Excepto no domínio da matemática e das ciências experimentais, em observância estrita da coerência lógica do raciocínio e sob o controlo efectivo de variáveis isoladas, o rigor das observações, do pensamento e do saber é bastante “volátil”, por assim dizer, em todos os tempos e também na actualidade.
Tendo-me decidido pela leitura do livro «Colóquios dos Simples» (fac-símile da obra publicada em Abril de 1563, que verti para o português que escrevo aqui), detive-me no que o autor designa como as suas «verdades, ditas sem cores retóricas: porque a verdade se pinta nua» (colóquio 7, verso da página 20); mais adiante refere «falsas informações que se deram a Avicena e Serapião, de longas vidas longas mentiras» (colóquio 12, verso da pg. 40); noutra parte, Garcia d’Orta cita Temístio: «o nosso saber é a mais pequena parte do que ignoramos» (colóquio 13, verso da pg. 48); sobre a velocidade de produção do conhecimento, o autor afirma: «digo que se sabe mais em um dia agora pelos Portugueses do que se sabia em 100 anos pelos Romanos» (colóquio 12, pg. 60); e no início do colóquio 17 (verso da pg. 69) damos com a fortíssima frase: «Eu não tenho ódio senão aos errores nem tenho amor senão à verdade».
Vejamos agora um pequeno mas saboroso excerto (no colóquio 20, verso da pg. 83) das longas linhas em que Garcia d’Orta se pronuncia sobre as qualidades do elefante: «o elefante não lhe falece mais que falar para ser animal racional […] e não tendo que comer lhe disse o seu mestre [a que chamam (…) naire] que não tinha a caldeira boa para lhe cozer o arroz, e que levasse a caldeira ao almoxarife, e que ele lha mandara consertar ao qual o elefante foi com a caldeira na tromba, e o almoxarife disse ao naire que levasse ao caldeireiro, e ele a consertou no fundo somente onde estava danada [estragada] e o elefante a levou a casa e cozendo nela o arroz saía dela água por não estar bem soldada então lha deu o naire, e o elefante a tornou a levar ao caldeireiro o qual a tomou, e consertou, e de indústria a deixou pior que estava primeiro dando-lhe algumas marteladas, e o elefante a levou ao mar, e a meteu na água, e olhou se deitava água pelo fundo, e como viu que a deitava a tornou a levar ao caldeireiro dando à porta muitos urros como que se queixava, e o caldeireiro lha concertou e soldou muito bem, e o elefante o foi provar ao mar, e achou muito boa então a levou a casa, e lhe fizeram de comer com ela vede se haveria homem que mais tino tivesse isto passou[-se] assim, e hoje neste dia há testemunhas que o viram, e outras maiores que por comum as deixo de dizer.»
Mais adiante, referindo-se a Serapião, Orta diz dele …«havia medo de dizer coisas contra os Gregos, e não vos maravilheis disto porque estando eu em espanha: não ousaria de dizer coisa alguma contra Galeno, e contra os Gregos:» (colóquio 32, verso da pg. 130).
Assim e muito mais, pelo merecidamente grande Garcia d’Orta. Em 1563.
Transponha-se o que possa entender-se por objectividade dos humanos comuns de todos os tempos, antes e depois daquela data. E enquanto houver gente.
José Batista d’Ascenção
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