In: «A Obsessão da Portugalidade» de Onésimo Teotónio Almeida (págs 223-226)
«A palavra é hoje tão sinónimo de Portugal como o galo de Barcelos. E não menos arbitrariamente. […] Se calhar os portugueses, por razões diversas, tiveram inúmeras oportunidades para sofrer de saudades, a começar com as ausências prolongadas dos navegadores de Quatrocentos. Mas não podemos afirmar isso ao de leve, sem estabelecer comparações: os espanhóis, por exemplo, dispersaram-se igualmente pelo Globo e não criaram um termo equivalente com tanto peso. Os ingleses, um século e tanto depois, espalharam-se também pelos mares e continentes, aliás como os holandeses, e nenhum desses povos cunhou uma palavra única para expressar os sentimentos dos ausentes da pátria quando dos seus se lembravam, ou destes quando sentiam a falta dos embarcadiços. Quer dizer: são as culturas que criam os termos, os mantêm e desenvolvem, vá lá alguém saber exatamente porquê. […] E porque [os portugueses] concentraram as diversas facetas dele [do sentimento de saudade] num só vocábulo, ele ganhou mais força por uso repetido, adquirindo, pelo menos desde o rei D. Duarte um estatuto especial. Entretanto, ao uso sobreveio o abuso, a ponto de Fernando Pessoa chegar a falar de “a saudade do que nunca houve”.
[…] Ora, em semântica é regra fundamental que o significado é o uso. […] Para se saber o que significa uma palavra ou uma expressão, analisa-se o contexto em que é usada. E, santo Deus!, quão vastos são os contextos de «saudade» na nossa cultura. Usa-o o fado em letras sobre amores destroçados […]; usa-a um filho que chora a morte da mãe; como o usa um emigrante em carta para a família, ou um adulto revivendo os doces momentos da infância. Como resumir então, numa entrada de dicionário, o significado de um termo com tanta abrangência e com uma carga histórica assim pesada […], a ponto de um pensador e poeta lusitano, Teixeira de Pascoaes, ter afirmado que a alma portuguesa é «onticamente saudosa» (1). (Apetece perguntar se o Ronaldo em campo dribla e remata também com saudades, mas isso desviar-nos-ia […].)
É, pois, nessa polissemia desbragada do termo em tão variadas circunstâncias que ele adquire cargas semânticas [significados] cada vez mais intraduzíveis, porque em nenhuma outra língua um termo semelhante foi tão frequentemente utilizado para cobrir tão diverso número de situações.
Nada disto envolve qualquer magia; está-se apenas em presença de uma impossibilidade linguística de resumir tanta diversidade de usos e encontrar um equivalente em uma só palavra noutra língua.»
Muito claramente dito. Para aprender e ficar a saber (muito) mais há que ler o livro.
Obrigado ao Mestre.
José Batista d’Ascenção
(1) onticamente - de modo ôntico. Ôntico - relativo ao ser. In: dicionário Priberam
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