quarta-feira, 24 de junho de 2020

URGÊNCIA DE CONSCIÊNCIA [reflexão dolorida do Prof. Jorge Paiva]

Texto veemente de um espírito esclarecido e generoso, que expõe a sua "desilusão", em forma de alerta (que não desiste de fazer).

Fonte da imagem: aqui.
No dia 02 de Abril passado (2020) terminei assim o artigo de opinião “Pandemias e predadores” (Público): "Estou imensamente apreensivo, pois quando esta pandemia atingir (porque vai mesmo atingir) as populações de todas as favelas americanas, africanas e asiáticas, não vão conseguir controlá-la. Será o caos da humanidade, tanto para pobres como para ricos, pois a morte não se compra. É por isso que me incomodo com empresários e políticos mais preocupados com os problemas económico-financeiros do que com o gravíssimo e rapidíssimo alastramento do coronavírus, julgando que eles não serão atingidos. Apesar desta lição, que ainda não acabou, continuo a ouvir justificar que o aeroporto terá que ser no Montijo, por ser o local economicamente mais favorável, sem olhar, minimamente, para as consequências ambientais e para o próximo desastre que aí vem, bem pior do que este, como alertou o filósofo José Gil (Público 16.03.2020): “Esta terrível experiência que estamos a viver constitui apenas uma antecipação, e um aviso, do que nos espera com as alterações climáticas.”
Também nessa altura já alertava para o que poderá vir a ser o próximo inverno, repetindo-se o que aconteceu em 1918 com o coronavírus da “gripe espanhola”. Durante o verão a população e autoridades julgaram a epidemia “passada”, não tomaram as devidas cautelas e, no inverno seguinte, a mortalidade foi cerca de 10 vezes superior, atingindo brutalmente a juventude, porque talvez já não houvesse muito idoso, preferencialmente atingidos no 1º inverno, tal como agora.
Infelizmente, não temos governantes capazes de travar os disparates a que temos estado a assistir. Criou-se uma sociedade materialista que julga que o dinheiro é o mais importante na vida. Estou farto de dizer que, dos três Patrimónios (Material, Cultural e Biológico), o único essencial para a nossa sobrevivência é o Património Biológico, sendo, porém, aquele a que temos dado menor atenção e o que mais tardiamente tem merecido alguns cuidados de preservação. Foi um descuido tremendo e continua-se a laborar no mesmo erro, pois a maioria dos governantes de todos os países ignora, quase em absoluto, a extraordinária importância que os outros seres vivos têm na nossa vida.
Por isso, não foi de estranhar que tivesse sido anunciada (Maio) com pompa e circunstância, a realização da fase final do Campeonato Europeu de Futebol em Portugal (é o dinheirinho, não interessa que a pandemia alastre!); que o Santuário de Fátima abrisse em Maio (é o dinheirinho, não interessa que a pandemia alastre!); que um endinheirado promovesse (Junho) uma festa de aniversário ilegal em Lagos (é o dinheirinho, não interessa que a pandemia alastre!); que os surfistas se aglomerassem na praia da Figueira da Foz (Junho) para comemorarem a abertura aos treinos, pois aproximam-se campeonatos (é o dinheirinho, não interessa que a pandemia alastre!); que PCP queira a Festa do Avante, pois tem muita gente pagante (é o dinheirinho, não interessa que a pandemia alastre!); que os empresários turísticos queiram a abertura rápida das fronteiras (é o dinheirinho, não interessa que a pandemia alastre!); etc, etc.
Veremos como será o próximo inverno!...
É esta a sociedade que temos, puramente materialista e na qual estamos a integrar a juventude, através do desleixo educacional familiar, escolar e dos órgãos de comunicação social. É uma sociedade sem afectos e tremendamente interesseira. É por isso que a maior parte das pessoas que não me conhece, se admira que eu não aceite ofertas materiais. Pois, nesta sociedade, quando se faz um favor pensa-se logo na respectiva recompensa. É uma sociedade tão interesseira que quando duas pessoas se acarinham afectuosamente, consideram logo haver interesses materiais ou sexuais.
Por isso que me sinto cada vez mais desajustado nesta sociedade. Sinto-me tal qual uma professora, minha antiga aluna, ainda no início da sua carreira (actualmente aposentada e avó), a propósito do que eu tinha feito a um aluno meu, me dirigiu uma frase que eu nunca mais esqueci: “O senhor não existe”. Realmente não existo nesta sociedade tremendamente interesseira. Assim, deixei de estar presente em muitos eventos sociais, que mais não são do que manifestações públicas plenas de gente interesseira, como casamentos, funerais, festas públicas de aniversários, comemorações etc. Costumo dizer que não colaboro em farsas, tal como são também nos “Dias Comemorativos” [vide jornal Público 2928: 11 (1998), “A farsa dos dias comemorativos”].
Um exemplo recente desta farsa comemorativa foi o facto de o Primeiro Ministro, António Costa, anunciar, no “Dia Mundial do Ambiente” deste ano (11.Junho.2020), com grande pompa, que o aeroporto do Montijo ia avançar. Na Festa desta declaração televisiva, faltou o Ministro do Ambiente para bater palmas, assim como faltou o Papa cá do sítio para abençoar, Marcelo Rebelo de Sousa. Aliás, tanto o Ministro do Ambiente, como o Presidente da República, não aparecem, nem fazem declarações, quando o Governo toma decisões inqualificáveis de grande impacto ambiental, como a recente (22.Junho.2020) autorização de 16 explorações mineiras, precisamente antes de ser aprovada a regulamentação com condicionantes ambientais mais rigorosas para explorações dessas. 
É uma sociedade, materialista, corrupta e inconsciente do suicídio colectivo para que caminhamos, se não alterarmos hábitos e continuarmos com governantes e politicos incompetentes.
Jorge Paiva, Junho 2020

Afixado por:

José Batista d'Ascenção

segunda-feira, 22 de junho de 2020

História antiga, acerca de como o bem existe e os humanos são como são

"Ponte do diabo" sobre o Rabagão (Gerês)
Imagem obtida da "Google" (aqui)
Há muito tempo, quando eu era menino, ouvia contar que, antigamente, certo viandante tinha de atravessar uma ponte duplamente vigiada no percurso para o seu destino. Segundo rezava a história, no lado da ponte de que o indivíduo se ia aproximando encontrava-se Deus, dando as boas-vindas e abençoando os caminheiros. No lado oposto, o diabo (ab)usava (d)as suas artimanhas para fazer perder as almas de quem passava.
Cheio de cautela, o caminhante aproximou-se da ponte e de Deus, compôs o seu melhor ar de simpatia, enquanto proclamava alto: «Deus é bom». Saudado com felicitações e recebida a bênção pelo todo-poderoso prosseguiu até ao meio da ponte, altura em que, temeroso das falcatruas do diabo, mudou a lengalenga passando a dizer a meia voz: «E o diabo também». Cozido com o parapeito, em que apoiava a mão desse lado, avançava prudentemente, repetindo o dito que julgara conveniente.
Traiçoeiro como só ele sabe ser, o diabo, por malas-artes, arranjou maneira de precipitar o homem da ponte abaixo. Caído de grande altura, o corpo da vítima despedaçou-se nas fragas e foi arrastado pela correnteza das águas.
O final da história variava com os contadores: diziam uns que, mercê de comportamento cordato e prudente, e depois de castigo mortal violento pelo seu procedimento hipócrita, a alma do passante foi acolhida no paraíso; já outros salientavam que a alma se salvara sim, mas porque muito maior do que a cobardia do homem fora a infinita misericórdia de Deus. Havia ainda quem dissesse que, afinal, nem chegara a haver morte, porque anjos etéreos teriam aparado o corpo na queda, transportando-o transido de susto mas salvo para o olimpo.
Fosse como tivesse sido é lá que o peregrino se encontra, feliz, imbuído dos poderes de inspirador e protector das pontes entre os corações ou entre as almas dos humanos. Diz-se também que cada um pode (mais) facilmente encontrá-lo dentro de si, se fizer uma busca silenciosa às profundezas da (própria) consciência. 


José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 17 de junho de 2020

As “bolhas” em que nos confinamos

Fonte da imagem: aqui.
A teia de relações e de contactos de cada um é estritamente necessária, dá corpo à sua esfera de vivências, influencia a sua forma de ser e determina muitos dos seus hábitos.
Paradoxalmente, as redes sociais digitais, ao invés de alargarem os horizontes individuais podem exponenciar um certo efeito de confinamento de pensamento e de expressão, longe do que supõe a generalidade das pessoas.
Cada um de nós busca (isto é, selecciona), mais ou menos inconscientemente, as opiniões, as notícias e os factos que vão ao encontro dos seus próprios padrões, ou seja, com que se identifica. Sabem isto muito bem, para além dos especialistas da psicossociologia, os “tablóides”, as televisões, os publicitários, os interesses clubísticos e os ideólogos políticos. Quem também o sabe muito bem são os especialistas de informática que constroem as colossais bases de dados que registam tudo sobre nós [o que acontece desde logo com o registo de facturas pelas finanças: o que consumimos, em que alturas e lugares, por onde viajamos e quando, o que comemos e bebemos, e quanto custou…; e que acontece igualmente com os servidores das redes digitais…], além de saberem como se acede a e se compilam tais dados, podendo vendê-los a terceiros, que assim ficam aptos a manipular uma imensidade de pessoas de que conhecem não só os hábitos consumistas como as inclinações, as tendências e os comportamentos privados, incluindo os instintos que revelam(os) em explosões de revolta ou manifestações de ódio…
Em consequência, atraídas e presas pela publicidade dirigida ou por notícias falsas, as pessoas satisfazem o ego, incham e dão largas ao que supõem ser o seu poder e a sua liberdade, fornecendo gostosamente mais informações sobre si próprias, tornando mais eficaz ainda a manipulação a que são ou podem ser sujeitas. Ao mesmo tempo, sem se aperceberem, são agentes de propagação de conteúdos que algoritmos específicos fazem disseminar.
Se não nos apercebemos nem temos capacidade de romper um tal confinamento mental, internamo-nos progressivamente na caverna da nossa ignorância, em escuridão propícia a maior estreiteza de vistas.
Num mundo assim, com contentamento se elegem Trumps e Bolsonaros ou se fica à mercê de Putins ou de outros líderes ou ditadores inqualificáveis. As consequências são conhecidas, mas de difícil remédio. É um mundo novo com feições (im)previstas.
Só o conhecimento, a formação e a educação podem tornar credível a perspectiva de um futuro mais luminoso, livre e solidário. E quanto maior for o conhecimento e melhores forem os recursos, maior será a necessidade de aprender. De se aprender mais e mais, pelo maior número de pessoas.
Mas como, se a Escola mal sabe de si e anda aos papéis?

José Batista d’Ascenção

domingo, 14 de junho de 2020

Com pasmo e em silêncio olho o mundo

Fonte da imagem: aqui.
Na sequência do homicídio do negro norte-americano, George Floyd, perpetrado por um polícia, à luz do dia, na rua, e perante a indiferença de outros agentes, que deviam ser de segurança pública, desencadeou-se um turbilhão de protestos que alastrou pelo mundo. O caso não era para menos. Em si e pelo que traduz. A questão funda, que busco na mentalidade e no coração dos seres humanos, exponho-a assim: Em que medida o que chamamos de “racismo” (ou similares, por exemplo “tribalismo”) é (ou pode ser) algo de medular, quase intrínseco à natureza humana? Bem sei que a educação pode (e deve, oh, quanto deve!) burilar a rudeza animal dos nossos instintos mais primários, mas parece sobrar, lá no fundo da condição biológica, algo que nos trai em contextos diversos e revela, então, as nossas misérias morais. Sobre o horror da xenofobia fascista e nazi nem me pronuncio, porque escapa à minha compreensão.
Se, como é desejável, e devia ser imperativo, as sociedades resolvessem certos problemas de pobreza, desigualdade de direitos e exclusão, o ódio e a violência consequentes diminuíam. Porém, é difícil aceitar que os seres humanos se tornavam intrinsecamente melhores apenas por isso. Nada nunca dispensará os princípios morais, a ética, a educação e a mão responsabilizadora da justiça.
Conto-me entre os que não sentem qualquer responsabilidade pelas acções históricas questionáveis, à luz dos princípios de hoje, dos antepassados mais proeminentes da sociedade a que pertenço. As comunidades humanas foram como foram e não carecem de nem se engrandecem com ficções exaltantes, assim como não se higienizam com retratações postiças ou actos de contrição fora de tempo e de pertinência. Fossem outras as comunidades poderosas do passado e as suas ambições teriam igualmente subjugado as mais indefesas. Da história, como registo e análise do que foi, no contexto do tempo em que foi, devíamos tirar ensinamentos para o presente e para a construção do futuro, se, enquanto comunidade humana alargada, conseguíssemos apreender e aprender tais lições. O que é muito difícil.
No caso de Portugal, e relativamente aos países de que fomos colonizadores, a carga histórica devia justificar mais colaboração e menos eventuais recriminações. À História cabe julgar, mas para que melhor possamos construir o amanhã. E o percurso empreendido por esses (jovens) países, desde que, legitimamente, se consumou a sua independência é, essencialmente, da sua responsabilidade. Os interesses económicos, o tribalismo, as guerras civis e os poderes fácticos, não são alheios ao peso da História, mas dizem respeito, em primeiro lugar, aos seus cidadãos.
Por cá, no nosso pequeno país, não faltam feridas e dores (em sentido literal) desses tempos. Temo-las sofrido e devemos ultrapassá-las, como nos compete.
A finalizar, digo que me choca ver imagens da estátua do Padre António Vieira vandalizada, em gestos que empobrecem, envergonham e indignam. Logo ele, que escreveu páginas do mais belo que a bela língua portuguesa tem para nos dar. Não é caminho.

José Batista d’Ascenção

domingo, 7 de junho de 2020

O prazer de voltar ao café

Fonte da imagem: aqui [adaptada]
Depois de tantos dias, vencidos os receios e tomadas algumas cautelas, volto a sentar-me à mesa do café, na esplanada (onde não era comum ficar, porque o interior era mais convidativo à leitura do jornal ou ao registo de algumas notas, se sozinho, ou à conversa, quando acompanhado).
E sente-se, de novo, o agrado de sempre. A máscara fica no saco, pega-se na caneta e alinham-se (estas) duas ou três palavas, enquanto chega companhia. É bom. Naturalmente, persiste a dúvida: quando é que podemos voltar ao convívio despreocupado de há três meses? Não est(ar)á próximo esse dia, mas ansiamos por ele mais ainda do que se tivera data marcada.
Entretanto, apela-se à retoma do “consumo”. Para animar a economia, dizem uns. Para se “voltar a viver” dizem outros. Em acontecimentos “culturais” ocorrem ajuntamentos. Em manifestações ética, social e politicamente compreensíveis esquecem-se regras sanitárias eticamente recomendáveis. Com que consequências vê-lo-emos depois. E nos aviões parece que não há, em Portugal e no mundo, perigo em que se encham, o que não é, obviamente, verdadeiro.
Entrementes, nos bairros pobres de Lisboa e arredores os números da pandemia não são nada animadores. Como encontrar e aplicar medidas eficazes, poucos o sabem.
Em termos gerais, à pandemia vírica seguiu-se a “pandemia do medo”, muito “martelada” pela comunicação social. Os esclarecimentos foram e são frequentemente contraditórios. Os exemplos também. Balançamos entre o receio do contágio e o anseio pelo regresso à “normalidade”. E não temos o problema resolvido. Aliás, agora temos vários problemas: na saúde, na dificuldade de um grande número de pessoas adquirir alimentos e outros bens essenciais, no desemprego, no funcionamento das escolas, na economia, no retorno à abundância de plásticos. E os (mais) pobres, como sempre, são os mais afectados.
Tentar saborear a maré estival e não pensar na “rentrée” do próximo outono não é um exercício fácil para todos. Assim mesmo, importa aproveitar o bem que (por enquanto) temos: mal seria se morrêssemos de medo, incapazes de viver com o entusiasmo possível.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 2 de junho de 2020

O gato alfa da minha rua

Sem dono, ao que suponho. Pelagem branca, sujinha, cauda parda, de comum prolongando a horizontalidade do dorso. Elegante e bem constituído. Observo-o amiúde, nas suas deambulações repetidas, aspergindo com urina, à retaguarda, e sob pressão, pontos diversos dos percursos: muros, esquinas e mesmo os pneus dos carros estacionados. Tão numerosas são as pulverizações que remetem para a eficácia da distribuição do volume de líquido, tendo em conta que não se lhe nota qualquer volume avantajado do ventre, até por comparação com outros exemplares que, de quando em quando, se aventuram nos espaços que são o seu domínio.
Estes machos, que uma ou outra vez se aproximam, põem-no imediatamente em guarda. Marca-os de perto, de olhar fixo, o tempo necessário, por vezes longo. Normalmente, os intrusos acabam por afastar-se, sempre com ele, persistente, a forçar-lhes a retirada. Poucos são os que lhe fazem frente, em diálogos miados de arrepiar e irritar. Já têm chegado a vias de facto e então a ferocidade é impressionante e impiedosa. Nesses casos, de que tem saído vencedor, segue-se um tempo de descanso e de relaxe flácido e pouco aprumado, em que recupera da exaustão.
Às fêmeas, de comum, cumprimenta-as "nariz-nariz" e segue adiante. A altura dos amores inicia-se de forma sonora, tensa e agressiva. Vence o mais forte, cumpre-se a fisiologia e regressam os tempos mais calmos.
Não deve ser fácil a vida de gato macho dominante. Vá lá que os eventuais pretendentes à posição costumam aparecer (e ser escorraçados) à vez. Imagine-se que se aproximavam dois ao mesmo tempo, um de cada extremo da rua!
Nunca falei para este gato. Nem ele nunca se preocupou com a minha presença, excepto, talvez, quando o fotografei. Nem sei por quanto tempo continuará a habitar na minha rua, em que se tornou presença característica. Ele que há já uns anos substituiu outro, de pelagem parda, quem sabe se pai dele.
Longa vida, gato.

José Batista d’Ascenção