Na sequência do livro um, «Mulheres de Cinza», e do livro dois, «A Espada e a Azagaia», o livro três, «O Bebedor de Horizontes» completa a mais recente obra literária de Mia Couto.
O conteúdo geral versa sobre o fim do chamado Estado de Gaza, dirigido por Gungunhana, imperador dos territórios da metade Sul de Moçambique, às mãos de Mouzinho de Albuquerque, nos finais do século XIX (1895).
Este terceiro livro incide sobre a viagem de deportação de Gungunhana, com o filho, um tio e conselheiro, mais o cozinheiro e sete das suas (mais de trezentas!) esposas. Noutro local da margem do rio Limpopo foi preso outro chefe tribal, de nome Zixaxa, que é igualmente deportado com três das suas mulheres. A narradora é uma jovem negra, muito inteligente e belíssima, chamada Imani Nsambe, que havia estudado numa missão católica e que fala e escreve perfeitamente a língua portuguesa, tão bem ou melhor que qualquer distinto português. Por isso serve como tradutora das autoridades portuguesas, desde Mouzinho de Albuquerque aos comandantes dos navios da viagem de exílio. Esta viagem tinha por motivo exibir os prisioneiros, mostrando ao mundo que Portugal dominava efectivamente os territórios africanos, em tempos do ultimato de Inglaterra.
Imani Nsambe viaja grávida de um sargento português que fica em África. Tem apenas 15 anos. Nascido o filho, perde-o para a própria sogra, que lho tira como se fora seu por ser filho do seu filho (ainda por cima «clarinho!») e a mãe preta não ter quaisquer direitos sobre ele. Imani, mesmo grávida, é alvo e objecto dos apetites sexuais dos homens com quem viaja, que incluem o permanentemente embriagado, enlouquecido e impotente (!) Gungunhana (com intervalos de lucidez: «as batalhas ganham-se com armas. Mas as guerras ganham-se com mentiras» pág. 97) e um odioso sargento com poder e instintos cruéis. Mas também é admirada e respeitada, quer pelo capitão rival de Mouzinho de Albuquerque, quer pelo comandante do navio África, que faz a viagem de Lourenço Marques para Lisboa, que a estima com profundo carinho e amizade (escreve, este: «se não há futuro tornamo-nos iguais aos bichos. E não há melhor para as guerras que um bicho fardado de soldado.» (pág. 248). Imani terá uma vida longa, mas afastada do filho, e nunca mais vê Germano de Melo, que é o pai dele. Germano fez questão de ficar em Lourenço Marques, afastado da sua terra, da mãe, de Imani, e do filho de ambos e com as mãos decepadas por um tiro disparado pela própria Imani. Isso havia acontecido num gesto de desespero, para defender o seu irmão, um diminuído mental que seguia à frente de uma turba que marchava sobre o posto militar de Germano. Um acidente de tal monta não impediu a paixão de Germano por Imani e de Imani por ele. Imani regressa a África, primeiro deportada para S. Tomé, onde é posta a servir num bordel para o exército, seguindo, após 15 anos, para a sua aldeia natal. Decorrem mais 63 anos. Aos 95 está enlouquecida e irreal, tão irreal quanto o imaginário surpreendente das tribos africanas, seja na visão da natureza, no íntimo das pessoas ou na convivência entre elas e até no modo de encarar a crueldade e humilhação, para além da mera sobranceria comum nos seres humanos em posição dominante [numa carta, escreve Germano de Melo, sensível à africanidade …«os ingleses pensam de nós (refere-se a portugueses e italianos) aquilo que nós pensamos dos africanos.», pág. 125. Noutra passagem, é Imani que reflecte: «Sucede sempre assim, os humilhados acabam por ficar iguais aos opressores.», pág. 174].
A narrativa é toda ela incisiva e clara e fantástica e maravilhosa, até nas partes mais cruéis. E há valor histórico e factual, imerso no romance. E particularidades objectivas interessantíssimas, por exemplo: “No tempo das caravelas, não eram as tempestades mas as calmarias o que os marinheiros mais temiam. A região do Equador era rica em sol, mas pobre em ventos. Sempre que um navio se imobilizava, não eram apenas os alimentos que se deterioravam: a disciplina e o sentido de hierarquia também se degradavam. Havia que criar uma válvula de escape, uma espécie de carnaval em que todos podiam ser todos. Foi assim que nasceu o ritual da travessia do «espinhaço do Mundo».”, pág. 238.
Notável, a pena de Mia Couto, disseca e expõe a fundura da natureza humana, sem contemplações, nas suas grandezas e misérias, alargando e reinventando a língua portuguesa como mais ninguém nunca o terá feito [Diz uma das mulheres de Gungunhana: … “o vento canta. Porque já foi um pássaro. Em menina eu dizia que o vento «assopiava»”, (pág. 81). Noutra passagem refere-se: “Deve haver um sol dentro deste rio [o Tejo]. Só assim se explica a luz de Lisboa. (…) a cidade deveria chamar-se «Luzboa».” (pág. 261). Ou ainda, em fala de Imani no fim da vida: «Este meu corpo é feito de despedaços», pág. 363].
Ao lê-lo, sinto que se eu tivesse um prémio Nobel da literatura corria a entregar-lho e a agradecer-lhe por, a meus olhos, há muito o merecer. É claro que este meu sentimento pode ser criticável tendo em conta que há muitos bons autores de língua portuguesa que nem sequer li, outros que dificilmente vou ler e também outros que deixei de ler. Mas estou à vontade, por não vir daqui nenhum mal ao mundo – é apenas um sentimento meu e ponto. Mas não digo ponto final, acalentando a esperança de que lho atribuam, algum dia.
José Batista d’Ascenção
Adenda: Este resumo é nada comparado com o livro. Por isso me alarguei um tanto, sem receio de que a alguém bastasse para economia de esforço: o que seria um erro estúpido, felizmente improvável, tão pequeno é o número dos que o hão-de ler.
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