A prova da existência de Deus
Quando o professor Galopim frequentava o 1º ciclo do liceu (nessa altura o ensino liceal fazia-se em três ciclos: o primeiro, a seguir à escola primária, era de três anos e terminava com um exame final), o seu professor de Religião e Moral, um padre doutorado em Bruxelas, mostrou «como se resolve o problema da existência de Deus, usando para tal apenas uma mesa e uma maçã. No quadro preto esboçava o alçado esquemático de uma mesa. Sobre ela desenhava uma maçã e, ao lado, o olho de um observador mais baixo do que o tampo da dita mesa, por exemplo uma criança, e explicava, radiante, como quem acaba de resolver um problema de difícil solução:
- A criança não vê a maçã, mas ela está lá. Do mesmo modo, nós não vemos Deus, mas ele existe. É tão simples quanto isto.
E o problema ficava resolvido.» (pg. 79)
A criança não vê o fruto, mas ele está lá! Existe! (pg. 80) |
O Bidom
Na universidade, um dos catedráticos que leccionou ao professor Galopim era Dom por título nobiliárquico. Esse professor «contava que uma certa ocasião, durante uma recepção aos participantes num congresso internacional de química, num palácio real, algures no Norte da Europa, a rainha teria perguntado a alguém, referindo-se a ele [próprio] – quem é aquele jovem sábio e loiro, que se isola ali, timidamente, ao pé daquela coluna?». (pg. 169)
Sendo Dom pelo lado do pai e Dom pelo lado da mãe, no dizer humorístico dos alunos, então ele era «Bidom».
A jovem freira com princípios questionáveis
Uma jovem freira, que optara pela vida religiosa, depois de desistir do curso de ciências físico-químicas, leccionava num colégio interno de religiosas destinado a meninas. Como a direcção do colégio entendeu que ela devia concluir a licenciatura, com vista ao bom nome do estabelecimento, foi nessa condição que foi aluna do professor Galopim de Carvalho na cadeira de geomorfologia. Com muitas tarefas para desempenhar (muitas aulas para leccionar, tempo de oração e frequência das aulas na faculdade) faltava-lhe o tempo para estudar, pelo que se apresentou muito mal preparada ao exame oral, depois de um nove esticado na prova escrita. À medida que o interrogatório decorria, mais se evidenciava a sua grande falta de conhecimentos. O professor Galopim deu o exame por terminado, informando-a de que teria que o repetir. Foi então que a jovem freira iniciou uma cena de lamúrias e lágrimas, pedindo compreensão e benevolência em nome de Deus, e pelo bem do colégio e das alunas…
Entre o público assistente, logo na primeira fila, outra freira, mais velha, que a acompanhava, lançava olhares misericordiosos na direcção do professor Galopim e acenava-lhe que sim com a cabeça.
O professor, com bonomia, dizia que não e ela insistia e lamentava-se e chorava, até que, «incomodado com o impasse, e talvez iluminado pelo Altíssimo,» acabou «por lhe dizer:
- Olhe, irmã, tome bem consciência do que me está a pedir. A irmã está a pecar ao pretender, para seu benefício, que se cometa um acto injusto, e eu não vou pactuar nesse pecado. (…)
E assim foi.» (pg. 241) Esta freira passou as férias a estudar pelos livros que o próprio professor Galopim lhe emprestou, regressou na época de Outubro «e passou com boa classificação, para bem das nossas consciências» como é referido na mesma página.
O major, dotado e garboso
Um oficial superior, com o posto de major, inscreveu-se na cadeira de geomorfologia do professor Galopim. Era um homem voluntarioso, seguro de si, interessado e muito capaz de assimilar as matérias. O militar, senhor da sua posição e sendo um homem feito enquanto o professor Galopim era um jovem assistente, não lhe dava senhoria, dirigindo-se-lhe e tratando-o por doutor. «Ó doutor, isto, ó doutor, aquilo.»
Anos depois, deram de frente um com o outro, cumprimentando-se nos moldes do que fora o anterior relacionamento. E lá veio o «doutor» como noutros tempos. Já o professor Galopim, como sempre, tratou-o por «senhor major», ao que o oficial sorridente e amistoso decidiu esclarecer que já não era major, porque, ia para dois anos, fora promovido a tenente-coronel.
Ora, acontecia que o professor Galopim também fora promovido, pois concluíra, entretanto, o doutoramento, mas nada disse.
Por acaso, uma semana depois, voltaram a encontrar-se. E novamente veio o «doutor» sem mais, da parte do graduado prazenteiro. E aí, num tratamento decidido e com o ar mais natural, o professor Galopim atira-lhe:
«- Viva, senhor coronel! É um prazer voltar a vê-lo!»
Embaraçado, o homem reagiu:
«- Ó doutor, eu ainda não sou coronel. Lá chegarei, se Deus quiser»…
Ao que recebeu resposta pronta, «com um sorriso sacana, bem aberto.»
«- Tem toda a razão, senhor tenente-coronel. Eu sei, mas aconteceu que lhe devia um galão desde a semana passada.» (pg 245)
Quarenta e dois graus, à sombra
Quando trabalhava na Carta Geológica de Évora, para além de um petrógrafo, o professor Galopim teve a participação de um arqueólogo (Henrique Leonor Pina, o descobridor do cromeleque dos Almendros). Henrique Leonor Pina pagava jorna a meia dúzia de homens e mulheres, trabalhadores rurais «inteligentes e hábeis» que durante anos integraram o seu grupo de trabalho. Estes trabalhadores e trabalhadoras eram alegres e brejeiros e muito resistentes ao cansaço e ao sol de Verão. Numa dessas campanhas, um professor catedrático de Física, amante de todos os saberes e artes, quis participar numa escavação. E lá foi, munido de máquina fotográfica, lupa, régua de cálculo, bloco de notas, termómetro, etc. Porém, habituado anos sucessivos ao laboratório da faculdade, branqueava-lhe a pele, fina e delicada e não era forte a sua resistência às inclemências do tempo. Num Agosto tórrido, sem sombras, seco, pedregoso e poeirento, Leonor Pina montou-lhe um toldo com ramos de eucalipto, sob o qual, à sombra, ia referenciando os objectos pré-históricos recolhidos.
À noite, ao serão, na esplanada do Café Arcada, depois do banho e do jantar, os grupos de Geologia e de Arqueologia comentavam com humor os episódios do dia.
Numa dessas confraternizações, o catedrático de Física, ainda mal refeito do sol abrasador da tarde, desabafava:
- Quarenta e dois graus à sombra! Medi eu, e este termómetro não falha! Tu já imaginaste? (pg. 460)
Resposta cheia de humor do Pina, ribatejano tisnado pelo sol, para todos ouvirem:
«- E quem é que te mandou estar à sombra?» (pg. 461)
José Batista d'Ascenção
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