Deu-me para ler o livro «Entre o Céu e o Inferno», de Marco Oliveira Borges, da editora «Crítica», sobre as condições de vida nas naus da expansão portuguesas, mais concretamente a «Carreira da Índia», entre 1497-1655.
Estava curioso sobre diversos aspectos, como as linhas orientadoras fundamentais da empresa histórica, o relacionamento entre os embarcados, dos mais poderosos aos mais humildes, e certos hábitos diários, desde a prática da higiene diária ao recurso ao canibalismo. Sobre canibalismo, respigo …«algumas pessoas da nau São Bento, em 1554, já em terra, sentiram necessidade de comer cafres para sobreviver. […] todavia, o contrário também acontecia, com os sobreviventes portugueses de naufrágios a temerem pela sua vida na costa oriental africana, ou até mesmo no litoral brasileiro» (p. 134). A fome e a sede obrigavam a «beber água do mar e urina, comer couro cozido, sola de sapato, serradura de madeira, ratos, papel ou até mesmo cartas náuticas», tornando estas práticas «hábitos relativamente frequentes […], não se podendo «esquecer igualmente a carne pútrida dos cadáveres humanos (p. 139). Acrescente-se que «estes aspectos decadentes não eram exclusivos dos navios portugueses» (ibidem).
Sempre me pareceu que a tavessia trans-oceânica com o fito na Índia e possíveis transacções comerciais correspondia a objectivos muito determinados, por obra de gente com muita ambição, suportada em mareantes de grande saber e capacidades. Reforcei essa convicção. Porém, o incumprimento das normas e determinações régias, face aos interesses, cobiça e poder de capitães, pilotos e mestres das naus não surpreendeu. Nem foi surpresa a desorganização no recrutamento da marinhagem e dos soldados, os quais, em muitos casos, nunca tinham andado no mar. Da prisão do Limoeiro saíram, para o efeito, muitos criminosos, cujo cadastro e procedimentos os tornavam temíveis e nada recomendáveis.
Uma agravante de tomo era a imensa ignorância que atribuía aos pecados de tripulantes e passageiros a violência das tempestades, a acção de monstros marinhos, os ventos contrários e as calmarias, o encontro com navios piratas ou o aparecimento e propagação de doenças (como o escorbuto).
Nas naus, procurava-se curar qualquer doença recorrendo a mezinhas e rezava-se para obtenção dos benefícios de Deus, para esse e para todos os males, na crença de que eram concedidos aos confessados e seguidores das práticas religiosas.
As relações entre todos facilmente descambavam na mais brutal violência, particularmente dos mais fortes sobre os mais fracos, como era o caso dos escravos. Os (considerados) culpados podiam ser enforcados, decepados de algum membro ou lançados ao mar (como também o eram os livros profanos, para não tornarem mais pecadores os poucos que os sabiam ler…). O poder e o abuso do poder assentavam igualmente na violência, fazendo valer estatutos sociais, de nobreza ou de função; os abusos também eram motivados por interesses materiais ou pela satisfação de instintos corporais, desde a fome ou a sede, ao vício do jogo ou aos apetites sexuais (a que não escapavam alguns membros do clero).
Valeu a pena, a leitura.
José Batista d’Ascenção