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«Uma portaria [é um] meio pelo qual se faz em Portugal tudo [o] que é contra a lei expressa» (1).
À parte a lei fundamental, obra de constitucionalistas dignos do nome, é legítimo que nos interroguemos sobre quem são verdadeiramente os autores de muitos normativos legais em vigor, tal é a protecção que conferem a grupos interessados e a conveniência/versatillidade de interpretações a que os causídicos os podem sujeitar, normalmente em benefício dos poderosos. Até parece que a redacção foi entretecida por aqueles a quem as ditas leis deviam impor limites e cumprimento escrupuloso.
Além do mais, as disposições de muitos diplomas legais, no nosso país, vão sofrendo modificações e acrescentos tais, em entorses sucessivas, de tal sorte que as pessoas comuns não lhes podem perceber o rigor de sentido e de justiça. Acresce o palavreado, naturalmente juncado de termos legalistas específicos, supostamente cultos, cujo objectivo (mais) parece ser a opacidade da letra da lei.
Emanadas (há quem sugira «em manadas») as leis das instâncias próprias, não basta a sua extensão e número, há que acrescentar-lhes o carácter (deliberadamente) impenetrável e mesmo (intencionalmente) obscuro (diz-se que havia um ministro de um qualquer governo, de um qualquer país que, antes de publicar qualquer decreto, mandava chamar a sua «eminência parda» e perguntava-lhe se o documento já estava suficientemente confuso para ser publicado). É (ou parece ser) num mundo deste tipo que muitos dos fazedores de leis e dos seus aplicadores fundam o seu (elevado) estatuto e acautelam as suas fontes de rendimento. Faça-se aqui um parêntesis, para ressalvar aqueles que põem a ética acima das conveniências pessoais, que sempre os há, embora nem sempre se dê por eles.
Há ainda aquelas leis que são de aplicação impossível. Existem mas não são levadas a sério, nem pelos cidadãos nem pelas autoridades nem pelos… legisladores.
E temos também os representantes políticos do povo, que podem dedicar muitas horas a interrogar poderosos eventualmente prevaricadores, em sessões desprestigiantes, porquanto os deputados deviam dedicar-se mais à feitura de leis claras e aplicáveis, tratando do poder legislativo, como lhes foi confiado, em vez de se ocuparem em longas sessões «tribunalícias» para o que lhes falta(rá) preparação, com as consequências de desautorização e desprestígio dos poderes formais, deles e dos agentes de justiça, e de irresponsabilização e impunidade de grandes criminosos, alguns no desempenho (ou pós-desempenho) de gradas funções políticas.
Ora, a política e a justiça deviam ser entre nós, e cada uma por si, um bocadinho mais sãs. Distintamente mais.
José Batista d’Ascenção
(1) In: Júlio Dinis. «A Morgadinha dos Canaviais». Livraria Civilização Editora. Porto. 1999. Pg 79.
[Romance publicado pela primeira vez em 1868, sob a forma de «crónica da aldeia»]