Foi no final do ano de 1997, depois de uma crítica de Eduardo Prado Coelho, que li a obra em epígrafe, constituída por dois livros: a parte primeira e a parte segunda. A sua escrita foi iniciada em 1759 e os dois primeiros volumes seriam publicados em Janeiro de 1760, depois da recusa de vários editores de Iorque e de Londres. Foi um escândalo e um sucesso, traduzido em quatro edições (alguns milhares de exemplares) só até ao final daquele ano.
Senhor de uma cultura imensa, muito inspirado em obras de grandes nomes, especialmente no D. Quixote, e referindo humoristicamente, a todo o (des)propósito, uma infinidade de autores desde a Antiguidade (alguns jocosamente fictícios), Sterne revoluciona a escrita de forma muito original, em grande parte porque faz a dissecação da alma e do comportamento humano através da comédia permanente em que faz imergir a vida humana, num estilo delicado e fluente e de múltiplos significados, envolvendo o próprio leitor (ou leitora, a quem chama “minha Senhora”) nas suas divagações e peripécias múltiplas e encaixadas umas nas outras, num enredo “sem fim”, que, para os leitores da língua original, deve ser particularmente divertido. De caminho “escangalha” a organização de um livro certinho, com os conteúdos em sequência de capítulos agrupados em volumes, mas com uma tal perícia que o leitor nunca está perdido, nem saturado. Assim, por exemplo, no capítulo XX, na página 284, depois de “ocupar” as personagens em tarefas diversas, duas delas a dormir, diz ao leitor: «é a primeira vez que consigo arranjar um bocadinho, - e vou aproveitá-lo para escrever o meu prefácio», seguindo-se então uma dúzia de páginas com «o prefácio do autor». E aí começa por referir um rol de personalidades inventadas como Agelastes (o que nunca ri) Phutatorius (o copulador), Didius (alusão a Titus Didius, legislador romano, mas baseado em certo advogado iorquino), este como «grande jurista eclesiástico, autor do «código De fartandi et illustrandi fallaciis» (Acerca das ilusões do “traquejar” e do explicar), Kysarcius (beija-cu), Gastripheres (barrigudo), Somnolentius (sonolento), etc. Bastante antes, no capítulo VII, página 69, em alusão provável a um médico londrino, aproveita-lhe a alcunha e chama-o «Dr kunastrokius» (termo formado pela palavra latina “cunnus”, referente à designação latina da genitália feminina, em calão, e pela palavra inglesa “stroke”, com o significado de acariciar), caracterizando-o como «esse grande homem [que], nos seus tempos livres, [tinha] o maior prazer imaginável a escovar caudas de burros e arrancar-lhes os pêlos mortos com os próprios dentes»…
O livro estende-se por 461 páginas, mas a acção resume-se às peripécias da concepção e do parto da personagem principal, que é o próprio narrador. Um dos problemas com que o pai da criança prestes a nascer se debate é se não seria melhor o nascituro vir ao mundo com os pés para diante (ver ilustração da capa), evitando um suposto perigo resultante de nascer na posição oposta, mais habitual, caso em que o cérebro poderia ser espremido e empurrado contra o cerebelo – «a sede imediata do entendimento!». Outro problema, esse resultante do acto do nascimento, foi o nariz da criança ter ficado espalmado como «uma panqueca», razão por que o pai invoca tratados sobre narizes e a influência do nariz na vida de quem o tem assim ou assado (por exemplo, a ausência de nariz era geralmente atribuída à sífilis), dando particular importância «a uma instituta de regras sobre narizes» do «grande e douto Hafen Slawkenbergius» (autoridade forjada por Sterne: sendo “Hafen” a palavra alemã para “penico” e “Schlackenberg” significando “monte de esterco”). No encadeamento de problemas de cariz filosófico pessoal, em que aquele pai - «um filósofo chapado, especulativo e sistemático» - se embrenha sucessivamente, outra dificuldade, não menor, é a influência do nome de baptismo nos sucessos ou insucessos de cada pessoa. Por isso a criança a nascer devia chamar-se, por vontade paterna, Trimegistus (que significa, em grego, “três vezes máximo”), sendo que, por uma série de erros, acaba por ser baptizada com o nome odiado pelo pai: “Tristram” (significando “o triste”…) seguido do nome de família “Shandy” (podendo significar qualquer coisa como “amalucado”).
Como personagens principais figuram ainda o tio Toby, e o seu criado, o cabo Trim, ambos apaixonados tão infantil como comicamente pela arte da guerra e fortificações da época.
A obra é delirante e riquíssima, mas de difícil leitura, essencialmente por dois motivos: por ter como base o ambiente e condições sócio-históricas (termos, conceitos, ideias, cultura, objectos do real…) do século dezoito inglês, remotos e desconhecidos aos olhos dos leitores de hoje, e por ser uma tradução com exigências particulares. É bem sabido que traduzir um livro é escrever outro livro com base nesse numa língua e cultura diferentes: ora, duas coisas podem acontecer, dependendo do génio do tradutor: ou resulta um bom livro, capaz de agradar ou não ao público, ou não resulta livro que mereça o nome. Neste caso resultou um bom livro, tão agradável quanto difícil de abarcar em toda a sua riqueza de significação, dada a tarefa hercúlea que saiu ao tradutor, Manuel Portela.
Seguirei para a parte segunda da obra, e sobre ela talvez escreva mais alguma coisa…
José Batista d’Ascenção