terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Há livros terríveis

Se eu fosse capaz de escrever um livro como «A Vegetariana» (de Han Kang, D. Quixote) faria tudo para não o publicar. O diacho é que, tendo começado a ler, não consegui parar até ao fim. Valeu que a leitura foi rápida, terminei depressa, num vórtice de desconforto e sofrimento, em que só consegui acelerar.

Cheguei à idade em que se passa bem sem tais tormentos. Se leio, para que me serve tamanho desassossego?

A autora é boa, tem uma força narrativa descomunal. E a tradução, pese uma única incongruência que detectei (…«cedros que ainda não tinham perdido as folhas». p. 151), não me parece mal.

A vida e a história da humanidade são cheias de horrores. Caldeá-los com o que é bom e belo, a fim de não matar a esperança, é um bem necessário, para temperamentos como o meu.

Bom Ano Novo.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Tenho-me, amigo, em silêncio

António Manuel Martins Antão
(1953-2024)

Por falta de palavras. Por um estado de angústia que não sei definir. Por um vazio que sou incapaz de ultrapassar. Por falta de chão em que descanse. Por fragilidade de ser quem sou, afinal.

Sentávamo-nos e falávamos. Ou ficávamos em silêncio, que não (nos) pesava. Sobre os filhos, tu admiravas os meus, conhecendo-os apenas pelo que eu dizia deles; eu gosto dos teus, não apenas por os conhecer, mas também pelo amor com que os transportavas no peito, fosse qual fosse a opinião que manifestavas sobre qualquer deles. Dos netos, derretidos, víamos as fotos. Ouvia com atenção e deleite as tuas apreciações sobre a boa escrita (a má dispensava-la, por nem valer a pena…) e as correcções que fazias a muitos que tinham a obrigação de a usar melhor. Uns respondiam-te e agradeciam, outros não tinham essa humildade, alcandorados em posições de relevo de tevês e jornais. De futebóis, limitava-me a ouvir-te e deixava escapar dúvidas e perguntas que te espantavam, mas voltavas imediatamente à calma, tentando esclarecer pacientemente a minha crónica falta de acompanhamento e de actualização. Em política, que surgia frequentemente, não éramos coincidentes; se me descuidava e desatava a falar, descobria, sempre com surpresa, que seguias atentamente os meus ditos, sem os contrariar; se tomavas a palavra passava eu a reparar com gosto na fineza e fundamento da argumentação. De finanças e impostos, eras a enciclopédia de recurso, e o pronto-socorro operacional, até mesmo à mesa do café. Era assim entre nós. Era assim, igualmente, quando estavam os restantes elementos da tretúlia, especialmente a nossa referência mais vetusta, agora também em estado de convalescença anímica.

Um dia vi as tuas lágrimas caírem. Muito a custo, consegui suster as minhas. Agora, tenho os olhos secos.

Todas as pessoas são insubstituíveis no peito daqueles em que permanecem gratamente. Até sempre, meu amigo.

José Batista d’Ascenção

Tradições…

O meu conceito fundamental de tradição corresponde a algo que os avós podem contar aos netos e que os seus avós lhes contaram (ou poderiam ter contado) a eles, quando crianças. O termo tem, obviamente, outros significados. E mais terá (e/ou deixará de ter) no futuro. Chamam-lhe evolução da língua e da cultura.

O que agora me interessa é a forma por que muitas pessoas, em muitas geografias, procuram reavivar/recriar ou inventar tradições, nem todas boas e outras particularmente infelizes, a meu ver.

Cabe dizer que as tradições são fundamentais, sob pena de não sabermos quem somos, mas há tradições que valia mais serem abandonadas e outras que era preferível não serem estimuladas.

Restringindo a Portugal, que não tem o monopólio da irracionalidade, dou alguns exemplos:

- a prática numa localidade transmontana de todos fumarem em determinado dia do ano, em que as televisões já mostraram pais a meter cigarros na boca de crianças de colo. O procedimento, inacreditável, ainda permanecerá…

- a enorme fogueira de Penamacor, na véspera de Natal, onde, por estes dias, estão a arder 100 toneladas de madeira. O fogo enorme arde a poucos metros da parede de casas, o que exige que os bombeiros estejam presentes, com mangueiras a controlar a pira em chamas. Com a candidatura a património imaterial nacional, já formalizada!, que eu bem gostava que não fosse aprovada. Não compreendo. Há gente que passa frio no Inverno. Há árvores inutilmente cortadas. Vivemos «sob a sombra da catástrofe iminente das alterações climáticas» (Frei Bento Domingues, in jornal «Público» de 24/12/2024);

- menos mal, em Braga, desde há quarenta anos, na véspera do Natal, uma multidão acorre à Rua do Souto para comer uma banana e beber vinho moscatel. Dizem que é para grupos de amigos conviverem. Têm todo o direito. Espero, porém, que ninguém passe a dar moscatel a crianças pequenas, sabe-se lá.

E somos atreitos à prática de outros feitos, que não os da resolução (que devia ser fácil) de alguns problemas básicos. Enfim, não se pode ter tudo.

Boas Festas.

José Batista d'Ascenção

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Natal, comércio e poluição luminosa

Perdeu-se o tempo ou a ideia de associar o Natal a uma quadra de paz, doçura e amenidade. Afectivamente, eu senti-a assim. Agora, as imagens constantes da violência e do terror são tão presentes que não deixam espaço para a conveniente ilusão da bonomia geral do mundo.

Por isso, tenho cada vez mais a nostalgia do Natal como tempo imprescindível para as crianças e como necessidade afectiva e idiossincrática dos adultos.

Esclareça-se: não é de ontem que tenho saudades, é de hoje e de amanhã.

Veio o plástico e enchemos a criançada de brinquedos. Afogámo-la em quinquilharia e no vazio do tempo que não lhe dedicamos, porque muito atarefados para, entre outras coisas, comprar mais plástico, de cores variegadas, tantas vezes em jogos que haviam de tornar cada criança mais inteligente e desembaraçada.

Mas só as cores não chegavam. Então, adicionámos o ruído, o matraquear, o estralejar e as sequências de notas musicais estridentes e repetitivas. O que também não chegava.

Por isso, juntámos o catrapiscar do acende-e-apaga súbito ou lento ou tudo intercalado e multiplamente colorido.

A cada Natal, meio atordoado, eu olho e (não) aprecio. Os meus vizinhos, do lado oposto da rua, procedem muito bem: à noite, ligam tarde os seus sistemas luminosos expostos em paredes, varandas e janelas e desligam-nos bem cedo, à hora crepuscular, quando, na cozinha, preparo os pequenos-almoços.

Um dia destes pus-me a seguinte questão: que fariam os pirilampos se pudessem afectar de forma drástica o ciclo de reprodução dos humanos?

Festas felizes para todos.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

(A)normalização da indisciplina

Há poucas décadas, (supostos) especialistas de educação passaram a insistir na distinção entre indisciplina e violência, em vez de rejeitarem ambas, começando pela primeira como medida preventiva da segunda. Foi assim nas escolas, antes de não poucos professores começarem a ser fisicamente agredidos, dentro e fora das salas de aulas, por alunos e também por encarregados de educação (!), quase sempre com total impunidade.

Radicando aí ou não, os próprios professores (alunos de “ontem”…) passaram a manifestar-se publicamente de forma indisciplinada e inconveniente, o que provocou desconforto em muitas pessoas (e fez com que eu me retirasse antes do fim na última manifestação em que participei). Materialmente houve ganhos. Pedagogicamente acentuou as perdas progressivas no ambiente desejável na instituição escolar, pelo menos da forma como eu o vivo e sinto.

Também as polícias passaram a manifestar-se de forma ruidosa e pouco respeitosa, até da legalidade, como aconteceu na última campanha eleitoral para as legislativas, tendo então, o actual primeiro-ministro, ignorado tibiamente o facto, como não lhe competia, preparando a cama onde veio a deitar-se.

Esta semana foram os bombeiros. Vestidos com a farda e de capacete (equipamento de protecção que todos pagamos), fazendo explodir artefactos pirotécnicos proibidos (como os bandoleiros das claques futebolísticas) e (auto)intitulando-se «heróis do povo», assumiram atitudes de protesto que só podem prejudicar a imagem e os legítimos interesses dos próprios bombeiros.

Comum neste tipo de manifestações é a opção por entoar a letra – bélica e fanfarrona, a meu ver, e por isso escolhida - do hino nacional, grotescamente cantado.

Os direitos das pessoas – de todas as pessoas – são (ou deviam ser) inalienáveis, mas isso não legitima manifestações corporativas intimidatórias em que os extremistas se infiltram e que aproveitam. Eles bem sabem para quê.

José Batista d’Ascenção

domingo, 1 de dezembro de 2024

A importância das boas traduções

Tenho entre mãos um livro de uma boa editora que não estou a gostar de ler. Salvo outros factores, ou é de mim ou é do autor ou é do tradutor, ou de dois de nós ou mesmo dos três.

O que me interessa aqui é a qualidade das traduções.

Oiço dizer que muitos bons poemas de quaisquer línguas são intraduzíveis. Concordo e não concordo. Deixando de lado o que é boa poesia, questão cada vez mais pertinente, conheço casos em que a tradução de um poema ou obra poética é de valia igual à do original. Dou um exemplo inquestionável: a tradução de «A Divina Comédia» de Dante Alighieri por Vasco Graça Moura. Facilmente se aceita que, se Graça Moura tivesse traduzido um bom poema de um autor razoável, essa tradução facilmente suplantaria em qualidade o poema primitivo.

O mesmo vale para a prosa. Não sei por que para tal lhe deu, Eça de Queirós traduziu para português um livro de um autor inglês que intitulou «As minas de Salomão». Refere-se comummente que a obra traduzida vale menos do que a tradução. Conhecendo razoavelmente a obra de Eça, mesmo sem poder fazer a comparação – dado que o meu inglês não chega a sofrível – nada me custa aceitar que assim seja. E, contudo, na tradução desse livro, o nosso prosador maior ignorou um erro objectivo relativo à descrição de um eclipse, que o autor (mais ou menos desconhecido) havia cometido. Séculos antes, Camões, que tinha uma memória prodigiosa e uma cultura profunda e vastíssima, dificilmente cometeria um erro «científico», por assim dizer.

Mas, o caso que me fez despertar para a importância das traduções foi a leitura repetida de «Dom Quixote de la Mancha», uma não sei de quem (desfiz-me dos volumes dessa edição…) e outra posteriormente, de Aquilino Ribeiro Machado. Nessa altura, apercebi-me de trechos saborosíssimos que antes não me tinham impressionado tanto. Duvidoso, fui comparar as duas versões em diferentes passagens, para ver se a diferença estava no sujeito leitor. Não estava, uma vez e outra e outra, a riqueza do conteúdo não tinha comparação. Foi então que a minha admiração pelo autor do «Romance da Raposa» cresceu desmesuradamente.

Quem faz uma boa tradução de um bom livro, realiza uma (nova) obra muito meritória.

José Batista d’Ascenção