Há livros que nos surpreendem. Suporá o comum dos mortais que o que tem na memória é um registo objectivo do que se passou, que os acontecimentos históricos se deve(ra)m a causalidade determinada (que não a casualidade estatística), que os executivos influenciam decisivamente o desempenho das grandes empresas ou que um médico ou um juiz, de ordinário, fazem diagnósticos ou produzem sentenças seguindo com a maior coerência as perícias ou as provas de que dispõem. Ou seja, um indivíduo normal julga-se um ser racional e admite que os seres humanos que são como ele procedem comummente com racionalidade. Os bons publicitários sabem que não é bem assim. Os políticos hábeis também. E os negociantes eficazes, a mesma coisa. É pois provável que tal indivíduo tenda a relativizar ou a não considerar a enorme importância do acaso e da sorte nos acontecimentos da vida das pessoas.
Ou seja: as coisas e os fenómenos diferem das ideias que temos deles. Daniel Kahneman, psicólogo, galardoado com o prémio nobel da economia, baseado em conhecimento produzido por si e por outros, mostra-o abundantemente neste livro. Impressionei-me. Eis algumas razões:
«Podemos ser cegos ao óbvio e somos também cegos à nossa cegueira.» (p.35) E «a inteligência elevada não torna as pessoas imunes aos enviesamentos». (p. 68)
«Os nossos pensamentos e o nosso comportamento são influenciados, muito mais do que sabemos ou desejamos, pelo meio a cada momento». (p. 172) «Estímulos não notados no nosso ambiente têm uma influência substancial nos nossos pensamentos e ações. Estas influências variam de momento a momento». (p. 297)
«As pessoas […] procuram dados que serão provavelmente compatíveis com as crenças que detêm». (p. 112) Os professores, por exemplo, tendem a inflacionar a pontuação de uma resposta deficiente se antes dessa tiverem avaliado outra resposta muito boa do mesmo aluno, o que se compreende: se o aluno se saiu bem no primeiro caso não cometeria erros idiotas no segundo. Se a ordem de classificação for a inversa, a classificação total é penalizadora (lê-se na p. 114)
«Quando lhes pedem para reconstruir as suas antigas crenças, as pessoas reproduzem, em vez disso, as suas crenças atuais […] e muitas não conseguem acreditar que alguma vez tenham achado outra coisa.» (p. 267)
Considere-se «a história de como a Google se transformou num gigante da indústria tecnológica. Dois estudantes criativos de Ciência Informática da Universidade de Stanford apareceram com uma forma superior de procurar informação na internet. Procuram e obtêm financiamento para iniciar uma empresa e tomam uma série de decisões que resultam bem. […] Numa ocasião memorável tiveram sorte […]: um ano depois de terem formado a Google estavam dispostos a vender a sua empresa por menos de um milhão de dólares, mas o comprador achou o preço demasiado elevado» (p. 264)
«A existência de mais de cinquenta anos de pesquisa é conclusiva: para uma grande maioria dos gestores de fundos, a seleção de ações é mais parecida com o lançamento de dados do que com um jogo de póker.» (p. 283)
«A imagem frequentemente usada da “marcha da História” implica ordem e direção. […] A ideia de que os grandes acontecimentos históricos são determinados pela sorte é profundamente chocante, apesar de ser demonstravelmente verdadeira.» Evoquemos o papel de Hitler, de Estaline e de Mao Zedong, no século XX: […] «houve um momento no tempo, precisamente antes de um óvulo ser fertilizado, em que havia uma hipótese de 50 por cento de o embrião que se tornou Hitler poder ter sido feminino. Combinando os três acontecimentos, havia uma probabilidade de um oitavo [12,5%] de um século XX sem qualquer dos três grandes vilões»… (p. 287)
«Radiologistas experientes, que classificam radiografias ao tórax como “normais” ou “anormais” contradizem-se 20% das vezes, quando veem a mesma chapa em ocasiões separadas» (p. 296)
Warren Gamaliel Harding foi o vigésimo nono Presidente dos Estados Unidos da América (1921-1923), sendo que a «única qualificação para esse cargo era ter uma figura que parecia talhada para a função. Com queixo quadrado e de elevada estatura, era a imagem perfeita de um líder […] As pessoas votaram em alguém que parecia forte e decidido»… [311-312 p.] Este fenómeno não é restrito ou datado, e não apenas na América…
Sobre o optimismo, que se considera essencial para o sucesso, diz o autor: «ainda estou para conhecer um cientista com sucesso a quem falte a habilidade para exagerar o significado daquilo que está a fazer e acho que alguém a quem falte um sentido ilusório de importância esmorecerá perante as repetidas experiências de múltiplos pequenos fracassos e raros sucessos, que é o destino da maioria dos investigadores.» [351 p.]
Os nossos sentidos enganam-nos frequentemente. «O mesmo som será experimentado como muito elevado ou bastante ténue, dependendo de ter sido precedido por um sussurro ou por um rugido. […] De igual modo, é preciso conhecer a cor de fundo para saber se uma faixa cinzenta numa página parecerá escura ou clara.» (p. 363)
Resumindo: a mente humana é muito curiosa (na p. 187 há uma referência a António Damásio) e estamos longe de abarcar a totalidade do seu funcionamento. Este livro, extenso, profundo e revelador, muitíssimo para além dos excertos referidos, aproxima-nos da sua compreensão. Embora parte significativa do seu conteúdo não seja acessível a um público muito vasto, qualquer pessoa ganha em lê-lo.
José Batista d’Ascenção