Colecção Ciência e Conhecimento 01 jornal «Público». Out. Nov. 2020 |
Há dias, entrei no café a que vou certo dia da semana, pela manhã, e, pela segunda vez, levei comigo um livro de que aproveitei para ler umas páginas, depois de tomar café. O estabelecimento é amplo, com boa luz natural, dispõe de jornais que não me atraem e não é muito frequentado. E tem algo de original: À entrada, no canto do lado esquerdo, há como que um altar com uma santa em tamanho razoável, de vários decímetros, à volta da qual pairam umas quantas pombas brancas, à escala natural, significando harmonia e paz angelical, tanto quanto suponho. Eu sento-me nalguma mesa mais afastada, em conformidade com a minha condição de pecador sem remissão.
Pois naquele dia em que retomava a leitura de a “Origem das Espécies” de Charles Darwin, na primeira tradução portuguesa, e mergulhava no rigor e genialidade do autor, atenta a data em que a obra original foi publicada (1859, em Londres), ao trazer-me o café, a senhora que me aviou, uma mãe ainda jovem, permaneceu junto à mesa e perguntou:
- Desculpe, importa-se que lhe faça uma pergunta?
- Queira fazer o favor, talvez eu saiba responder… - foi o que me saiu.
- Esse livro é bom? Eu gosto muito de ler, e de aprender – era a pergunta e o acrescento justificativo.
- É muito bom – disse eu – mas é mais um livro de estudo, e já antigo, com mais de 160 anos. Não é propriamente um livro para nos distrairmos. Fala sobre a evolução dos seres vivos.
- Reparei no título e vou tentar ler esse livro – concluiu a minha interlocutora, e voltou para as suas ocupações, ao balcão, onde alguém a esperava.
Lidas umas páginas, paguei, agradeci, despedi-me e saí. Momentaneamente, ocorreu-me que aquele curto diálogo podia ter-se devido a uma atitude de mera simpatia para com um cliente silencioso e discreto, mas o pensamento transpôs-se-me para outra situação algo semelhante, vivida há meia dúzia de anos.
Aconteceu naquele dia em que fui com o meu velho carro à revisão, revisão que, pela vetustez do veículo, se tornara obrigatória a cada ano. Como havia mais automóveis como o meu, fiquei em fila e, então, deitei mão ao livro «O falcão de Bonaparte: as aventuras de um tenente francês durante a II invasão de Napoleão a Portugal», de Mariana Morais Pinheiro, uma jovem autora de Braga.
Quando chegou a minha vez, o técnico mandou-me avançar para o primeiro teste, não sem antes espreitar para o livro que eu poisara no assento do lado. Logo de seguida, entre uma e outra instrução, perguntou-me se o livro era bom. Disse-lhe que sim e que se relacionava com Braga e que tinha sido escrito por uma menina que morava numa rua ali bem perto.Novo exercício de testagem, comigo ao volante, e o homem, discretamente, volvia:
- Então é um romance, e sobre Braga? Já leu muito? Eu gosto de ler.
Assenti e felicitei-o.
Quando cheguei à zona do «túnel», mais longe dos circunstantes e técnicos que por ali cirandavam, logo que saiu de debaixo do carro, nova insistência no assunto:
- E esse livro é caro? Vende-se onde?
Disse-lhe de pronto: - Custa dez euros e, se quiser, amanhã passo por aqui e deixo-lhe o livro.
Visivelmente contente, o meu interlocutor tornou:
- Fazia-me isso? Não lhe dava muito trabalho? Tinha que vir de propósito…
Sosseguei-o: - Está combinado, calha-me em caminho, e pode ser à hora de hoje.
Como a mãe da autora é minha colega, no dia seguinte, contei-lhe o sucedido e logo ela me dispensou um exemplar. Além disso, impressionada, disse-me que, perante tanto interesse, a Mariana até poderia ir lá assinar-lhe o livro.
Pouco depois passei pelo posto de inspecção. Aquele leitor interessado parecia estar à minha espera. Veio rapidamente, deu-me a nota que trazia na mão, pegou no livro e acariciou-o. Apressado nos agradecimentos, ainda tive tempo de lhe dizer que a Mariana Pinheiro podia vir ali fazer-lhe uma dedicatória, se ele quisesse.
Pareceu admirado. Olhou-me e olhou em redor.
- Aqui não... Agradeça-lhe só – pediu-me. E voltou pressurosamente para o trabalho, com o livro aconchegado.
Não lhe perguntei o nome, e como aquele centro de inspecções foi desactivado nunca mais vi o homem. Naquele momento, porém, senti-me como em garoto, quando me faziam sentir que tinha feito alguma coisa boa.
Regressado ao presente, reconfortou-me a ideia de que não é impossível que continue a encontrar leitores improváveis.
José Batista d’Ascenção
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