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Entre familiares, amigas e amigos meus (que, em situação similar, comovidamente felicito), são vários os casos de exaltação e entusiasmo perante o nascimento recente ou próximo de netos, nalguns casos pela primeira vez. E, havendo em Portugal tantas pessoas de mais idade e proporcionalmente tão poucas crianças, talvez esse facto contribua de algum modo para a expectativa dos meses de espera e para a festa com que se vive cada natividade.
Um facto maravilhoso fácil de constatar, e com que procuro cativar os meus alunos, é referir-lhes a improbabilidade de que, numa família, um nascimento traga a cópia de alguém que tenha nascido dos mesmos pais em datas anteriores, e muito menos de quaisquer outros pais do presente ou do passado, desde que a humanidade existe. E, para adensar o espanto, pode sempre referir-se, como costumo fazer, que, nos tempos futuros, por mais ou menos gerações que a espécie humana dure, não é provável que surja uma cópia exacta de alguém que hoje vive.
Ora, as nossas características biológicas, por assim dizer, são o resultado da expressão de um código que existe no núcleo das nossas células, inscrito numa substância (uma macromolécula) chamada ácido desoxirribonucleico (sigla ADN), muito longa e por isso muito condensada num certo enrolamento (à volta de proteínas), com muitos sectores (genes), correspondentes ao código das nossas características hereditárias (genéticas). Como não seria prático ter todos os milhares de genes humanos num só filamento, cada célula humana possui 46. Esses filamentos chamam-se cromossomas (porque se podem corar facilmente com certas tintas usadas para facilitar a observação ao microscópio óptico), e vinte e três desses cromossomas são herdados do pai e os outros vinte e três são herdados da mãe. Já as nossas características não hereditárias (desde o corte de cabelo às formas de convivência) resultam da influência do meio, em que se inclui a acção educativa.
Aqui, falamos de variabilidade genética. De onde surge essa variabilidade, quando e como?
Para os seres vivos se reproduzirem e originarem descendentes com variabilidade (genética) é que surgiu a reprodução sexuada, o único modo de multiplicação possível nos animais ditos superiores (uma planta, além da reprodução sexuada, pode reproduzir-se assexuadamente por «estaca», por exemplo, originando outra ou outras geneticamente iguais à primeira - o que corresponde à formação de clones, facto que o Homem aproveita há milénios). A reprodução sexuada exige a formação de células germinais (gâmetas) que têm que se fundir entre si, num processo chamado fecundação.
Quando os gâmetas se formam (na mulher começam a formar-se nos ovários, ainda antes do nascimento!, e nos homens formam-se nos testículos, a partir da puberdade), por divisão de células com 46 cromossomas, ocorre uma divisão celular especial em que as células-filhas ficam com apenas metade dos cromossomas da célula-mãe (divisão por meiose, que quer dizer «reduzir a metade»). Estas células produzidas aos milhões nos testículos e contando algumas centenas nos ovários adultos, podem encontrar-se na fecundação, originando então a primeira célula de um novo ser, chamada «ovo» ou «zigoto». Acontece que quando os gâmetas se formam, a partir de células com 23 pares de cromossomas [22 desses 23 pares dizem-se homólogos porque têm o mesmo tipo de informação genética, mas eventualmente não coincidente, por exemplo o carácter liso ou encaracolado do cabelo num e noutro dos cromossomas do mesmo par; e o vigésimo terceiro par corresponde aos cromossomas sexuais, que não têm o mesmo tamanho nem conteúdo genético equivalente], ocorre a separação aleatória dos cromossomas de cada par – recorde-se, um deles herdado da mãe e o outro do pai – de modo independente de cada um dos outros 22 pares. Assim, cada gâmeta recebe 23 cromossomas, mas tanto podem ser 12 de origem materna e 11 de origem paterna como o inverso ou ocorrer uma distribuição em qualquer outra proporção possível, por exemplo, 15 de origem materna e 8 de origem paterna. Portanto, cada gâmeta tem só metade do número de cromossomas das células do corpo (células somáticas), mas baralhados entre os que são herdados do pai e os que são herdados da mãe da pessoa em que são produzidos, num número de combinações que é de 2 elevado a 23, em que 23 se refere ao número de pares de cromossomas. Este número, no caso humano, corresponde a uma de 8.388.608 possibilidades para cada gâmeta formado, seja ele masculino (espermatozoide) ou feminino (ovócito II). Se não houvesse outra fonte de variabilidade genética (e há), a probabilidade de um dado espermatozoide, com uma das combinações de entre as mais de oito milhões e trezentas e oitenta e oito mil possíveis (precisamente aquele e não outro), se encontrar com um dado ovócito II (de entre um número igual de possibilidades), seria uma de 8 338 608 x 8 338 608 = 70 368 740 000 000 000 000. Ou seja, o inverso de um número mais de nove mil vezes superior à população actual da Terra!
Acontece porém que, antes ainda da separação dos cromossomas de cada par, há um fenómeno de permuta entre os genes dos seus cromossomas, recombinando os genes de procedência materna de um dos cromossomas com os genes de origem paterna do outro cromossoma, pelo que, após a separação, cada cromossoma, embora portador do mesmo número de genes, já os leva numa dada combinação, entre os que foram herdados do lado da mãe e os que foram herdados do lado do pai. Esse fenómeno chama-se «sobrecruzamento» e aumenta a variabilidade genética num factor cuja ordem de grandeza nem sabemos calcular.
Produzidos os gâmetas, todos «originais», o encontro entre espermatozoide e ovócito, em condições naturais, não se pode prever (quem casa com quem e quando e em que altura vai ser gerado um bebé?) e aí reside outra fonte de variabilidade.
Aqui, chegados, percebe-se que cada ser humano é fruto de uma «improbabilidade», de uma lotaria que saiu uma vez e não volta a acontecer (por comparação, acertar no totoloto, vezes repetidas, deve ser muito mais provável!). Podíamos dizer, por isso, que cada pessoa é um «milagre», uma preciosidade única, merecedora de um respeito profundo, só por existir, e de um maravilhamento afinal extensivo a cada criatura do planeta.
Há que ter alguma sensibilidade na análise, porém, pois que, em certo ano, em que eu, com todo o entusiasmo, explicava isto numa turma de alunos, verifiquei que uma menina ficara consternada: aproximou-se no final e disse-me desapontada: - «sotôr» eu acredito na reencarnação!
José Batista d’Ascenção
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