Com o meu amigo Bastos eu poderia conversar horas seguidas. Na realidade, talvez devesse deixá-lo falar do que muito bem entendesse, sem intervir, só pelo gosto e pelo proveito de o ouvir. Quando me pronuncio, fica-me a dúvida sobre se não estou a perder algo mais que dissesse. O Bastos viveu muito. É um minhoto de gema, das terras de Basto, mas a vida e o mundo caldearam-no de modo tal que o vejo como um bom cidadão português de todos os lugares, um homem de princípios éticos irrepreensíveis e de opções e posições claras, mas nunca ostensivas ou impositivas.
Tem uma memória invejável de que não é possível duvidar. Da sua meninice e juventude abre, às vezes, o baú de histórias deliciosas, com pormenores tão realistas que as ouvimos como se nelas estivéssemos a participar. Sirva de exemplo o daquele professor que, perante os erros calamitosos que uma aluna (que nem era das piores) escrevera no quadro, já no final da aula, lhe ordenou: - tem paciência, ou apagas ou assinas! E a menina, atarantada, assinou, tendo o quadro ficado assim após a aula.
Sabe de cor as datas de todos os aniversários dos seus muitos convivas e dos filhos deles, e das pessoas das suas relações. Ou de outras, como é o caso de políticos e de dirigentes desportivos. E o mesmo se passava com números de telefone, quando os dispositivos não gravavam as listas de contactos. E também é assim com matrículas de carros (da última vez que troquei o meu carro velhinho, a brincar, enviei logo a matrícula nova ao Bastos, para o caso provável de, nalgum momento, me esquecer dela ou me baralhar!).
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Feito o secundário, o Bastos rumou a Coimbra, para frequentar a Faculdade de Letras, onde se licenciou em Filologia Românica. Docente do grupo de português/francês, profissão que foi a sua, vinham-lhe de longe o gosto e a aptidão para línguas, de modo que ainda hoje nos explica termos e frases em árabe, que chegou a estudar com um professor que admirava. A maneira como esclarece a origem de certas palavras, caso lhe perguntemos, é sucinta e clara e agradável. Coimbra ficou-lhe no imaginário (leia-se, no peito) de forma tão profunda e comovente que, hoje, quinze anos depois de se ter aposentado, está sempre disponível para lá voltar em romagem de saudade e gratidão. Com entusiasmo percorre os espaços na universidade e pela cidade, e leva-nos à rua e à casa onde viveu e ao café, no «quebra-costas», que frequentava com os amigos da mesma casa e do seu ou de outros cursos. E indica-nos a mesa que ocupavam normalmente, a metro e meio daquela outra, lugar de homens de gabardine e ar fechado, que ninguém conhecia da academia e que todos tinham por agentes da «PIDE». Ali nos sentámos, há coisa de um ano, a saborear o tempo e a liberdade e foi muito bonito ver o balconista, senhor já calvo e com falhas de dentes, reconhecer o Bastos e falar-lhe dos seus outros colegas «doutores». O senhor Arsénio, muito jovem nesses tempos, arranjara ali emprego e viria a ficar, anos mais tarde, dono do estabelecimento. Pelo aspecto, não enriqueceu, mas preservou a humilde gentileza e disponibilidade de então. O Bastos viveu com interesse as manifestações da praxe académica, excluídas bizarrias animalescas como as do presente, e as actividades culturais coimbrãs: há tempos fiquei-lhe com alguns «cedês», para ouvir e oferecer, de um fadista de Coimbra seu contemporâneo que, por exigência e perfeccionismo, recusou, mais do que devia, e com prejuízo próprio e alheio, a prática da arte musical. Ouviu-o com apreço, in illo tempore, Vinicius de Morais, durante uma noite, na república «Baco», mas nem esse estímulo evitou o apagamento voluntário. É jurista, chama-se Fernando Gomes Alves e é um deleite, através da sua voz, imergir na beleza e matar saudades dos sons de Coimbra.
A seguir a Coimbra, após a formatura, veio a «guerra colonial», que o Bastos fez na Guiné-Bissau. O dia libertador chegaria enfim, mas o meu amigo cumpriu no mato, com a patente de alferes, todo o tempo de serviço. Hoje, o Bastos fala-nos da guerra com uma placidez tocante. É a única pessoa, entre familiares meus e meus conhecidos que viveram essa experiência, que é capaz de o fazer desse modo (nem António Lobo Antunes). Foi uma dura prova, em que a sua formação e o trato com as pessoas lhe granjearam a consideração dos superiores e o respeito dos subordinados. Respeitava e procurava compreender os nativos, quaisquer que fossem as tribos a que pertencessem: balantas, papéis, manjacos, bijagós, nalus… Com os elementos das milícias fazia uso do seu tacto particular: pedia-lhes as informações que supunha que eles conheciam, dando tanta atenção à expressão que imediatamente assumiam como às palavras que articulavam, e assim ficava com uma ideia mais próxima dos perigos com que era preciso lidar. Sabia gerir o medo, o seu e o dos seus homens, mesmo nas situações (mais) adversas, como naquela ocasião fatídica em que um deles pisou uma mina antipessoal e ficou reduzido a pedacinhos que couberam num pequeno saco de plástico. Relativamente aos oficiais com quem conviveu salienta, na qualidade de militar, a estima que sentia pelo general António de Spínola.
Veio da guerra sem mazelas físicas e foi racionalizando sobre as marcas que sempre ficam. Com sucesso. Depois começou uma longa carreira de professor de português, francês e literatura portuguesa. Por amor à docência e por não se identificar com o regime político de antes de 1974, fugiu como pôde dos cargos de direcção. Até os inspectores do tempo da ditadura, que lhe apareceram de surpresa à porta da sala de aula, por mais que uma vez, lhe reconheceram o mérito, e isso deu-lhe grande satisfação pessoal. Já em tempos de liberdade, para além da docência, aceitou orientar professores em estágio e fê-lo bem. No café, onde tenho o privilégio de me sentar com ele e outros amigos, é muito bonito ver chegar tantas pessoas mais ou menos jovens que, carinhosamente, o querem cumprimentar. E fazem-no com um misto de alegria e gratidão nada comuns. São quase sempre seus ex-alunos.
O meu amigo Bastos até na sua opção clubística é tão delicado e superior que desarma com um simples sorriso qualquer dito (mais) provocador de qualquer membro da tertúlia que se reúne à sua volta.
Em relação a ele só uma pena sinto: a de que não reduza a escrito tantas histórias com interesse e algumas particularmente saborosas que protagonizou ou de que foi testemunha.
Nota: este texto é apenas um leve apontamento, algo indefinido, sobre aspectos que aprecio no meu amigo. Conhecer a sua vida e o modo como a viveu daria muitos textos, de que não estou à altura, nem cabem aqui.
José Batista d’Ascenção
Está tudo nos conformes, incluindo a fotografia.
ResponderEliminarObrigado, amigo Antão. A tua opinião é importante, entre outras coisas para testemunhar que o texto não foge à verdade.
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