sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Luz boa de Lisboa (I)

Para matar saudades do neto [a quem dedico o texto, mas sem referências pessoais, que guardo no peito, ponto assente], lá fomos, eu e a avó, de novo, a caminho da capital. Lisboa é uma cidade muito bonita. E devia ser um local maravilhoso para se nascer e crescer. E fica muito bem como capital de um país, que é o nosso. E que não podia ser noutro sítio, porque é ali que está bem e que fica bem e em que nos podemos sentir muito bem [tendo lá netos ou não].
Aproveitámos então para ver ou rever alguns locais ou monumentos imperdíveis, de manhã deixando a criança com os pais na quietude de casa e, desejavelmente, na paz do sono e de tarde passeando juntos com ela dormindo ou acordada no seu confortável carrinho. E o petiz, como se adivinhasse, correspondeu na perfeição, em todo o tempo, em todos os sítios, nos percursos, à hora das refeições... [Ah, não ia falar dele, voltemos à cidade e aos monumentos.]
Pois deu-nos para começar pelos Jerónimos. Longa fila, a maioria das pessoas estrangeiras, uma hora e vinte de espera, mas a meteorologia colaborou, não havia calor, foi possível conversar e medir bem com os olhos a amplidão, a beleza e o enquadramento da praça, fazendo previsões sobre o tempo que demoraria a chegar à bilheteira. Entrados, as palavras tornam-se supérfluas. A beleza não cabe nos olhos: o rendilhado da pedra, a harmonia e simetria das formas e dos espaços, o ambiente sereno e acolhedor dos claustros e do interior, apesar de tantos visitantes. As salas e dependências com muito interesse. O coro alto, o cadeiral, o Cristo (em madeira polícroma, de 1550) impressionante (em tamanho e qualidade, «hiper-real»). A balaustrada e a vista magnificente para a igreja. A própria igreja, a altura, a beleza e a leveza das colunas, dos tectos e dos vitrais. As dimensões, a qualidade estética e escultórica dos túmulos de Camões e de Vasco da Gama. Tudo por dez euros, barato para quem pode pagar. Pouco acessível para o cidadão português comum. Por essa razão, seria útil que cada português pudesse uma vez na vida visitar gratuitamente o Mosteiro dos Jerónimos. Havia de ser um investimento, mais que uma despesa: do Estado nos cidadãos portugueses e de cada um deles em si mesmo, ou seja, um investimento na cidadania. Pela igreja, de visita livre, acede-se à sacristia, mais um «belo espaço arquitectónico», mediante pagamento de um euro e meio, que reverte para a paróquia. Se me coubesse fazer alguma recomendação a quem visite o Mosteiro dos Jerónimos, deixaria apenas uma sugestão: não ter pressa.
Toda a zona de Belém é de uma lindeza difícil de descrever: a dimensão rasa do espaço exterior, a vegetação - que bem que ficam ali as oliveiras e os pinheiros mansos! - os monumentos envolventes, a esplêndida toalha azul do rio, a elegante e belíssima ponte 25 Abril e as vistas da outra margem, tudo tem um encanto desmedido, para olhos capazes de apreciar. Almoçámos ali mesmo sobre o rio, ao lado do padrão dos descobrimentos. Não foi barato (para a nossa carteira), mas soube bem e permitiu poupar tempo. Tempo a que roubámos alguns minutos para admirar a monumental rosa-dos-ventos e o mapa-mundo em chão de mármore à «popa» do dito padrão. Ideologias e «patrioteirismo» à parte, há ali matéria para interessantes lições de história, de geografia e de geologia, para miúdos e graúdos de qualquer idade, proveniência ou nacionalidade. A que muitas pessoas se prestavam, aparentemente sem se incomodaram umas às outras, o que foi bom de ver.
Por sugestão da nora, que me adivinhou o desejo, subimos pelo «passadiço» sobre o MAAT, a pé, até ao Palácio Nacional da Ajuda. Um bom exercício físico, depois do passeiozinho à beira-rio, a levar-nos até zonas pobres, onde a necessidade leva ao cultivo de hortas em espaço que bem merecia melhor sensibilidade e tratamento pela autarquia, permitindo precisamente o seu uso para esse fim pelas pessoas que já se dedicam à actividade. Seria mais útil, mais aprazível, mais higiénico e mais digno. Para todos. Entretanto, o mais pequenino dormia tranquilamente, embalado pelas oscilações do percurso. E dessa forma nos recolhemos à sereníssima visita ao grandioso e esplendidamente recheado palácio. Esta visita está tão estupendamente bem estudada, organizada e disposta que não são precisos quaisquer «audioguias»: em cada sala, encartes plastificados, disponíveis em suportes apropriados, de tamanho superior ao A4, mais do que um em cada uma de várias línguas, com informação global resumida na face e especificações no verso, permitem a cada pessoa inteirar-se facilmente do que vê. E é só desfrutar: a variedade e curiosidade das salas, o mobiliário, os lustres, as cerâmicas, as esculturas…, tudo criteriosamente disposto. São muitas as curiosidades/preciosidades, como a sala oriental ou a sala de mármore, de paredes e tectos e motivos tudo trabalhado naquela rocha, assim como tampos de móveis, em outras salas e corredores, de brechas tão belas e tão diversas que é agradavelmente pedagógico associá-las a variedades do mesmo tipo de rochas sedimentares detríticas, que se formaram a partir de calhaus diversos compactados e cimentados em camadas ao longo do tempo geológico. Por esta razão, para além da história, da sociologia, da cultura ou da política, aquele magnífico espaço alberga muitos outros ensinamentos, como são os de geologia. Esta visita pode demorar o tempo que se quiser. Fica (apenas) por dois euros e meio, quem sabe se por os turistas ainda não terem «descoberto» este palácio…
(continua)

José Batista d’Ascenção

sábado, 25 de agosto de 2018

Sobre costumes brandos e subservientes, em palavras e actos - um pensamento cortante

Imagem obtida aqui.
Num país de «brandos» costumes, particularmente em relação a quem pode (e põe e dispõe) e não cumpre, mais valia falarmos de complacência ou conivência dos poucos a quem compete formal e legalmente decidir e agir e da indiferença e alheamento dos muitos que deviam ser escrupulosos na sua prática pessoal e na exigência do cumprimento de deveres e direitos cívicos próprios e alheios.
A «justiça» é provavelmente o sector cujo funcionamento mais directamente condiciona e revela um viver (as)social com questões permanentemente (e intencionalmente?) por resolver, incidindo em matéria jurídica social, financeira, comercial, industrial e ambiental e alastrando a certas decisões que passam por políticas, as quais, por essa via, escapam à criminologia, e progredindo pelas mais diversas áreas de que as do desporto ou a da «indústria» dos incêndios servem como exemplo. E veja-se como isso convive com certos procedimentos e formas de linguagem costumeira muito formais, em expressões como «meritíssimo juiz». Meritíssimo porquê? Não se trata de abandalhar uma função, nem, muito menos, de diminuir quem a desempenha. Mas meritíssimo vem de mérito, o qual, tantas vezes não se vislumbra na acção global ordinária e extraordinária da «justiça»… Idealmente, o termo devia corresponder ao rigor e valia das sentenças e não ao título ostentatório ou à forma de tratamento dirigida a quem é pago para atempada e com verdadeira justiça as produzir.
Imagem retirada daqui.
Na educação, pilar que devia ser da formação de crianças e jovens, a falta de rigor, de clareza e muitas vezes de simples aprumo e dignidade é confrangedora. Permanecer poucos minutos nos corredores das escolas, em tempo de intervalo de aulas, ou à entrada e saída dos estabelecimentos de ensino, em «hora de ponta», é revelador e dispensa a referência a pormenores. Quem duvidar que experimente. E não vale extrapolar daqui que «o mundo está perdido». Se estivesse, não estaria mais que em quaisquer outros momentos da História, e seria da responsabilidade daqueles a quem cabe educar e formar, o que inclui os que se queixam da falta de responsabilidade da juventude (imaginariamente) «perdida», mas que se esquecem de estender a razão dessa falha a… si próprios e aos que elegeram como seus representantes políticos. Passemos agora ao topo da escala académica e foquemo-nos momentaneamente numa forma de tratamento institucional como a de «magnífico reitor». Este tratamento teria cabimento, em certos casos, após o termo do desempenho da função ou, vá lá, durante o seu decurso. Mas aplicado à partida, ainda que simbolicamente? A forma «magnífico reitor» talvez tivesse justificação no caso de alguém que liderasse uma instituição que tivesse sido um farol para o conhecimento da humanidade em qualquer área do saber. Mas já soa a falso no caso de instituições, mesmo que centenárias, em que a «endogamia» e a preferência nas relações foram sempre mais fortes e impeditivas da emergência do talento que, em todos os tempos, não pode ter deixado de existir. Bem se sabe que alguns prémios Nobel podem estar «guardados» para quem os há-de receber, mas, as academias portuguesas, a começar pelas «velhinhas», tão cheias de formalismos e vestimentas e praxes (algumas ridículas e, nalguns casos, criminosas) não deviam estimular outros valores e almejar outros objectivos? Há dois anos estive numa universidade de uma pequena cidade holandesa (Leiden) e fiquei encantado ao ver uma parede repleta de assinaturas, onde «descobri» as de personalidades como Einstein, Lavoisier, Planck, Rutherford, Niels Bohr, Schrödinger, Becquerel, por entre muitas outras, e não pude deixar de pensar alto: - quantos destes homens visitaram alguma vez universidades portuguesas?, ao que alguém, ao meu lado, respondeu: - a quase totalidade deles, nunca!
Mas se «insuflamos» as palavras para corresponderem ao ego e à presunção das pessoas em posição de superioridade, pessoas há que usam até os termos que literalmente remetem para funções de serviço aos outros como poleiros para a sua fatuidade. É o caso do termo «ministro», que remete para aquele que serve e, de alguma forma, está em plano inferior a quem serve. Mas foi em Portugal que um político terá telefonado, muito vaidoso, ao seu progenitor, para entusiasmadamente lhe dar a notícia: - Pai, já sou ministro!
Compreende-se.
Temos assim um país em que as funções superiores são para as pessoas se sentirem superiores, o que elas fazem diligentemente, e não para servirem genuinamente a sociedade. Ou seja: a função é para as pessoas e não as pessoas para a função.
A multiplicação e a «exigência» do tratamento de «doutor» para quem tirou uma pobre e breve e algo exótica licenciatura numa qualquer (modesta) universidade (das muitas que há por aí) é outro exemplo elucidativo. Concordo com aqueles que, sem desleixar a deferência devida a quem a merece, propõem o abandono de tão enfatuados e vazios (e às vezes fraudulentos) tratamentos.
Por mim, até o formal «excelentíssimo senhor», embora abreviado, ainda habitual nos requerimentos mais diversos dispensava. Senhor ou senhora presidente ou director(a) é um modo de tratamento suficiente e adequadamente digno, bastando como fórmula de uso comum.
Termino com um esclarecimento: o que antes ficou escrito tem por base um desejo antigo de modificação do meu país: da presunção e da sobranceria e do respeito fingido na direcção da autenticidade e da simplicidade e do respeito exemplar e gratamente vivido. Sem dispensa da delicadeza e da sensibilidade, enfim, da boa educação.

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Dos tempos dos meus avós aos tempos de hoje

Página de abertura do livro de leitura da
3ª classe (usado nas décadas de 50 e de 60
do séc. XX). O quadro resume a ideologia
da ditadura do «Estado Novo»
Meu neto:

Já não tinha bem presentes as reacções que acompanhei no teu pai quando ele tinha a tua (tão tenra) idade. Nos dias recentemente passados contigo, em que olhei bem para ti, e em que te senti contra o peito, pude observar como no início não seguias um objecto ou pessoa que se deslocasse à tua frente, como o teu sorriso era indefinido e como, apenas uma semana depois, eras capaz de acompanhar com o olhar quem (e o que) se movimentasse diante de ti. E como passou a ser aberto o sorriso com que respondias às festas que te faziam e arrulhavas de prazer quando tinhas a barriga cheia, estavas confortável e o sono ainda não tinha chegado. Também reparei como estás bem tratado, sempre bonito e bem vestido e limpinho, e como tens aumentado de peso regularmente e pareces respirar saúde. É um alívio, sabes? Nós, os avós (e os pais) temos sempre receio de que possa haver algum problema: seguimos com rigor os procedimentos recomendados pelo médico, vais às consultas estipuladas e à vacinação e ficamos satisfeitos por vermos clinicamente confirmado até aquilo que é de constatação óbvia e directa. Mas gostamos que no-lo afirmem e reafirmem e que se façam todos os testes a preceito. Tu sabes lá…
O ditador do «Estado Novo» glorificado,
tal como a sua obra, no mesmo manual.
Noutros tempos não era assim. Nem nas condições, nem nas possibilidades nem nos procedimentos. Muitas das preocupações eram as mesmas: alimentar-se bem, ter saúde, estar minimamente confortável, mas havia outras tão prementes, quais fossem as de ganhar o pão de cada dia, sobretudo, e de ter ânimo para porfiar nessa mesma luta, sem desfalecer. Falo-te da vida de pessoas humildes, muito esforçadas, que viviam num regime de falta de liberdade, muito limitadas no acesso à escola, num ambiente rural onde apenas alguns poucos, muito poucos, escapavam à tirania dos patrões, donos de quase todas as terras, às «prescrições» morais do senhor padre, e à fome que os torturava. E para as crianças que foram mandadas à escola (umas sim e outras não…) havia ainda uma outra autoridade aterradora: a professora ou professor que dispunha de uma régua com que podia bater desalmadamente nelas, e insultá-las e pô-las de castigo. E os livros, se soubesses como eram alguns deles… Um dia mostro-te. Havia meninos que faziam 3-4 quilómetros a pé para chegarem à escola, descalços, de barriga leve e fraca bucha a servir de merenda, ou sem ela, e regressavam a casa do mesmo modo, pelo mesmo caminho, com a mesma ou mais fome ainda. E era assim quando as temperaturas de Maio e Junho afugentavam o frio, como também era assim no Inverno quando chovia ou havia geada ou neve. E nos dias longos, regressar da escola não era grande alívio porque, como ainda havia sol, os meninos iam ajudar no pastoreio dos animais (ovelhas, cabras, às vezes também o porco…) ou em certas lides do campo (amanhar a terra, regar, sachar) ou da casa (preparar a comida, se havia com quê, acarretar água, cuidar de irmãos mais pequenos…). O médico era uma personalidade longínqua, lá na vila, sede do concelho, a mais de 10 Km: e não era costume visitar os pobres muito pobres, em caso de doença, porque não havia assistência médica e eles não podiam pagar. Assim se vivia lá nas terras do interior, ao tempo dos teus trisavós, de quem eu gostava muito. E também era comum viver em casas muito precárias, onde fazia muito frio no Inverno e um calor tórrido no Verão. Casas que não tinham electricidade (e por isso não havia boa iluminação, nem frigoríficos, nem televisões nem computadores, nem outros electrodomésticos). E as ruas, de noite, se não fizesse lua, eram escuras, às vezes sob um céu estrelado – muito bonito! -, porque a corrente eléctrica, que só foi inaugurada na sede do concelho em 1952, só mais tarde, nalguns casos muito mais tarde, chegaria às aldeias. E tão pobres eram as casas que não tinham água canalizada, nem casas de banho. Calcula, a maioria das pessoas lavava-se mal, era fraca a higiene, e por isso era frequente haver muitos piolhos nas cabeças e pulgas e percevejos nas roupas e nas enxergas de palha em que as pessoas dormiam. Dá para imaginar? – Pensa em alguém esfomeado, andrajoso, não raro desdentado, coberto de piolhos e descalço, analfabeto, a viver numa casa miserável e a trabalhar pesadamente enquanto houvesse luz do dia. Multiplicando pela grande maioria dos habitantes adultos do campo tem-se uma ideia do que era a vida nas aldeias de Portugal há cem anos e nas décadas posteriores até que eu, teu avô, nasci. Não vou carregar nos tons de negro referindo os tempos de guerra (1ª guerra mundial, guerra civil espanhola, 2ª guerra mundial e, mais tarde, a guerra colonial portuguesa), tempos de muito mau viver, por vezes com grandes sofrimentos na alma e no corpo.
Queres agora saber uma coisa curiosa? Apesar de todas as desgraças, ou talvez por causa delas, as pessoas aproveitavam intensamente os momentos de que pudessem retirar alguma felicidade. O teu trisavô, pelo meu lado materno, por exemplo, para além da satisfação no namoro e no casamento de mais de meio século com a mulher a quem gostosamente se dedicou durante todo o tempo (foi ele que mo disse), sentiu-se muito feliz com os esforços que fez, sozinho, para aprender a ler, e conseguiu. Assim como procurou sempre, num tempo em que «a lei» era simplesmente a do mais forte, respeitar toda a gente, especialmente os mais fracos (nota que ele acentuava muito), e foi respeitado por (praticamente) todos os que o conheceram. Eu testemunhei isso mesmo, no tempo privilegiado de convívio que tive com ele e de que te posso dar conta. Assim como do seu gosto pelo humor e pela alegria, que é um dever cultivar.
Não te maço mais, por agora. Hás-de brincar muito e crescer bem.
Beijinho. 

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O tempo parado e o tempo que voa e o que só se adquire com o tempo vivido

Imagem da Wikipedia
Momentaneamente, quando as ocupações são gratas e/ou as companhias são agradáveis, o tempo escapa-se, fugindo velozmente sem darmos por isso (e contrariamente à nossa vontade): é assim numa festa ou encontro maravilhoso ou em situações em que estamos no centro das atenções e essas atenções nos fazem sentir particularmente confortáveis. Já o tempo que antecede esses momentos pode ser de espera angustiante, um arrastar lento de calendários e relógios, como acontece com crianças e jovens em ânsias, expectativas ou sonhos encantados.
Também no decurso da idade de cada um, a velocidade do tempo é (subjectivamente) muito desigual: na pré-adolescência parece que nunca mais chega o tempo de ser adulto, alcançando um estatuto de emancipação e de independência «universalmente» reconhecido; mas, passada a meia-idade (mais precoce ou mais tardiamente sentida), muitas pessoas, talvez mais as mulheres, começam a ter problemas em revelar os anos que têm, esforçam-se por parecerem mais novas (o que em muito casos conseguem admiravelmente) e sentem satisfação com sentenças vulgares, do tipo - «ninguém te daria mais de X anos», em que X tem um valor significativamente inferior à sua idade real.
Se me aventurasse por campos que não são os dos meus conhecimentos mais profundos, resumiria tudo numa frase banal, do tipo: «o tempo cronológico não é igual ao tempo psicológico», e ilustrava-a com uma situação intuitiva: suponhamos um rapaz que esperou dez minutos pela sua amada, que não teve culpa da demora, na rua, numa noite particularmente fria e chuvosa, e que passou depois duas horas com ela, em ambiente agradável para ambos, tendo recebido os carinhos mais apetecidos. Este rapaz, provavelmente, sentiu os tempos de espera e de convívio com uma duração bem diferente da medida pelos relógios…
É difícil dar uma definição indiscutível de tempo. Sem trazer ao caso os movimentos de rotação e de translação da Terra e a inclinação do seu eixo, responsáveis pela sucessão dos dias e das noites, pelas estações do ano e pela desigualdade da duração dos dias ao longo do ano, quedemo-nos apenas pela mera passagem do tempo durante a nossa vida, e pela insatisfação que, passada a infância, é comum cada qual sentir com a idade que tem: ou porque se é (muito) jovem e se anseia pelo tempo (promissor) que há-de vir ou porque se sente preocupação e angústia com o escoar do tempo que resta viver. Contudo, o que devia ser exaltante é a energia de quem é novo e a possibilidade de aprender cada vez mais e a vontade de realizar sonhos (possíveis ou impossíveis) e a busca e as diligências, enfim, a luta, para que tal se concretize. Mas não é nem devia ser menos compensador e gratificante olhar para trás (e à volta e para a frente e ao perto e ao longe) e analisar o percurso realizado ou (ainda) a realizar, com a sabedoria e a serenidade para compreender (e relativizar) fracassos e comprazer-se com os sucessos, que sempre os há, sem esquecer o testemunho do tempo vivido a prestar aos mais novos, em transmissão pessoal de afecto, de conhecimento e de cultura, de suave proximidade e de exemplo, tão necessários a todos os que quotidianamente buscam a beleza, a bondade e a generosidade e o proveito dos caminhos (sempre imponderáveis) da vida. E pessoas há que o sabem fazer e fazem muito bem. Em seu benefício e dos demais, como convém. Ora, isso só é possível a quem viveu muito (e bem, às vezes, e menos bem, outras vezes) e durante muito tempo, porque experiência e «têmpera» adquirem-se no tempo e com tempo.
Não tentei ignorar, por cobardia, a via dolorosa daqueles em quem o tempo impregnou marcas insuportáveis ou os que parecem ter nascido só para sofrer e o modo como, uns e outros, sentem a passagem do tempo: admito que se sintam escravos do sofrimento, a que se conform(ar)am ou com que se revoltam, desconhecendo se, por haver intervalos com fugacidades agradáveis ou menos dolorosas, isso os prende energicamente à vida. Nem ignoro aqueles que, por inferno continuado ou em picos de desespero, põem fim à existência, deixando um escuro na sua passagem pelo tempo e na nossa compreensão dos dramas do seu viver.
Atrás dos tempos tempos vêm, uns diluindo ou apagando os sinais dos outros. A finalidade dos tempos, da nossa passagem pelo tempo ou da passagem do tempo por nós não é racionalmente clara. Assim mesmo, cabe-nos viver no nosso tempo o melhor que soubermos e nos for possível.
E o nosso tempo é ontem (obrigado, pais e avós), hoje (olá, familiares da minha geração e amigos) e amanhã (felicidades, meus filhos netos).

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

«Se Isto É Um Homem», livro de Primo Levi

Não tendo dotes de analista político e sabendo de História o pouco que aprendi no liceu, acrescido da leitura banal de livros e jornais, mais a atenção comum que vou prestando à actualidade (política, informativa e ambiental), dou comigo a recear pelo futuro da humanidade em geral, e especificamente pelo destino próximo da população europeia, para terminar invariavelmente a pensar em jovens como os meus filhos e os filhos que eles têm ou hão-de ter.
No coração da Europa, o espaço geopolítico e económico a que, como portugueses, estamos lateralmente agarrados e de que desesperadamente dependemos, já sobram poucos dos que viveram os horrores da segunda guerra mundial, como memória viva do que não devia ter acontecido (nem deve acontecer) nunca. Sempre me pareceu que eram/são esses o principal travão (porque memória viva) a que as sociedades resvalem para a «repetição» da História, em guerras pavorosas, «escrevendo» a sangue e sofrimento as páginas sucessivas da «Ilíada» interminável que é a aventura humana no planeta.
Por isso imergi na leitura do livro em epígrafe. E tomara que muitos o lessem, como factor de reflexão sobre a desumanidade do Homo sapiens e medida preventiva de acções bélicas consequentes. O livro pertence à «colecção mil folhas», editada pelo «Público» em 2002, com tradução de Simonetta Cabrita Neto. Edição barata, não isenta de gralhas, uma limitação que não teria sido difícil de colmatar respeita a várias expressões em alemão não acompanhadas de tradução, entre parêntesis ou em notas de rodapé, o que facilitaria e aumentaria o gosto da leitura.
O motivo destas notas residem em citações como estas:
«Pode acontecer que muitos, indivíduos ou povos, julguem, mais ou menos conscientemente, que “todos os estrangeiros são inimigos”. Na maioria dos casos esta convicção jaz no fundo dos espíritos como uma infecção latente;» (introito, pág. 7)
(…)
«Os homens só muito raramente são capazes de raciocinar, quando o que está em jogo [iminente] é o seu próprio destino»; (pg. 34)
(…)
Sobre os comportamentos no Lager (quadrado com 600 metros de lado, cercados por duas redes de arame farpado, a mais interior electrificada com alta tensão, com dezenas de barracas de madeira e estruturas associadas, de um dos campos de concentração do complexo de Auschwitz): «Não acreditamos na dedução mais fácil e óbvia: que o homem é fundamentalmente brutal, egoísta e estulto na sua maneira de actuar, quando as superestruturas civis lhe são tiradas»…(pg. 97) «Julgamos, pelo contrário, que em relação a isso, nada mais se pode concluir, a não ser que, diante das carências e do mal-estar físicos obsessivos, muitos hábitos e muitos instintos sociais ficam completamente silenciados.» (pg. 98)
Mas, qual darwinismo extremo, é «digno de atenção este facto: verifica-se que existem entre os homens duas classes particularmente bem distintas: os que se salvam e os que sucumbem. Outros pares de contrários (os bons e os maus, os sensatos e os insensatos, os cobardes e os corajosos, os desgraçados e os afortunados) são muito menos nítidos»…, admitindo «graduações intermédias mais numerosas e complexas.» (idem)
(…) 
«Considera-se tanto mais civilizado um país quanto mais sábias e eficientes são as leis que impedem ao miserável ser demasiado miserável, e ao poderoso ser demasiado poderoso.» (idem)
(…)
«Na história e na vida parece às vezes vislumbrar-se uma lei feroz, segundo a qual “dar-se-á a quem tiver; tirar-se-á a quem não tiver”. No Lager, onde o homem está só e a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial, a lei iníqua está abertamente em vigor, é reconhecida por todos» [todos os prisioneiros, atenção - é a eles que esta passagem se refere]; (pg. 99)
(…)
Só mais uma citação, para ilustrar aqueles sempre raros exemplos que redimem a condição humana: «um operário civil italiano trouxe-me um bocado de pão e os restos do seu rancho todos os dias, durante seis meses; ofereceu-me uma camisola sua cheia de remendos; escreveu por mim um postal para Itália e fez-me chegar a resposta. Por tudo isto, não pediu nem aceitou alguma compensação, porque era bom e simples, e não achava que o bem devesse fazer-se para obter compensações.» (pg. 133)

Seria bom não esquecermos.

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Dinossauros: ciência e conhecimento para todos no «Dino Parque da Lourinhã»

Ontem pude visitar o parque de dinossauros da Lourinhã. Fui com a família e todos gostámos. Numa área aprazível de pinhal (relativamente) jovem, com boa sombra e brisa fresca, lá estavam as réplicas dos mais diversos tipos de dinossauros, em tamanho natural, com legendas explicativas curtas, claras e cientificamente rigorosas, em quatro línguas, ladeando trilhos de boa largura onde passeavam visitantes de todas as idades, entre os quais muitas crianças, muito activas e interessadas. Os modelos são de tamanhos muito diversos (de dezenas de centímetros até 30 metros de comprimento, por exemplo), como terão sido na altura, estão muito bem executados e enquadram-se muito bem no ambiente. Boa parte deles, alguns dos maiores, referem-se a dinossauros descobertos em Portugal,  particularmente na Lourinhã. Pode-se começar pelos que viveram há mais tempo, escolhendo os percursos temáticos que nos levam sequencialmente até aos mais recentes, nunca menos que 65 milhões de anos. [Um milhão de anos é muito tempo: segundo contas feitas pelo Professor Galopim de Carvalho se uma pessoa tocasse um sino ao ritmo de uma badalada por segundo, e não parasse para comer nem para dormir nem para descansar, tocaria o sino ininterruptamente durante 11 dias, 13 horas, 46 minutos e 40 segundos]. Ao longo dos percursos há locais com mesas e bancos de madeira, muito apropriados para quem leve merenda e descanse para saciar o apetite. Antes disso, qualquer pessoa pode deslocar-se ao longo e de frente de uma enorme escala de tempo evolutivo que assinala a origem do universo, do sistema solar e, claro, do planeta Terra, até à actualidade.
Há no entanto que adquirir ingressos pagos para entrar no recinto. A área de entrada é muito convidativa e ampla e bem guarnecida de fósseis, em exposição, com uma zona onde trabalham paleontologistas, bem à vista, por detrás de uma vitrina. Há também a área (mais) comercial com «bonecada dinossaurica» em que não nos demorámos. Segue-se para uma área aberta, também ampla mas (ainda) coberta com muitas mesas com bancos de madeira, zonas de ateliês onde crianças podem dedicar-se a encontrar esqueletos de dinossauros no interior de paralelepípedos de uma espécie de cimento, do tipo e do tamanho de tijolo burro (não muito grandes: com menos de um palmo de mão adulta de dimensão maior e espessura de menos que uma mão de travessa), áreas de areia com apetrechos plásticos como crivos do tipo dos da praia para crianças e um parque infantil com os «engenhos» (mais) habituais. Enfim, uma coisa bem concebida, atraente e funcional.
O único aspecto que é menos convidativo, especialmente para os portugueses de menos posses, será o preço: 12,50 euros por adulto, com pouca variação para grupos… E é pena, porque, como sempre, parece que os (mais) pobres estão impedidos de usufruir de uma infraestrutura de alto valor pedagógico e científico. Por essa razão, vale a pena as escolas tentarem levar lá os miúdos, pequenos e graúdos, uma vez que se consegue algum desconto e não é impossível que, em muitos casos, as comunidades escolares, com algum apoio das autarquias ou outras entidades, consigam custear a visita a meninos economicamente menos favorecidos, de preferência sem dar visibilidade a essas situações. Isto não tira nenhum valor a parques como este da Lourinhã, uma ideia, uma iniciativa, uma estrutura e um serviço de que devemos usufruir, fazendo-o sobreviver. Fundamentalmente, para elevar a condição de todos os portugueses, de modo a que, no futuro, a boa formação, o saber e a cultura sejam entre nós mais «democráticos».
Como convém.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Eucaliptugal: o país florestal que deixamos aos nossos filhos

Imagem obtida aqui
Isto vai repetir-se quantas vezes? E depois disto o que virá?
Pedir desculpa a filhos e netos adianta alguma coisa?

José Batista d'Ascenção

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

A «protecção civil», o «instituto de conservação da natureza e das florestas» e o mais que seja.

Imagem do jornal «Público»
As imediações de Monchique ardem calamitosa e «interminavelmente», mesmo tendo as temperaturas baixado, desde domingo, para valores não muito elevados para a época. Claro que o clima de Portugal é, na maior parte do território, de tipo mediterrânico e, por isso, os incêndios florestais tendem a ser algo com que temos que lidar sobretudo nos meses de Julho, Agosto e Setembro. Porém, a realidade podia e devia não ser tão má, para as gentes desprotegidas do interior, para a economia e para o ambiente natural, se nos dedicássemos a fazer tudo o que a prevenção aconselha, assim como não devia ser tão artificial o aparato e a encenação (e a hipocrisia) das instituições relacionadas, das autarquias e do governo. Da eficácia de quaisquer deles estamos conversados. Quanto à confiança nas suas acções, admito que nem eles mesmo acreditem, embora disfarcem razoavelmente, especialmente quando aparecem nas televisões e se pronunciam como se tivessem decorado (às vezes mal) um prontuário.
Não sei quando é que metemos na cabeça que temos de tratar da floresta para os nossos netos e bisnetos. No passado, quando não havia prodígios tecnológicos, já se fez isso. Nos tempos actuais não pode ser impossível fazê-lo. E isto não é um problema apenas português. A Europa, designadamente, que tanto dinheiro nos fez chegar para estádios de futebol (pelo de Braga, a autarquia paga, actualmente, cerca de 900 € por hora!, e aquela infraestrutura não serve para mais nada senão para se fazer um jogo de futebol quinzenalmente. Parece até que o município já estará disposto a vendê-lo, ao que eu sugiro que o entregue dado a quem assuma as despesas, porque estou farto de um país roto a fazer de rico) e autoestradas e empresas fictícias, bem merecia líderes que olhassem para o ambiente e, especialmente, para os espaços florestais. Há muitas espécies resistentes e resilientes ao fogo, embora não se prestem à voracidade das empresas exploradoras do eucalipto. Acontece que dependemos estritamente de biodiversidade, de oxigénio e de clima suportável. E sem espaços florestais adequadamente geridos e respeitados não o conseguimos.
A mentalidade reinante é, porém, um problema, porque nem sequer vemos oficialmente a floresta como mais um componente da natureza. Daí aquele nome estapafúrdio de «instituto da conservação da natureza e das florestas». Aqueles senhores devem confundir a monocultura do eucalipto, por exemplo, com o conceito de floresta (onde há árvores, arbustos e vegetação rasteira e onde habitam e circulam animais). Dá-lhes jeito assim porque isso lhes proporciona cargos. E os cargos, essencialmente burocráticos, quase de fachada, dão-lhes proveito. E depois, para além deles há muita gente que faz negócios à custa da alteração/destruição do coberto vegetal. E muitas pessoas, a maioria bem intencionadas, colaboram activa ou passivamente nesses procedimentos exploratórios/predatórios e respectivos negócios, enquanto outras fazem esforços desesperados a combater a praga dos incêndios, de que resultam severas consequências. De modo (mais) claro: há uma indústria do fogo e poderosos interesses correlativos. A que se associa irresponsabilidade, ignorância e demência. E impunidade: política, social e judicial.
Mas os fogos de grande dimensão, tirando condições específicas de certas alturas (temperaturas muito altas, baixa humidade, vento forte…) não são uma inevitabilidade.
Porque é que inventamos tanto, e tão mal, se o pagamos tão caro?

José Batista d’Ascenção