Mais afeito à escrita de (Laurence) Sterne, depois da (re)leitura da parte primeira, o gozo foi maior a ler esta parte segunda, tanto que me fez chegar mais depressa ao fim. A imaginação prodigiosa, a erudição incomensurável, a atenção minuciosa aos defeitos da alma humana, a elegância do cómico, a profundidade da ironia, a imprevisibilidade das situações e a riqueza da escrita deixam-nos assombrados.
Seguem-se alguns pormenores (que achei) interessantes ou simplesmente deliciosos, com uma chamada de atenção: o livro é todo ele delicioso, pesem embora as limitações que decorrem de ter sido escrito em inglês, no século XVIII, e de a ambiguidade linguística e muitos trocadilhos se perderem na tradução para português.
Expressão «Judeu errante» - segundo a lenda, judeu condenado a errar pelo mundo até ao Juízo Final, por ter dito a Cristo que andasse mais depressa quando subia ao Monte Calvário, carregando a cruz. Nota 47, pg. 27.
Geração espontânea – alusão a crença antiga de que o rio Nilo tinha a capacidade de criar seres vivos a partir da lama. Nota 74, pg. 44.
Violinos de Amati, Stradivari e Guarneri – violinos de grande qualidade, fabricados em Cremona, Itália. Nota 83, pg. 49.
O pai de Tristram, «seguindo o exemplo de Xenofonte», propôs-se escrever uma «TRISTRA-pédia» - sistema de educação destinado ao seu filho. Pg. 50.
O autor italiano e bispo de Benevento, Giovanni della Casa (1503-56), autor de «Galateo» (1558), defendeu a sodomia na sua juventude, mas não nesta obra, como o narrador erradamente pressupõe. Nota 89, pg. 52.
«As ciências podem aprender-se de cor, mas a sabedoria não», citação da obra «Of Education», de O. Walker. Pág. 77 e nota 135.
«Quod omne animal post coitoum est triste» (depois do coito todos os animais ficam tristes), máxima que o narrador atribui a Aristóteles. Pg. 81 e nota 144.
«Se eu fosse um asno [como os críticos da obra], solenemente o declaro, havia de zurrar sol-ré-dó em sol maior [alto e estridente] de manhã à noite». Pg. 95.
“Blonederdondergewdenstonke” – palavra inventada por Sterne para sugerir o pedantismo dos críticos holandeses. Nota 48, pg. 122.
Referência aos «Colloquia Familiaria» [Conversas Familiares] (1518) de Erasmo de Roterdão, onde se afirma: «É sinal de boa educação cumprimentar todos (…), independentemente do que estiverem a fazer, seja a comer ou a bocejar, ou a soluçar, ou a espirrar, ou a tossir.» É obrigação de um homem bem educado cumprimentar mesmo quem estiver a arrotar»…, etc. «Mas já é má educação saudar quem estiver a urinar, ou a aliviar a natureza.» Nota 31, pg. 104.
Os antigos Godos da Alemanha (…) tinham (…) o sábio costume de debaterem duas vezes as coisas importantes para o Estado, a saber: uma vez bêbedos e uma vez sóbrios. Bêbedos para que aos concílios não faltasse vigor e sóbrios para que não lhes faltasse discrição. Pg. 128.
«A minha mãe – (a mais autêntica das «Poco-corantes» do seu sexo!) (…) não queria saber se as coisas se faziam desta ou daquela forma, - desde que fossem feitas.» [à letra: uma «pouco-se-importa» ou uma «quer-lá-saber»]. Pg. 137 e nota 68. «Ora ela tinha um jeito só dela, (…) o qual consistia em nunca recusar o seu assentimento e consentimento a qualquer proposição que o meu pai lhe apresentasse»… Pg. 346.
«O meu tio Toby, sentado de manhã à noite, em amena cavaqueira (…) – deixava ao trabalho pouco mais do que a cerimónia do nome.» Pg. 139.
Trespassar amorosamente “o fígado”, órgão onde residiria a paixão amorosa e o desejo sexual. Pg. 153 e nota 91.
«Pois o que é a guerra? (…) um ajuntamento de gente mansa e inofensiva, de espadas nas mãos, para manter os ambiciosos e turbulentos nos seus lugares?». Pg. 161.
«Há uma maneira indignada de um homem às vezes desmontar do cavalo, que é o mesmo que dizer-lhe, “Antes quero andar a pé (…) todos os dias da minha vida do que voltar a andar nem que seja apenas uma milha às vossas costas”». Pgs 162-163.
Na página 174, o texto inclui 5 linhas irregulares e caprichosas, garatujadas da esquerda para a direita, ilustrativas dos percursos seguidos nos primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto volumes da obra. O humor de Sterne leva-o a salientar que na quinta linha se vê que ele conseguiu melhorar bastante. A meio da página seguinte há um segmento de recta, da esquerda à direita da página, sem defeito, que Sterne diz que representa «o caminho que os Cristãos devem seguir», segundo os teólogos, e «o emblema da rectidão moral», segundo Cícero (nota 125), e “a melhor linha”, segundo os plantadores de couves, e «a linha mais curta (…) entre dois pontos», segundo Arquimedes (nota 127).
«O “Grand Tour” – viagem pela Europa (especialmente França, Itália e Grécia) tida como a última etapa da educação do jovem fidalgo ou burguês, era por vezes um pretexto para uns quantos meses de vida dissoluta.» Nota 32, pg. 197.
«Diógenes Laércio (séc. III a. C.) dizia na sua “Vida dos Grandes Filósofos”: “Guardai o inverno para os prazeres sexuais, abstei-vos no verão; na privavera e no outono não fazem tanto mal” (…). Interrogado acerca de quando deveria um homem ter relações sexuais com uma mulher, respondeu: “Quando quiser perder a pouca força que tem.”» Nota 35, pg. 198. E «interrogado sobre a idade adequada para o casamento, teria respondido: para um jovem ainda não, para um velho já não.» Nota 49, pg 390.
Leonardo Léssio (1554-1623), teólogo jesuíta, «aventou que numa milha holandesa (…) ao cubo haveria espaço que chegasse e sobrasse para uns oitocentos milhares de milhões [de almas], os quais supõe ele ser o número máximo (a contar desde Adão) que poderão vir a ser condenadas até ao fim do mundo». Pg 199 e nota 38.
Em Paris, «como as ruas estavam muitas vezes sujas e enlameadas, devido às águas que escorriam pelo esgoto central, por cortesia deixavam-se os peões passar junto à parede; no entanto, até as paredes estavam sujas.» Nota 46, pg. 204.
«De entre as várias maneiras de se começar um livro (…) a minha forma de o fazer é a melhor – estou certo de que é a mais religiosa - pois começo por escrever a primeira frase – e logo confio a segunda a Deus-todo-poderoso.» Pg. 258.
«Acontece com o Amor o mesmo que com o Marido Enganado – a parte que sofre é pelo menos a terceira, mas geralmente a última (…) a saber». Pg. 260.
«Declaro que não me lembro de nenhuma outra (...) passagem da minha vida em que o meu entendimento tenha tido mais dificuldade em dizer coisa com coisa, torturando o capítulo que estava a escrever (…) do que no caso presente: julgar-se-ia que eu até tinha prazer em meter-me em alhadas deste género, apenas para experimentar novas maneiras de me livrar delas». Pg. 264.
No livro original dos rituais da Igreja Anglicana “Common-Prayer Book”, «as finalidades do casamento seriam: procriar, livrar a sociedade do pecado da fornicação e a ajuda entre os cônjuges». Nota 40, pg. 374.
Referências a Portugal, a Lisboa ou aos portugueses (que também existem na parte primeira):
- a «um intendente português». Pg. 146;
- a um irmão do cabo Trim, chamado Tom, que lhe havia «mandado como lembrança» uma bolsa com dezoito florins, «antes de partir para Lisboa». Pg. 295.
- à «viúva de Lisboa», com quem Tom casou. Pg. 333.
- «andava toda a gente em Lisboa a tentar desenrascar-se». Pg335.
PS: Nota adicional: Estes humildes apontamentos não dão uma pálida ideia da qualidade e da riqueza do livro.
José Batista d’Ascenção
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