dependentes da «farmácia» e dos meios auxiliares de locomoção, tornando o último quarto da vida da generalidade dos portugueses um calvário de dores e um rosário de lamentações, já não falando na despesa.
Cabe-nos fazer diferente e melhor. E não se percebe que não nos apliquemos mais efectivamente nessa imprescindível e inadiável tarefa.

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

«Ussu de Bissau» - o segundo livro de Amadú Dafé

Aos jovens escritores de língua portuguesa, o apoio que merecem.


Há dois meses e pouco, numa altura em que estava imerso na «correcção» de exames da primeira fase, uma jovem amiga, docente com passagem por vários países de África, que admiro e conheço desde a infância, mostrou interesse franco em que fosse ao Porto assistir ao lançamento da obra em epígrafe. Acabei por não (poder) ir, mas fiquei curioso. O livrinho (de cem páginas) entrou para a minha lista de leituras. Quando chegou a vez li-o num rápido. Não apenas porque é pequeno, mas porque, iniciado, já não parei até concluir.
O autor é um jovem guineense que veio para Portugal há meia dúzia de anos, onde trabalhou para fazer formação superior, tendo-se licenciado pela Faculdade de Direito de Lisboa e encontrando-se a fazer um mestrado na área da contabilidade pela Universidade de Aveiro. Com parca bibliografia, que tem a vida toda para aumentar, como se deseja (o outro livro chama-se «Magarias», foi publicado em 2017 e não está disponível no mercado), foi primeiro classificado em dois prémios literários pelo Centro Cultural Brasil - Guiné Bissau, na categoria de conto (em 2015 e em 2017) e em 20112 venceu o «Prémio Literário Internacional, Conto Infantil – Matilde Rosa Araújo, organizado pela Câmara Municipal da Trofa».
Amadú Dafé tem uma dedicação notória à língua portuguesa, que trata bem e de que a lusofonia sai enriquecida. Para palavras e expressões crioulas, o livro apresenta um glossário na abertura, antes do prefácio, algumas delas muito curiosas e belas, como por exemplo «fuska-fuska» (que eu transporto para a nossa esquecida forma «lusco-fusco»), mas que não contempla todas as que são usadas no livro (como «sessos», «boré»…), parte das vezes por não ser necessário. Expressões construídas com “português corrente” também muito expressivas são, por exemplo, «passarinha chorina» aplicada aos prantos da mãe de Ussu ou «eu nunca escangalhei nada de ninguém», referindo-se à ausência de maldade do protagonista ou «toda a minha família sustou» ou «raios trovejadores […] com seus faíscos» ou «antes do sol romper a selha», ou ainda: «assumir os timões da minha vida», «palavras mélicas», «roupas bandarilhadas nos corpos magros», «aventura pernã», etc.. A poesia, a candura e a ternura estão presentes em períodos como «corria […] em perseguição à lua e, na minha fantasia, ela vinha atrás de mim no regresso. Parava quando eu parava, caminhava devagar quando eu assim caminhava.» E o sofrimento e o medo expressos em boa literatura:  ...«o silêncio caiu outra vez  encorpando o espaço.» Há também a palavra pensada, reflectida e condensada: «As causas de determinados efeitos são sempre efeitos de outras causas.» E as lições de boa memória: «ao cobarde ninguém pergunta se acordou bem, muito menos se está melhor». Por fim, o conhecimento da sociedade humana: «A pressão social prefere a farsa a sinceridade. […] Desde sempre e provavelmente para sempre». Antes disso, a consciência da vantagem em aproveitar os aspectos positivos da desgraça e a firme determinação de seguir em frente: o «Senegal ensinou-me a ver o futuro, a desejá-lo, a organizar tudo para que seja possível […] e nunca desisti dos meus sonhos.»
O percurso de «Ussu de Bissau» desenrola-se por dezanove capítulos curtos, titulados por uma palavra simples, de significado claro e forte, em que o sofrimento atroz de uma criança, sem direito aos mais elementares direitos, e sujeita a interesses ignóbeis, à maldade e intenções baixas dos que estão próximo ou dos que estão longe, de pele negra ou branca, usando ou não a religião, não mata nessa criança – «Ussu de Bissau» - a vontade de viver.
O livro é um apelo à reflexão «sobre as mentalidades que toleram a existência de crianças talibés e outros maus tratos a menores». Talibés são rapazes entre os 3 e os 15 anos confiados a um mestre corânico sob pretexto de educação religiosa islâmica, forçados à mendicidade e submetidos a privação, exploração e tortura, violando as disposições do próprio Alcorão. A narrativa tem como como pano de fundo o que se passa «na África Ocidental, em particular entre o Senegal, Gâmbia, Guiné-Conacri, Guiné-Bissau e Mali».
O mundo precisa destes contributos.
E de boa literatura.
Parabéns ao autor.

José Batista d’Ascenção

domingo, 11 de agosto de 2019

Migrações e emigração – um fado dos portugueses

Notas breves, tendo como referência o interior da Beira Baixa na segunda metade do século XX.
«A emigração é decerto um mal.
Porque aqueles que [emigram] mostram ser, por essa resolução, os mais enérgicos e os mais rigidamente decididos; e […] é um prejuízo perder […] vontades firmes e […] braços viris.
Porque a emigração entre nós […] não é […] a transbordação de uma população que sobra, é a fuga de uma população que sofre;
Porque […] é a miséria de um país esterilizado que expulsa, sacode e instiga a emigrar, a procurar longe o pão.» (1)

Muitas páginas de excelentes obras de escritores notáveis aborda(ra)m o tema das migrações sobre todas as perspectivas com interesse. Mas o assunto continua dramaticamente actual e nem são portugueses, no tempo presente, as vítimas mais chocantes - com o devido respeito pelos que recentemente fugiram da Venezuela… Para tantos, em tantas zonas do mundo, a fuga desesperada à miséria, à fome e aos horrores da guerra, a morte colhe-os implacavelmente antes de «chocarem» com muros que não podem atravessar ou de alcançarem os portos de onde são repelidos. Tal é o horror do que se passa, que o Mediterrâneo se tornou hoje um cemitério de pessoas em fuga, a quem é apagada a existência pela acção ou pela negligência dos poderes do mundo, explorando o medo, que instigam, das populações dos países de destino. Não é sobre eles este texto, que se limita a um breve apontamento sobre migrações e emigração de portugueses, sobretudo da que se chamou zona do pinhal da Beira Baixa, durante a segunda metade do século XX, tal como a conheci.
No interior do país, embotado e asfixiado pela ditadura salazarista, as condições de vida dos populares eram tão miseráveis e a fome tão presente que os que tinham saúde, força física e ânimo fugiam em busca de pão, quase sempre com o fito de amealhar para voltar à terra onde nasceram. Das Beiras para Lisboa, para além de homens válidos, à procura de «empregos» de baixa condição, compatíveis com a sua falta de habilitações e de experiência fora das tarefas rurais, na agricultura e na floresta, também eram levadas raparigas que iam «servir» em casas de gente de maiores posses. O movimento para a cidade foi-se acentuando e viria a contribuir para a proliferação dos bairros de lata na capital. Outros movimentos com expressão, sobretudo da Beira Baixa para o Alentejo, eram os das ceifas, restringidos a homens que iam cortar o trigo do «celeiro de Portugal», como Salazar imaginou a planura alentejana. Um erro de governante, insuficiente para matar a fome dos portugueses, desde logo dos alentejanos, sem atenuar a miséria destes e dos «ratinhos» beirões (nome depreciativo atribuído pelos alentejanos aos ceifeiros provenientes das Beiras), trazidos em «carreiras» para o trabalho sazonal da ceifa e levados de volta às suas origens finda a época, sob a canícula e aridez do raso a perder de vista. Homens e mulheres, rapazes e raparigas, partiam ainda da pobreza do interior das Beiras para as mondas, para o amanho das vinhas e para as vindimas, no Ribatejo, ou para a apanha da azeitona, mais a nordeste daquela província e nas proximidades de Castelo Branco. Eram sempre trabalhos de curta duração (entre três semanas a mês e meio) e de magro provento, a que os pobres se obrigavam, por necessidade.
Outros houve que se aventuraram para fora do país, em jornadas temerárias, «a salto», sob a mão ávida de «passadores». Às motivações de necessidade, na década de sessenta, juntava-se a perspectiva de os jovens rapazes fugirem à guerra colonial, mesmo ficando depois impedidos de regressar ao país. Nessa década, a França foi destino comum para muitos portugueses, de todas as regiões do país. A Venezuela, na América do Sul, foi outro destino, por exemplo a partir da Beira Litoral, mas não para os naturais da zona do pinhal da Beira Interior. Desta zona os fluxos dirigiam-se para a Europa, com a França à cabeça, mas também para outros países, como o Luxemburgo, a Alemanha, a Suíça ou a Inglaterra. Houve quem tivesse emigrado para as então colónias portuguesas em África, principalmente para Angola e Moçambique. Dos Açores e da Madeira, muitos ilhéus tentavam escapar à miséria emigrando para os Estados Unidos, um destino não preferencial dos beirões. A emigração para o estrangeiro começou pelos homens, muitos dos quais vieram buscar as mulheres e, por vezes, os filhos.
De comum, os emigrantes portugueses partiam fixos no regresso às origens. Muitos porém, viram o destino trocar-lhes as voltas, porque os descendentes se adaptaram aos locais onde passaram a meninice e a juventude ou onde nasceram. E foram permanecendo. Mas gostavam de fazer casas em Portugal, mesmo que só para passarem as férias, e assim renovaram o parque habitacional do país, ainda que sujeitos à crítica não sem alguma inveja de alguma intelligentsia indígena porque eram casas do tipo maison ou à americana, com bandeiras de Portugal e dos EUA expostas alegremente. Outro contributo que deram ao país, durante os alvores da democracia, em que os gastos suplantavam a produção, foi suporte financeiro, a retardar o caminho ameaçador na direcção da bancarrota.
Hoje, em muitas regiões do país, monumentos escultóricos testemunham a determinação heróica dos emigrantes portugueses. O homem a pé, de mala na mão, é um ícone comum a muitos deles.
O país deve-lhes muito. Estas linhas são uma pequenina homenagem.

José Batista d’Ascenção

(1) Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão (1871). «As Farpas». Coordenação de Maria Filomena Mónica. Princípia Editora, Lda. Cascais. 4ª edição – Abril de 2013. Pg. 312.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

A «gestão» da floresta em Portugal, negócios lucrativos à parte: deixar crescer, deixar arder, deixar morrer.

Uma vez, no rio Vez, um eucalipto cresceu, cresceu...
Principalmente a norte do Tejo, plantações monoespecíficas de eucaliptos (floresta é outra coisa…) alastram, quer pela superfície dos terrenos incultos, até às habitações, quer nas florestas de montanha, permeando e fazendo encolher a que antes fora a maior mancha contínua de pinhal bravo (espécie Pinus pinaster) da Europa. Felizmente, temos (ainda) alguns trechos de matas naturais com o estatuto de áreas protegidas, mas carecidas (tanto quanto merecedoras) de atenção e cuidado. Nas zonas despovoadas do interior vinga um triste desordenamento, resultado nem sequer de desleixo, mas de completo abandono.
Sem mão humana que faça alguma gestão, as ervas e o mato crescem, invasoras como as acácias proliferam sem controlo, as árvores ficam «imersas» em vegetação parcialmente seca e a biomassa vegetal vai-se acumulando até ao deflagrar de qualquer chispa de lume (acidental ou criminosa). Para os poucos habitantes que ainda restam nessas áreas, quase sempre frágeis na sua velhice e doenças, assim como para a vida animal, é o inferno real, muito capaz de lhes ceifar a vida, em qualquer dia aziago. Com sorte escapam à morte: os humanos despojados dos magros recursos e víveres que não desistiram de arrancar à terra que os viu nascer e a que pertencem, e os bichos desidratados e extenuados, enfrentando a seguir, uns e outros, as mais severas dificuldades - a continuação do inferno.
E ultrapassou largamente os vetustos carvalhos...
As tecnologias possibilitam feitos extraordinários, mas os espaços florestais e rurais, para serem úteis aos humanos, carecem tanto de instrumentos e de técnicas como da firme vontade das pessoas em compreender e respeitar a Natureza e, dentro dela, as florestas. Estes factores não se cumprem em Portugal: as ferramentas são caras, consomem muito em combustível e manutenção, o que é terrível quando se é pobre, e operam dificilmente nas vertentes inclinadas do interior centro e norte do país; e aos portugueses falta-lhes (penso eu) aquele amor pelas árvores que se torna mais profundo e mais sólido quando conhecemos os benefícios imprescindíveis que as plantas nos proporcionam, para além da exploração utilitária e económica, e de que somos inteiramente dependentes: consumo de dióxido de carbono (CO2), libertação de oxigénio (O2), moderação do clima, embelezamento da paisagem, base das cadeias alimentares e condição da biodiversidade, etc.
É tudo isto que queimamos Verão após Verão, que é uma forma de queimarmos o futuro. O nosso. O dos nossos filhos. O do nosso país.
Mas nunca o do planeta, ainda que absurdamente o quiséssemos. Nem o da Vida na Terra, que sempre encontrará formas de continuar (a evoluir), com ou sem a presença da espécie humana.
Os nossos netos mereciam melhor.

José Batista d’Ascenção