quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Natal, comércio e poluição luminosa

Perdeu-se o tempo ou a ideia de associar o Natal a uma quadra de paz, doçura e amenidade. Afectivamente, eu senti-a assim. Agora, as imagens constantes da violência e do terror são tão presentes que não deixam espaço para a conveniente ilusão da bonomia geral do mundo.

Por isso, tenho cada vez mais a nostalgia do Natal como tempo imprescindível para as crianças e como necessidade afectiva e idiossincrática dos adultos.

Esclareça-se: não é de ontem que tenho saudades, é de hoje e de amanhã.

Veio o plástico e enchemos a criançada de brinquedos. Afogámo-la em quinquilharia e no vazio do tempo que não lhe dedicamos, porque muito atarefados para, entre outras coisas, comprar mais plástico, de cores variegadas, tantas vezes em jogos que haviam de tornar cada criança mais inteligente e desembaraçada.

Mas só as cores não chegavam. Então, adicionámos o ruído, o matraquear, o estralejar e as sequências de notas musicais estridentes e repetitivas. O que também não chegava.

Por isso, juntámos o catrapiscar do acende-e-apaga súbito ou lento ou tudo intercalado e multiplamente colorido.

A cada Natal, meio atordoado, eu olho e (não) aprecio. Os meus vizinhos, do lado oposto da rua, procedem muito bem: à noite, ligam tarde os seus sistemas luminosos expostos em paredes, varandas e janelas e desligam-nos bem cedo, à hora crepuscular, quando, na cozinha, preparo os pequenos-almoços.

Um dia destes pus-me a seguinte questão: que fariam os pirilampos se pudessem afectar de forma drástica o ciclo de reprodução dos humanos?

Festas felizes para todos.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

(A)normalização da indisciplina

Há poucas décadas, (supostos) especialistas de educação passaram a insistir na distinção entre indisciplina e violência, em vez de rejeitarem ambas, começando pela primeira como medida preventiva da segunda. Foi assim nas escolas, antes de não poucos professores começarem a ser fisicamente agredidos, dentro e fora das salas de aulas, por alunos e também por encarregados de educação (!), quase sempre com total impunidade.

Radicando aí ou não, os próprios professores (alunos de “ontem”…) passaram a manifestar-se publicamente de forma indisciplinada e inconveniente, o que provocou desconforto em muitas pessoas (e fez com que eu me retirasse antes do fim na última manifestação em que participei). Materialmente houve ganhos. Pedagogicamente acentuou as perdas progressivas no ambiente desejável na instituição escolar, pelo menos da forma como eu o vivo e sinto.

Também as polícias passaram a manifestar-se de forma ruidosa e pouco respeitosa, até da legalidade, como aconteceu na última campanha eleitoral para as legislativas, tendo então, o actual primeiro-ministro, ignorado tibiamente o facto, como não lhe competia, preparando a cama onde veio a deitar-se.

Esta semana foram os bombeiros. Vestidos com a farda e de capacete (equipamento de protecção que todos pagamos), fazendo explodir artefactos pirotécnicos proibidos (como os bandoleiros das claques futebolísticas) e (auto)intitulando-se «heróis do povo», assumiram atitudes de protesto que só podem prejudicar a imagem e os legítimos interesses dos próprios bombeiros.

Comum neste tipo de manifestações é a opção por entoar a letra – bélica e fanfarrona, a meu ver, e por isso escolhida - do hino nacional, grotescamente cantado.

Os direitos das pessoas – de todas as pessoas – são (ou deviam ser) inalienáveis, mas isso não legitima manifestações corporativas intimidatórias em que os extremistas se infiltram e que aproveitam. Eles bem sabem para quê.

José Batista d’Ascenção

domingo, 1 de dezembro de 2024

A importância das boas traduções

Tenho entre mãos um livro de uma boa editora que não estou a gostar de ler. Salvo outros factores, ou é de mim ou é do autor ou é do tradutor, ou de dois de nós ou mesmo dos três.

O que me interessa aqui é a qualidade das traduções.

Oiço dizer que muitos bons poemas de quaisquer línguas são intraduzíveis. Concordo e não concordo. Deixando de lado o que é boa poesia, questão cada vez mais pertinente, conheço casos em que a tradução de um poema ou obra poética é de valia igual à do original. Dou um exemplo inquestionável: a tradução de «A Divina Comédia» de Dante Alighieri por Vasco Graça Moura. Facilmente se aceita que, se Graça Moura tivesse traduzido um bom poema de um autor razoável, essa tradução facilmente suplantaria em qualidade o poema primitivo.

O mesmo vale para a prosa. Não sei por que para tal lhe deu, Eça de Queirós traduziu para português um livro de um autor inglês que intitulou «As minas de Salomão». Refere-se comummente que a obra traduzida vale menos do que a tradução. Conhecendo razoavelmente a obra de Eça, mesmo sem poder fazer a comparação – dado que o meu inglês não chega a sofrível – nada me custa aceitar que assim seja. E, contudo, na tradução desse livro, o nosso prosador maior ignorou um erro objectivo relativo à descrição de um eclipse, que o autor (mais ou menos desconhecido) havia cometido. Séculos antes, Camões, que tinha uma memória prodigiosa e uma cultura profunda e vastíssima, dificilmente cometeria um erro «científico», por assim dizer.

Mas, o caso que me fez despertar para a importância das traduções foi a leitura repetida de «Dom Quixote de la Mancha», uma não sei de quem (desfiz-me dos volumes dessa edição…) e outra posteriormente, de Aquilino Ribeiro Machado. Nessa altura, apercebi-me de trechos saborosíssimos que antes não me tinham impressionado tanto. Duvidoso, fui comparar as duas versões em diferentes passagens, para ver se a diferença estava no sujeito leitor. Não estava, uma vez e outra e outra, a riqueza do conteúdo não tinha comparação. Foi então que a minha admiração pelo autor do «Romance da Raposa» cresceu desmesuradamente.

Quem faz uma boa tradução de um bom livro, realiza uma (nova) obra muito meritória.

José Batista d’Ascenção

domingo, 24 de novembro de 2024

Biografia do «príncipe dos poetas portugueses»

«Fortuna, Caso, Tempo e Sorte», Biografia de Luís Vaz de Camões, de Isabel Rio Novo. Um livro portentoso, comovente e muito bem escrito. O nosso Poeta maior merecia uma obra assim, quinhentos anos depois (digo-o eu, que poucos livros li sobre ele).

De Camões ressalta, como é óbvio, o ser humano, nas suas múltiplas características: o modo de ser e de viver, um carácter forte e digno, um grande humanismo, uma cultura profunda e um conhecimento vasto, pelo estudo e pela sua extraordinária experiência de vida: contacto com pessoas de todas as extracções sociais, participação na guerra, viagens marítimas, contacto com diferentes povos e culturas... Tudo isto servido por uma memória prodigiosa e um incomparável génio poético. São igualmente cristalinas as suas humanas fragilidades, como a atracção irresistível pelo belo sexo - feminino, esclareça-se - e a pouca habilidade para gerir os seus parcos recursos materiais.

Para apreender profundamente este livro no que respeita a viagens marítimas no século XVI, há um outro livro, sobre as viagens da «carreira da Índia», que muito o facilita: «Entre o Céu e o Inferno», de Marco Oliveira Borges, que referi aqui.

Uma extraordinária biografia de Camões que se estende por setecentas páginas fáceis de ler e que valem muito a pena.

Quem duvidar que tire a prova.

José Batista d’Ascenção

sábado, 16 de novembro de 2024

Um simpático cogumelo da minha infância

Macrolepiota procera. Vários nomes vulgares, em diferentes regiões do país: frades, gasalhos, roques, centieiros, "tartulhos", "crecemêlos", etc.

Assados, com duas pedrinhas de sal, são muito saborosos. Dizem que salteados também. Esta manhã encontrei três, no meu percurso habitual das manhãs de Sábado. Com o chapéu bem aberto, suponho que os esporos já se libertaram, na maior parte, pelo que não faz mal colhê-los, dado que a sua função está cumprida. A partir de agora, serviriam apenas de alimento a uma data de bichinhos. De tal destino posso eu tratar, em colaboração com a Lurdes. Vou experimentar cozinhá-los eu mesmo. A minha falta de jeito na cozinha é conhecida de todos os que me conhecem, pelo que estão dispensados (esses e outros) de perguntar como é que me saí.

Bom fim-de-semana.

José Batista d'Ascenção

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Tempos de trump

Nunca foi, não é, nem será perfeito, o ser humano. Por isso, em todos os tempos, em todos os lugares, muitos se preocuparam em definir princípios e regras que pudessem harmonizar a vida em comum.

Em termos sociopolíticos, a instituição da democracia moderna, em que mulheres e homens têm os mesmos direitos, constitui, de todos, o sistema político mais avançado, permitindo a realização dos seres humanos em clima de liberdade e de responsabilidade, que implica respeito de todos por cada um e de cada um por si e pelos restantes. O maior desenvolvimento intelectual e económico atingiu-se em regimes democráticos, com sistemas de justiça isentos e independentes do poder político.

Porém, a marcha da humanidade é imprevisível, o que significa que o bem afectivo, social e material alcançado não se pode dar por garantido se não se zelar quotidianamente por ele. Assim também para as democracias dignas do nome.

Por outro lado, os sistemas políticos ditatoriais ou autocráticos foram sempre maioritários no mundo. E os seus líderes não olham a meios para se manterem no poder, neutralizando (tantas vezes por eliminação) os seus opositores. As novas tecnologias e as redes sociais depressa foram apropriadas por esses chefes para veicularem propaganda e conteúdos falsos, boicotando as democracias, denegrindo-as e tentando conduzi-las ao caos. Tudo por poder, mais poder e dinheiro.

Tal tem sido a evolução que as distinções clássicas de ideologia se tornaram irrelevantes para quaisquer ditadores ou aspirantes à condição. Putin, Maduro, Bolsonaro, Trump, Lukashenko, Kim Jong-un , Xi Jinping, Mnangagwa, trabalham conjugados para atingirem fins idênticos: poder e dinheiro. Os donos das redes comunicacionais também, e dão-se bem com ou associam-se aos autocratas; quanto a nós, somos instrumentos deles.

Temos assim as democracias cada vez mais fracas e periclitantes. Os EUA deslizaram para o "trumpismo". A Alemanha talvez tombe para a ultradireita em eleições próximas. Isto nem Anne Applebaum previu no seu livro «Os ditadores que querem governar o mundo», publicado entre nós há escassos dois meses.

Parece demasiado mau para ser verdade. Seria bom que ficasse apenas pelo parecer, mas isso só acontecerá se os que amam a liberdade e a democracia não permitirem que se abdique delas.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Uf! – gostaria de dizer amanhã

Se pudesse pediria desculpa a Kamala Harris. A perspectiva de uma vitória tangencial sua não me exalta nem me sossega, preocupa-me, por isso mesmo. O menos mau é que essa vitória evitaria, ainda que por margem mínima, a eleição de um presidente americano, a meu ver, monstruosamente indesejável. Fico perplexo não pela maldade, crueza, indecência e falta de escrúpulos de alguém muito poderoso, mas pelo elevadíssimo número dos que voluntaria e cegamente o apoiam.

Onde falha(ra)m o esmeril da educação e a racionalidade da instrução e do conhecimento? Como estamos a forma(ta)r os seres humanos? Elevamo-nos ou regressamos às cavernas, com a ajuda ou por acção (deliberada) de extraordinários meios tecnológicos de comunicação e alienação?

Não sei de qualidades fora do comum em Kamala Harris (talvez por deficiente conhecimento meu…) que a tornem particularmente indicada para a presidência dos EUA. Basta-me, contudo, que seja, como parece, uma pessoa normal, bem formada e bem preparada. Ademais, experiência não lhe falta. E gosto, gosto muito, do seu sorriso aberto e franco.

Desejo profundamente que ganhe. E que não lhe faltem coragem e lucidez.

O mundo precisa.

José Batista d’Ascenção