quarta-feira, 14 de outubro de 2020

O que valem os nossos semelhantes?

 

Viaduto da Avenida António Macedo sobre a rua de S. Martinho, em Braga
Passo ali de carro todos os dias de trabalho, às vezes mais do que uma vez, e, desde há semanas, fazia-me impressão aquele aparato entalado entre o tecto do viaduto e o cimo da rampa que desce até ao passeio, uns metros mais abaixo. Aquele lugar tornou-se uma “habitação”.

Hoje, cerca das 13.30 horas, regressava da escola e dei com a vista num homem que secava a face no que me pareceu ser uma toalha de rosto, aparentemente depois de lavar a cara. Avancei até poder parar o carro e voltei a pé, na disposição de falar com o senhor. Mas já não o vi.

Dirigia-me para casa, sabia que tinha o almoço à espera, sobre a mesa, e não pude nem quis afastar o pensamento sobre tantos que não têm tecto, nem mesa, nem trabalho, nem saúde, nem afecto, nem são tratados com um mínimo de dignidade. Não têm nada nem têm possibilidade de sair do ciclo de miséria em que se encontram. Alguns têm responsabilidades na situação em que caíram, ou em que se precipitaram, mas nem por isso merecem a indiferença de quem tem e de quem pode.

Porém, a maioria nasceu fora de berço com condições mínimas, nada os ajuda, parece só lhes restar a falta de tudo e ainda são vistos como “culpados” do casulo de pobreza a que estão condenados.

As sociedades evoluem, há progressos maravilhosos, que o conhecimento permite, mas as organizações político-sociais só em muito poucos países proporcionam boas condições de vida à generalidade das pessoas. E não é seguro que, nos próximos anos, esse tipo de sociedades tenha grandes probabilidades de replicação noutros países. A privação das condições materiais de dignidade mínima com a consequente limitação da liberdade parece, ao invés, propagar-se, profanar as democracias, e aumentar a subjugação material, educacional, psicológica, laboral e social dos cidadãos. Muito poucos controlam o mundo e os bens materiais e a generalidade dos restantes sobrevivem para ampliar as diferenças entre uns e os outros.

Falharam as filosofias políticas, falharam as religiões, falha a organização dos governos e dos sistemas de justiça e de educação. Por isso falham também as condições de nutrição, de habitação, de higiene e de saúde e de realização humana.

Que o mundo não está bem, não está. Sendo certo que nunca, em cada tempo, esteve melhor para a maioria dos seres humanos.

O que não legitima a perda de esperança, nem o abandono da luta pelos ideais de uma sociedade melhor e de um ambiente natural mais respeitado.

Porque não há outra via.

Quanto ao morador de debaixo do viaduto, que tal se a segurança social de Braga, em colaboração com a autarquia bracarense, fizessem alguma diligência? De preferência a tempo, que o Inverno não tarda.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Cinzas e a humilde grandeza da alma humana

Vista parcial da aldeia do Roqueiro,
que o fogo circundou em todo o perímetro

Negro, castanho e algumas manchas de verde. O solo nu. Ainda o cheiro intenso a queimado onde há troncos e raízes que continuam a arder debaixo da terra, mais de vinte dias após o inferno das chamas. Nas extensões ardidas não se vêem nem se ouvem pássaros. A sua música deu lugar ao silêncio fundo da natureza, realçando o efeito desolador da paisagem enegrecida e do odor que se mantém. Já nas “ilhas” de verde juntam-se muitos passaritos, provavelmente em luta desesperada por alimento.

Na expressão das pessoas nota-se um desalento profundo, uma mágoa cansada, calada numas e liberta em voz forte noutras. As primeiras porque se sabem sós e julgam inútil dizer aquilo para que não há palavras. E as segundas porque não entendem nem aceitam a atitude e a acção daqueles a quem cabe (ou devia caber) governar (bem) e de muitos dos que são designados por “protecção civil”. Reclamam bombeiros de proximidade bem preparados e equipados, com autonomia e poder de decisão na protecção atempada de pessoas e bens. Nas horas de aflição, só puderam contar consigo próprios e com os populares que, de povoações vizinhas, acorreram a prestar o auxílio possível. Em todos o susto, a perplexidade, a solidão e um triste sentimento de isolamento e abandono. Sabem bem que os jovens cujos pais partiram em busca de uma vida melhor cada vez têm mais dificuldade em retornar às origens, suas e dos seus.

No fim-de-semana passado pude finalmente ir ver a casinha que os meus pais contruíram e onde nasci. E revivi sensações que dispensava. Desconhecia que o fogo pudesse passar no sótão de uma casa sem queimar os pisos inferiores e sem o telhado, com caibramento de madeira, colapsar. Fiquei assombrado: tubos e cabos eléctricos e de antenas arderam até ficar o cobre exposto. Os equipamentos de comunicação ficaram impossibilitados de funcionar. Estive, por isso, afastado das imagens e do som do mundo durante dois dias, mas não lhes senti a falta. Pelo contrário, foi grande o conforto que me encheu o peito em todos os contactos com os que me conhecem desde sempre.

Soube que a casa que pertence à minha família não ardeu completamente porque aquelas pessoas e outras que não conheço não desistiram de a salvar, com a água que conseguiram trazer e espadanando sem descanso as chamas que a envolviam. “Perdidos” no mar de fogo, os bombeiros não acudiram ali, como o não fizeram noutros lugares da povoação. Mas os meus conterrâneos não desistiram, lutaram até à exaustão e venceram aquela tormenta.

Eu e os meus familiares ficamo-Vos infinitamente gratos, gente boa!

José Batista d’Ascenção