quinta-feira, 21 de maio de 2020

Viagens Philosophicas - Universidade de Coimbra. Expedições científicas e imprevistos [Jorge Paiva]

Manada de búfalos, Syncerus caffer subsp. caffer,
a passar pelo local onde estávamos a colher plantas.
Moçambique, Sofala, 1964
Comecei a estudar e a colher plantas em 1956, pois tinha de apresentar um herbário no ano seguinte para ter aprovação numa disciplina da licenciatura em Biologia. Nessa altura, levei com um cajado nas pernas, atirado pelo dono de um laranjal, que não acreditou que eu andava a colher ervas e não a furtar laranjas (1).
A expedição mais prolongada que integrei, sempre acampado nas florestas e savanas tropicais, foi a Moçambique e um pouco no Malawi e Zimbabwe, desde o início de novembro de 1963 a 30 de abril de 1964. Essa expedição foi fértil em episódios. 
Lembro-me que, estando nós a colher plantas numa floresta aberta, que os ingleses designam por "savana woodlands", começamos a ouvir um barulho enorme, como se fosse uma trovoada a aproximar-se. Ao olharmos na direção de onde vinha o som, vimos uma nuvem de poeira. Então alguém gritou para que subíssemos imediatamente para as árvores, pois era uma manada de búfalos em debandada e, quando a manada vem nessas ondas em trote acelerado, leva tudo à frente.
Foi a nossa sorte. Quando descemos, o solo parecia ter sido lavrado. Ainda consegui tirar uma foto (tremida) do cimo da árvore para onde tinha subido. Ainda me lembro da espécie da árvore, uma acácia de tronco amarelo (Acacia xanthophloea Benth.), a que os ingleses chamam “fever tree”, por causa da febre amarela, ainda frequente nos trópicos nessa época. Amarelo estava eu em cima da árvore!!!
Angola, Serra de Pingano (Uíge). Cascata do rio Luege.
António, Luís Ceríaco e J. Paiva 26.XI.2019 
Cerca de seis décadas depois de ter iniciado a minha carreira profissional, com 86 anos, juntamente com três jovens zoólogos (Gregorius Jongsma, americano; Luís Ceríaco, português e Stwart Nielsen, canadiano, integrei em 2019 outra “Viagem Philosophica” às florestas tropicais de chuva (pluvisilva) do Norte de Angola (província do Uíge).
As expedições científicas nestas florestas devem ser feitas na época das chuvas, quando as plantas florescem e quando os animais que os colegas herpetólogos (o português estuda répteis e o colega estrangeiro anfíbios) estudam se encontram em plena atividade.
Angola. Serra de Pingano (Uíge). Acampamento.
J. Paiva e G. Jongsma preparando material. 27.XI.2019
Numa das noites em que nos infiltramos na floresta para colher relas e rãs, apanhamos uma enorme trovoada tropical. Chegados ao acampamento, completamente encharcados, encontrámos o interior das barracas completamente alagado. Eu ainda consegui dormir na minha barraca, pois prevenido levara dois sacos cama impermeáveis e, colocando um sobre o outro, pude estar deitado no superior, sem ficar ensopado em água. Já o Luís Ceríaco teve de dormir sentado num dos jeeps! (2)

Jorge Paiva


(1) Foi num Sábado em que andava a colher plantas, acompanhado pelo meu irmão Fernando (um garoto no início do Liceu) e mais dois amigos dele, nos laranjais que existiam na margem direita do Mondego, a montante do Parque da Cidade. A dada altura, um homem, com um cajado, interpela-me dizendo que andávamos a furtar laranjas. Claro que ripostei que não, pois andava era a apanhar plantas (que lhe mostrei) para estudar. O homem não acreditou e furioso por julgar que eu estava a mentir, tentou agredir-me com o cajado que trazia. Fugi a correr, mas ainda levei com o cajado que ele me atirou às pernas, para eu cair. Alcancei os três garotos que se tinham afastado para longe, logo que o homem começou a interpelar-me. Quando já estávamos fora do laranjal, os três marotos começaram a tirar laranjas dos bolsos para as saborearem. Percebi, então, que o homem tinha razão, mas eu é que não sabia que eles tinham feito a malandrice que, seguramente, o homem tinha presenciado.

(2) Texto publicado no «sítio» da Universidade de Coimbra, a propósito da «Semana dos Museus», que está a decorrer.

Afixado por: José Batista d'Ascenção

segunda-feira, 4 de maio de 2020

A agricultura e a sua condição intrinsecamente biológica

Fonte da imagem: aqui.
A palavra “biologia” significa estudo, conhecimento, da vida. A mais pequena unidade da vida é, segundo define a «teoria celular», a célula. A actividade biológica refere-se ao conjunto de reacções químicas que ocorre nas células, a que chamamos metabolismo, e à acção dos seres vivos uns sobre os outros e sobre o ambiente que os rodeia.
O metabolismo celular requer a matéria-prima alimentar, como os nutrientes e a água, ou o oxigénio nos seres aeróbios, envolve todo o tipo de reacções bioquímicas e obriga à remoção dos resíduos produzidos para o exterior das células e dos organismos, quando estes são pluricelulares.
Professor Miguel Mota (1922-2016). Agrónomo e cientista notável
questionou o uso da designação "agricultura biológica". Ver nota.
Imagem obtida aqui.
Todo o “edifício” da vida e o seu funcionamento se “constroem” com os mesmos elementos químicos - os átomos - ou as suas combinações características - as moléculas - de quaisquer outros materiais, quer sejam naturais ou artificiais. Esses átomos são os de carbono, de oxigénio, de hidrogénio, de nitrogénio (azoto), de fósforo, de cálcio, de cloro, de sódio, de potássio, de ferro e de todos os demais, simples ou combinados segundo as suas afinidades para formarem as moléculas, de que são exemplo as dos compostos orgânicos característicos da vida: hidratos de carbono (ou glúcidos), lípidos (ou gorduras), prótidos (aminoácidos e proteínas), ácidos nucleicos (ADN e ARN) e outros.
As preocupações com a saúde e a conservação do ambiente, face à produção em larga escala, permitida pela industrialização crescente e pelo incremento dos transportes, o que exponenciou os fenómenos de poluição, despertaram a procura justificada de outros modos de produzir bens alimentares. Surgiu então a prática agrícola avessa aos fertilizantes industriais, a adubos químicos, herbicidas e pesticidas. Chamaram-lhe “agricultura biológica”. Obter-se-iam, assim, produtos «biológicos», ou, abreviadamente, “bio”. E criou-se uma marca, que se procura vender com sucesso, o qual só não é maior porque os seus artigos surgem nos mercados com preços tendencialmente elevados.
Preservar os alimentos de químicos nocivos à saúde tornou-se um objectivo necessário, que exige uma prática regulada e inspecionada. Mas convém não incorrer em equívocos prejudiciais. O nitrogénio, o fósforo ou o potássio dos adubos químicos não são diferentes dos mesmos elementos químicos presentes no estrume animal natural (são a mesma coisa…). Claro que esta realidade não legitima a “inundação” das culturas com agroquímicos (de que todo o excesso é poluente), os quais vão ser drenados para os aquíferos e para as vias fluviais, contaminando-os e provocando crescimentos anormais de algas e de certas plantas nos rios (fenómenos de eutrofização), por exemplo. Deve salientar-se também que o envenenamento de solos e águas com pesticidas, que eliminam plantas daninhas e animais, causa graves desequilíbrios nos ecossistemas.
Voltando ao conceito “biológico”. É absurdo considerar que um produto agrícola ou da pecuária deixa de ser biológico porque se recorreu a químicos artificiais. Tão absurdo como considerar que os seres humanos deixaram de ser biológicos porque toma(ra)m medicamentos. De resto, como não deve haver na Terra ser vivo algum que não tenha sido afectado pelos diferentes químicos produzidos por acção humana, por esta altura já não havia seres “biológicos”. Nem produtos “bio”.
Porque pensamos com as palavras, uma expressão apropriada para designar a prática agrícola com preocupações saudáveis seria chamar-lhe isso mesmo: “Agricultura Saudável”. “Agricultura Ecológica” (expressão usada em Espanha e na Dinamarca) é outra designação adequada.
“Biológica” é que não, porque não há agricultura nenhuma, boa ou péssima, que possa ser «não biológica».

José Batista d’Ascenção

Nota: Este texto humilde pretende ser uma homenagem simples ao Professor Miguel Mota (Lisboa, 15 de Outubro de 1922 - 24 de Março de 2016), agrónomo e cientista notável, que várias vezes se pronunciou sobre o absurdo da designação “agricultura biológica”. Especialista de genética e de biologia celular em plantas, de que foi pioneiro em Portugal, deixou obra na produção de cereais melhorados, ele que, em 1948 assumiu a direcção do Laboratório de Citogenética da Estação de Melhoramento de Plantas, em Elvas. Em 1957 escreveu um artigo visionário, esclarecendo alguns aspectos de uma dada fase da divisão das células por mitose (o papel dos cinetocoros na anafase), que a comunidade científica viria a reconhecer trinta anos depois.
Infelizmente, os programas de biologia do ensino secundário não lhe fazem qualquer referência