sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Uma espécie nova para a Ciência, com uma designação que homenageia o Professor Jorge Paiva

Hemidactylus paivae  Ceríaco, Agarwal, Marques & Bauer, sp. nov.,
Zootaxa 4746 (1): 56, Figs. 27–29 (2020)
Acaba de ser publicada uma espécie nova de osga, cujo nome científico, escrito em latim (ou com palavras latinizadas), como mandam as regras internacionais de nomenclatura, é Hemidactylus paivae. O segundo termo, a que se chama restritivo específico, homenageia o Professor Jorge Paiva.
Luís Ceríaco (autor) e Jorge Paiva (homenageado)
Angola, Serra de Pingano (Uíge), Cascata do rio Luege. 26.XI.2019
Agora, além de várias plantas com o epíteto paivae, há também uma osga, a qual até ocorre na província do Cuanza Norte, em Angola, onde o Professor J. Paiva nasceu. Trata-se do exemplar que se mostra na primeira das imagens e que é bem simpático. Na legenda, referem-se os autores, o nome da revista e as páginas em que o artigo foi publicado.
Parabéns, querido Mestre.

Informação sobre os autores e as instituições a que pertencem:

LUIS M. P. CERÍACO1,2,3,6, ISHAN AGARWAL3,4, MARIANA P. MARQUES2,5 & AARON M. BAUER3 1 Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, Praça de Gomes Teixeira, 4099-002 Porto, Portugal 2 Departamento de Zoologia e Antropologia (Museu Bocage), Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Universidade de Lisboa, Rua da Escola Politécnica, 58, 1269-102 Lisboa, Portugal 3 Department of Biology and Center for Biodiversity and Ecosystem Stewardship, Villanova University, 800 Lancaster Avenue, Villanova, Pennsylvania 19085-1699, USA 4 Foundation for Biodiversity Conservation, A1903, Shubh Kalyan, Nanded City, Pune, 411041, India 5 Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO), InBIO, Universidade do Porto, Rua Padre Armando Quintas 7, Vairão, 4485-661 Porto, Portugal 6 Corresponding author: Email address: lmceriaco@mhnc.up.pt

José Batista d’Ascenção

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Acção dos micróbios e conservação dos alimentos

Fonte da imagem: aqui.
A matéria orgânica é o pasto de uma infinidade de seres microscópicos que, ao alimentarem-se dela, a convertem, por último, em matéria mineral. Os processos de decomposição são fundamentais no funcionamento da Natureza, eliminando, para além de quaisquer porções orgânicas do corpo dos seres vivos (em que se incluem os detritos alimentares), os excrementos e os cadáveres.
Os animais e, entre eles, os seres humanos são macroconsumidores de matéria orgânica. Não a consumindo fresca ou sob formas menos susceptíveis à acção dos decompositores (como alguns frutos secos, sementes, tubérculos e outros), carece a mesma de ser mantida em condições que a preservem da contaminação e da actividade daqueles microrganismos.
Uma das mais eficazes formas de conservação é usando o frio. Por refrigeração, os catalisadores biológicos (enzimas) diminuem a sua actividade. Quando a temperatura atinge valores bastante inferiores a zero graus, nos congeladores, ficam inibidos. Em consequência, o metabolismo microbiano reduz-se significativamente ou anula-se e os alimentos mantêm-se por períodos (mais) dilatados, durante dias, nos frigoríficos, ou meses, quando congelados.
Como a inibição pelas temperaturas baixas ou muito baixas não afecta a integridade das enzimas, logo que a temperatura sobe e se aproxima do intervalo de valores óptimos para a catálise enzimática, o metabolismo degradativo é retomado e os alimentos deterioram-se. É por isso que os alimentos que tenham sofrido descongelação não devem voltar a ser congelados.
Quando os alimentos se degradam, para além do aspecto adulterado, passam a conter resíduos do metabolismo microbiano que alteram o sabor e o cheiro que lhes é característico. E, nalguns casos, ou os micróbios em si são perigosos ou produzem substâncias tóxicas, situações em que a saúde e a vida das pessoas podem ser postas em causa.
A actividade metabólica das células ocorre no seio da água (em solução aquosa). Por essa razão, uma forma de conservar os alimentos é remover-lhes a água que contêm (secá-los ou desidratá-los), por meio de qualquer técnica ou tecnologia. Sem água, os micróbios existentes sobre ou no interior dos alimentos não metabolizam e, por isso, não os degradam. Mas estes micróbios não estão mortos: logo que hidratados retomam a sua fisiologia, que o mesmo é dizer, a sua capacidade degradativa.
A água é um meio em que se dissolvem numerosas substâncias (é um bom solvente), dentro e fora das células vivas. À semelhança de muitas outras partículas com mobilidade (gases, líquidos, e substâncias solubilizadas ou volatizadas), as moléculas de água deslocam-se espontaneamente das regiões onde há maior concentração de substâncias dissolvidas no seu seio (solutos) para as regiões onde essa concentração é menor (movimento de difusão). Dito ao contrário: a água difunde das regiões onde ela própria é mais concentrada para as regiões onde existe em menor concentração. Este movimento também se verifica através das membranas das células. Ao movimento de difusão da água através de (quaisquer) membranas diferencialmente permeáveis chama-se osmose.
Então, quando se salga(va) a carne ou o peixe, aumenta(va)-se a concentração de solutos no exterior das células, o que leva(va) ao movimento da água, por osmose, do meio intracelular para o exterior. Isto acontece tanto nas células constitutivas dos alimentos, ainda que mortas, como nas células dos micróbios que esses alimentos contêm. Então, esses micróbios fica(va)m impedidos de metabolizar, logo não degrada(va)m os alimentos salgados. A conservação de compotas assenta no mesmo princípio: ao adicionar grandes quantidades de açúcar (soluto) ao meio extracelular dos micróbios, que sempre contaminam a matéria alimentar, aqueles perdem água por osmose, o que retarda o seu metabolismo, limitando, por essa via, a sua capacidade degradativa.
Tradicionalmente havia outros meios de conservação que interferiam com a actividade dos micróbios. Era o caso da fumagem. Nesse processo, para além da secagem dos produtos do fumeiro, a sua impregnação com certas substâncias resultantes da queima da madeira tinha um efeito inibidor da bioquímica dos micróbios contaminantes. Claro está que algumas dessas substâncias não eram saudáveis para os consumidores, o que aconselhava que os alimentos fumados fossem bem lavados antes de cozinhados, como habitualmente se fazia, e que não fossem excessivamente frequentes na dieta, como acontecia normalmente.
Outro procedimento bastante limitador dos micróbios era a imersão em ácido, por exemplo o vinagre (ácido acético), como no caso dos «picles». A acidez (abaixamento de pH) desnatura os catalisadores biológicos, limitando ou impedindo as reações metabólicas dos microrganismos.
Modernamente, optimizaram-se outros modos de evitar a contaminação por micróbios, desde o calor (por exemplo a pasteurização) à irradiação ou à secagem extrema (liofilização) ou à conservação dos alimentos em embalagens esterilizadas e sujeitas a vácuo.
Como nota final registe-se que os alimentos também contém enzimas, as quais promovem reacções que os alteram. A limitação destas reacções decorre em simultâneo e pelos processos de controlo da atividade enzimática microbiana, como referido acima.
Diga-se ainda que nem só os micróbios degradam os alimentos: é o caso da exposição ao ar e da consequente oxidação de alguns dos seus nutrientes: uma maçã cortada diminui drasticamente o seu conteúdo em vitamina C (ácido ascórbico), por oxidação. O mesmo processo torna-a escura devido à combinação dos compostos fenólicos naturais com o oxigénio do ar.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Micróbios e alimentação: a fermentação lática e a produção de iogurte

Lactobacillus bulgaricus, uma das bactérias envolvidas na
produção de iogurte. Fonte da imagem: aqui.
O leite é um alimento rico em nutrientes variados. Todos os animais pertencentes à classe dos Mamíferos, que inclui o ser humano, se alimentam de leite nos primeiros tempos de vida. Ao longo da História, a humanidade foi aprendendo a produzir outros alimentos derivados do leite, casos do queijo, nas suas muitas variedades, da manteiga, do requeijão, do iogurte e do almece. Na produção de alguns dos derivados do leite intervêm microrganismos, como em certas variedades de queijo, por exemplo, e no iogurte.
A produção do iogurte envolve bactérias produtoras de ácido lático, de que são exemplo algumas do género Lactobacillus e outras do género Streptococcus. Estas bactérias usam como fonte de energia o açúcar característico do leite - a lactose. A lactose é constituída por dois açúcares mais simples (monossacarídeos) unidos entre si: uma glucose e uma galactose. Por essa razão, dizemos que a lactose é um dissacarídeo. Outros dissacarídeos muito conhecidos são a sacarose (o açúcar vulgar), formada por glucose mais frutose, e a maltose, formada por glucose mais glucose. Os monossacarídeos glucose, galactose e frutose diferem entre si, mas têm a mesma constituição química (C6H12O6). De entre eles, a glucose é o mais abundante e é o “combustível” usado pela generalidade das células vivas. A “maquinaria” celular pode interconvertê-los ou aos seus derivados, em vias metabólicas dependentes da presença de catalisadores biológicos específicos (enzimas), consoante o metabolismo de cada célula.
Quando o leite se encontra em ambiente morno, a temperaturas da ordem de 35 - 40 ºC, por exemplo, pode ser contaminado por bactérias láticas, de forma deliberada, pela simples junção de um iogurte, que é, para o efeito, uma cultura das ditas bactérias, ou de modo ocasional ou acidental, pelas mesmas bactérias, que sempre existem no ambiente. Perante tamanha fartura de alimento, os micróbios multiplicam-se, libertando os resíduos do seu metabolismo, ou seja: há consumo de glucose, para obtenção de energia útil (acumulada em moléculas de adenosina trifosfato – ATP), com formação de um produto de excreção que, neste caso, é o ácido lático. Este processo chama-se fermentação lática, e pode resumir-se de modo simples, numa equação geral:
Glucose (C6H12O6) → 2 Acido lático (2 C3H6O3) + Energia útil (2 ATP)
Quanto mais as bactérias metabolizam (consumindo glucose) mais se reproduzem e mais ácido lático é libertado (o que torna o leite azedo). Dizemos então que o seu pH baixou (pH é a sigla de uma escala numérica entre 0 e 14, em que os valores abaixo de 7 - o valor neutro, correspondente ao pH da água pura – traduzem o grau de acidez de meios aquosos tanto mais ácidos quanto mais baixo for o valor numérico, e os valores acima de 7 são relativos a meios aquosos progressivamente mais básicos ou alcalinos).
O leite é um alimento rico em proteínas. À principal proteína do leite chama-se caseína. As proteínas são longas cadeias de aminoácidos com uma ordem determinada a que se podem ligar outras substâncias. Cada proteína apresenta uma estrutura espacial característica à escala ultramicroscópica. Mas essa estrutura, com as suas propriedades físicas e químicas, só é estável em determinados intervalos de pH. Quando o pH varia, há interacções ou ligações químicas que se alteram e modificações na distribuição de cargas, o que, no caso da caseína, leva à sua precipitação, tendo como resultado a coagulação do leite. Tradicionalmente, o que era um líquido adquire o aspecto de um sólido mole, com sabor menos doce e azedo. Se a fermentação desdobrou toda a lactose nos correspondentes monossacarídeos, o iogurte obtido torna-se um bom alimento para intolerantes à lactose, ao contrário do leite onde está presente. O iogurte é um alimento rico, porque, à parte a degradação do açúcar, que pode ser acrescentado depois, mantém todos os componentes do leite. Se a fermentação lática, acima esquematizada, for a única ocorrida não há produção de gás, que o iogurte não tem. A acidez é um factor de conservação do iogurte, porquanto a baixa do pH inibe o crescimento de muitos outros micróbios competidores das bactérias láticas. E como estas bactérias são ingeridas com o alimento, podem ainda contribuir para facilitar o trânsito intestinal em algumas pessoas com prisão de ventre. Isto implica também alguma prudência no consumo excessivo de iogurte, para prevenir o efeito contrário.
A libertação de ácido lático não tem lugar apenas pela via fermentativa indicada, ocorrendo em estirpes de muitos géneros de bactérias. As bactérias láticas têm muita importância na produção e conservação de grande variedade de alimentos e bebidas, desde peixe fermentado, à sopa, que pode azedar, ou à qualidade do vinho.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

O micróbio que nos dá o pão, o vinho e a cerveja

Imagem ao microscópio da levedura Saccharomyces cerevisiae. Fonte: Wikipédia
O ser humano depende dos outros seres vivos, por razões alimentares, ambientais, de saúde, de vestuário, habitacionais e outras. O mundo vivo inclui as plantas e os animais, mas também os fungos (como os cogumelos e os bolores) e as bactérias. Partículas biológicas muito curiosas, e cuja função geral na Natureza ainda não percebemos completamente, são os vírus, agentes que infectam de modo específico as células de animais ou de plantas ou de fungos ou de bactérias. Há vírus temíveis pelas doenças ou prejuízos (na agricultura, na pecuária, na silvicultura) que (nos) podem causar. Veja-se o cuidado/receio geral com a contenção do «corona vírus» que, por estes dias, faz a abertura dos noticiários de todas as horas.
A pequena levedura designada Saccharomyces cerevisiae é um fungo unicelular que constitui (na quase totalidade) o fermento comercial de padeiro (tal como o fermento que é guardado em casa, mas este tende a contaminar-se progressiva e abundantemente com bactérias diversas ou outros fungos, razão por que o sabor do pão caseiro, de sucessivas fornadas, pode tornar-se cada vez menos agradável…). Este micróbio é o (principal) agente responsável pelo levedar do pão, que consiste basicamente no seguinte: ao misturar-se o fermento com a farinha humedecida, os hidratos de carbono complexos (amido) são hidrolisados por acção de catalisadores biológicos (enzimas, neste caso as amilases) existentes na farinha, formando-se açúcares como a maltose, a qual é degradada por enzimas da levedura em moléculas simples (monossacarídeos), no caso a «glucose». A glucose é o «combustível» de que a levedura se alimenta e que lhe permite multiplicar-se exponencialmente. O processo metabólico completo chama-se fermentação alcoólica, porque termina na formação de etanol (álcool etílico), ao mesmo tempo que se liberta dióxido de carbono. O objectivo é a obtenção de energia, transferida da glucose consumida para transportadores universais de energia nas células, que são moléculas de uma substância chamada adenosina trifosfato (ATP). Dispondo de ATP e de matérias-primas, em condições fisiológicas e na ausência de tóxicos, quaisquer células realizam todas as suas funções metabólicas. Em termos químicos, a equação resumo é a seguinte:
C6H12O6 (glucose) → 2 C2H5OH (etanol) + 2 CO2 (dióxido de carbono) + 2 ATP (energia útil)
E o que se ganha com a massa levedada? Esta enche-se de bolhas de ar (CO2) que conferem o aspecto vacuolar e macio ao miolo do pão, dando-lhe volume (o pão não levedado – pão ázimo – fica compacto). As próprias leveduras, mortas pela cozedura, contribuem para o paladar do pão fermentado. O álcool (que ferve a cerca de 78 ºC) é evaporado pelo calor do forno, pelo que o pão cozido não sabe nem cheira a álcool, nem, muito menos, embebeda.
O processo fermentativo de que resulta a produção de vinho e de cerveja é o mesmo e é realizado pelo mesmo micróbio, ou outros semelhantes, embora com possível uso de estirpes seleccionadas artificialmente. O objectivo é que é diferente.
Na fermentação vínica, o CO2 liberta-se espontaneamente (podendo acumular-se em adegas pouco arejadas com grande volume de mosto em fermentação intensa, e constituir perigo sério de intoxicação), enquanto o álcool vai aumentando a sua concentração no líquido. O teor alcoólico final depende da quantidade de açúcar inicial (acrescentando açúcar ao mosto em fermentação aumenta-se a graduação do vinho…). Quando os níveis de álcool são suficientemente elevados, a sua toxicidade mata as leveduras, a fermentação pára, aquelas caem por acção da gravidade no fundo das cubas e o vinho fica límpido.
A produção moderna de cerveja assenta no mesmo processo fermentativo a partir de malte (obtido de grãos de cevada, mas o trigo, o milho, o arroz ou outros cereais serviriam igualmente), sobretudo por acção de estirpes seleccionadas de Saccharomyces cerevisiae.
Na produção de vinho caseiro, bastam as leveduras associadas naturalmente à «pele» dos bagos de uva, as quais entram em contacto com o sumo doce quando os cachos são esmagados.
O gás da cerveja e dos vinhos gaseificados é CO2 dissolvido sob pressão nos respectivos líquidos, seja o que foi retido durante a sua libertação na fermentação, em tanques fechados,  ou o que é acrescentado depois.
O uso de leveduras como a Sacchaaromyces cerevisiae para os fins descritos tem milhares de anos (há mais de 5000 anos já se fabricava vinho no Egipto e na Suméria), muito, muito antes, portanto, de ser conhecida a sua existência.

José Batista d’Ascenção