Publicado quase em meados do mês, fui procurar este livro, de que estava à espera. Gosto particularmente do desassombro, da clareza, do rigor e da firmeza de posições da autora e não fiquei desiludido. Por outro lado, admiro alguém que, afirmando que «Nunca passei fome. Os meus filhos nunca passaram fome. Os meus netos nunca passaram fome.», se pronuncia sobre o tema por imperativo de consciência, sem ceder à complacência de tratar os pobres como coitadinhos, mesmo quando factualmente o são e se comportam em conformidade. E mostra, documentalmente, que o seu sentir e pensar são assim desde adolescente, quando - só então, mas não por responsabilidade sua - descobriu que havia “pobres, miseráveis, a morrer de fome”, e escrevia «quando vou aos pobres tenho vergonha de ser rica».
Na sua abordagem, Maria Filomena não deixa nada de fora. Na página 28 refere mesmo «o facto de os meninos da casa [dos ricos, seus amigos] terem relações sexuais com as criadas». Neste ponto, a realidade descrita foi em muitos casos extensiva aos maridos das patroas e até ao pai e filhos (machos) da mesma família, em simultâneo. Ouvi-o da boca de colegas, que o referiram descontraidamente, entre 1980-85, quando frequentava a Universidade de Coimbra. De resto, um candidato presidencial, Manuel Alegre, também referiu o facto, enquanto sujeito da acção, não recordo agora se em resposta a pergunta mais indiscreta ou se naqueles assomos de franqueza que tornam os homens se não melhores, pelo menos mais iguais a si próprios… O “bisturi” de Maria Filomena também não esquece os “meninos ricos entretidos a brincar às revoluções”, nos tempos seguintes ao 25 de Abril, motivos por que se fartou, tendo deixado a faculdade. Em Setembro desse ano, notava «mais uma vez que, na oratória revolucionária, nunca se falava de pobres», mesmo quando se prometia a todos «pão, paz, saúde e educação, sem que alguém entendesse como isto poderia acontecer». No estrangeiro, designadamente nos EUA, onde foi em 1978, viu que «em pleno dia, os transeuntes passavam por cima dos sem-abrigo, sem notar que estavam ali pessoas», percebendo que no país do sonho americano, «a pobreza era vista, não como uma desgraça, mas como um falhanço moral». E refere que, em 1962, a obra de Michel Harrington, intitulada The Other America revelava «que existiam nos EUA entre 40 a 50 milhões de pobres», o que «chocou o Presidente J. F. Kennedy». Mais adiante, torna ao Portugal pós-25 de Abril, e escreve, resoluta: «Quem ideologicamente nunca deixou o século XVIII é natural que defenda que os pobres não sofrem» (pág. 45).
No capítulo 3, é tratado «O caso inglês». Aí se diz que «a pobreza só foi ‘descoberta’ no século XIX, quando alguns reformadores ingleses (…) publicaram obras sobre o assunto» (pág. 51). Logo adiante escreve: «o problema deixou de ser visto como o era no princípio do século, com Malthus, que se referia aos pobres como o excesso da população que vivia da ‘miséria e do vício’»… e outros que falavam «dos mendigos (…) que não querem trabalhar». Por volta de 1900, para Churchill, entre outros, a pobreza passou a ser vista como «um problema da sociedade e não dos pobres» (pág. 56).
No capítulo 4, busca-se informação sobre “artesãos, operários e proletários” portugueses, tarefa difícil pela escassez de documentação escrita rigorosa. Mas com elementos de sobra para referir, relativamente aos trabalhadores do Norte do país que, «se a alimentação era má, o alojamento era pior» (pág. 72), e que «a taxa de mortalidade infantil (…), entre 1887 e 1896, no Porto, «nunca desceu abaixo dos 226 por mil por ano» (pág. 73). A violência da fome e da miséria levou a várias greves que, nalguns casos, motivaram a intervenção da polícia e da tropa, que disparou sobre os trabalhadores, causando mortos (pág. 78). «Em 1903, ocorreu a maior greve que o país conhecera». Aconteceu quando tecelões e fiandeiros se uniram e desceram até ao centro da cidade, e então «o Porto olhou mulheres a pedir pão de joelhos. Mais do que medo, os grevistas causavam dó.» A imprensa da época fazia «relatos minuciosos dos sofrimentos dos grevistas» que «não eram tratados como trabalhadores fazendo valer os seus direitos, mas como pobres a suplicar o pão.» Por volta de 1910, a vida dos operários, especialmente das mulheres, era particularmente difícil: «Levantavam-se antes do nascer do sol: às sete horas tinham de estar na fábrica. À pressa, arrumavam a casa e tratavam do pequeno-almoço do marido e dos filhos. Quando eram mães, carregavam os recém-nascidos (…) para as oficinas. Andavam quilómetros a pé, descalças, à chuva. Tinham que se despachar, se não queriam que (…) lhes descontasse[m] (…) no salário. No trabalho, durante 12 horas, numa tarefa monótona, «se se enganavam, o erro era-lhes descontado. Se se distraiam podiam perder os dedos ou a mão. (…) No Inverno, o ambiente era gélido; no Verão, um forno. Tinham de respeitar a insolência dos mestres. Ninguém as respeitava. Ao meio-dia comiam, na rua ou no pátio, o almoço que tinham trazido de casa», sempre o mesmo: «um bocado de pão de milho, banha e peixe seco. Amamentavam a correr ou às escondidas. Chegavam a casa exaustas. Aos trinta anos estavam velhas», etc., etc. (pág. 88).
A meio do livro, no capítulo 5, com o título «De quem são os pobres?» é-nos dada uma perspectiva histórica desde meados do século XIX, em Portugal, sobre o tema do auxílio aos pobres, sempre sem benefício para os próprios, ressaltando os conflitos entre os governos da monarquia constitucional e as freiras (Irmãs da Caridade, da Ordem S. Vicente de Paula), provindas de França, a convite de «algumas aristocratas» (pág. 95). Não obstante, havia quem se preocupasse realmente com os pobres, como aconteceu com um fidalgo açoriano, de nome José do Canto. Segundo ele, a «miséria dos camponeses (…) derivava do analfabetismo» (pág. 104). E «um dos mais lúcidos escritores da época, António Pedro Lopes de Mendonça, destacava a diferença entre países católicos e (…) protestantes», acentuando que «a liturgia do protestantismo (…) vive mais da leitura da Escritura do que (…) das predicações» (ibidem), defendendo que «a matéria de ensino é uma dívida [d]o Estado (…) ao cidadão (…) e uma das garantias mais poderosas para a manutenção da liberdade» (pág. 105). Infelizmente, «as ideias de José do Canto não resistiram ao confronto com a realidade» (pág. 107).
Os capítulos seguintes (6 e 7) abordam a relação da República e do Estado Novo (respectivamente) com os pobres, e mostram-nos - vale a pena ler! - como os pobres não melhoraram a sua condição durante a vigência de ambos. «O melhor exemplo da forma como o Estado Novo encarava os pobres é a polémica sobre a ‘Campanha contra o Pé Descalço’, lançada em 1928» (pág. 132), primeiro no Porto e depois em Lisboa. Essa campanha começou com a proibição do «hábito do pé descalço e instituía multas para os refractários. Logo se gerou uma polémica sobre se o pé descalço era motivo de vergonha ou de orgulho.» (ibidem). A autora esclarece: «Previsivelmente tudo isto deu em nada: nem os pobres tinham dinheiro para comprar sapatos nem as autoridades policiais eram em número suficiente para multar os infractores.» (ibidem). Para Salazar, «a mendicidade não é um índice da miséria porque é antes um vício» (pág. 133). (…) Acerca dele mesmo afirmaria, em 1949: «Devo à providência a graça de ser pobre» (pág. 134). De resto, em 1930, a taxa de analfabetismo em Portugal era de 70% (nota 22 da pág. 136) e essa condição foi mencionada como «característica positiva, (…) em 04 de Março de 1938 (…) no Parlamento» (pág. 137).
Pouco extensa, mas muito completa, esta obra não deixa de referir «Os pobres na literatura e nas artes» (capítulo 8), como se lê, saborosamente, apesar da crueza dos relatos, em excertos de diversos autores sobre o tema (Camilo, Eça, Raul Brandão, Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Torga, Ferreira de Castro, Cesário Verde, Rentes de Carvalho, para referir os mais significativos).
No capítulo final (9), Maria Filomena Mónica fala-nos sobre «A pobreza, hoje». O ritmo, a pertinência e o rigor são os mesmos. Leia quem puder. Veja-se só: «O que falha em Portugal não é apenas o Estado, mas a Igreja, as classes altas e até os pobres» (págs. 192-193); «não sou capaz de contemplar uma sociedade em que a protecção dos mais fracos e indefesos (…) fique a cargo da caridade privada.» (pág. 203); «Os jovens sem perspectivas de emprego, os homens e as mulheres em empregos precários, os imigrantes com direitos civis incompletos, o número crescente dos sem-abrigo não constituem um problema marginal: são a questão crucial dos nossos dias.» (pág. 205); …«a única maneira de os filhos dos pobres conseguirem escapar ao casulo social onde nasceram é através de um mecanismo que dê oportunidade ao mérito e o premeie.» (pág. 208); «Os governantes que apenas acreditam no mercado, que afirmam que os pobres apenas existem porque não querem trabalhar, que exaltam a ganância como valor supremo estão a minar a coesão das sociedades. Isto é um crime.» (pág. 209).
Esta súmula opinativa, embora extensa, é pálida e curta face à riqueza do livro. Mas eu precisava de a escrever e foi isto que consegui.
A Maria Filomena Mónica um «Obrigado!» muito sentido.
José Batista d’Ascenção