O ano passado, pelo Natal, recebi o livro um de “uma trilogia moçambicana”, intitulado “Mulheres de Cinza”, que li, com o mesmo agrado com que li vários outros do mesmo autor, e fiquei à espera do livro dois, este, intitulado “A Espada e a Azagaia”, que acabei por ler (só) este Natal. Estou à espera do livro três…
Mia Couto é um escritor extraordinário, um inventor de palavras, de conceitos e de ideias, que alarga e reinventa (legitimamente) a língua portuguesa (o que demonstra a inutilidade e inviabilidade do chamado acordo ortográfico que - até parece ironia - ele mesmo pratica…), que expõe a complexidade da alma humana nas suas grandezas e misérias: a beleza, o horror, o sentimento, a poesia, a crueldade, o amor, o ódio, o afecto e a raiva, o ciúme e a inveja, que se manifestam no bicho humano, seja qual for a terra em que nasce ou a que (sente que) pertence ou as teias de relações em que se vai entrelaçando.
A trama destes livros aborda a colonização portuguesa em África no final do século XIX, concretamente as acções militares que terminaram com a prisão de Gungunhana, imperador do Estado de Gaza (metade Sul do território de Moçambique), dando uma imagem muito impressiva do que eram as tropas portuguesas e a sua acção no terreno, assim como nos mostra com uma profundidade umas vezes comovente, outras hilariante, outras dramática, o sentir dos negros indígenas, de várias tribos, com as suas relações de interesse e, frequentemente, de rivalidade e de ódio, mas, sobretudo, põe a nu a psicologia dos seres humanos, quaisquer seres humanos (neste livro dois, estão envolvidos os portugueses, um suíço, uma italiana e os nativos africanos de várias tribos), e o que lhes é comum em virtudes e defeitos, em nobreza de espírito e animalidade, em generosidade e egoísmo, em coragem e cobardia, em inteligência e estupidez, em doçura e crueldade. Aspecto digno de nota é a osmose de culturas, de pensamento e de sentimento que leva as pessoas, em certos contextos, e ao fim de certo tempo, a (quase) perderem a identidade, nisso se tornando mais autênticas – mais medularmente humanas - nas suas aparentes contradições e imprevisibilidade de comportamento, como seja a “transmutação” de um padre… em mulher.
A escrita, com um estilo muito próprio, flui de modo imprevisto e surpreendente, comportando o objectivo e o fantástico, o racional e o irracional, o lógico e o desconcertante, numa elegância suave, mesmo quando narra ou descreve a violência mais crua. Mia Couto conhece muito bem a natureza humana. Só por essa razão o seu talento lhe permite escrever o que escreve e como escreve, com a profundidade, a autenticidade, a simplicidade, a beleza e a sabedoria que (se) revela nos seus livros. Sobre eles, gostaria de dizer mais e melhor, mas “a boca não me chegou às palavras”.
Assim mesmo, correndo o risco de ser injusto, particularmente em relação aos autores que me falta ler, e com uma ou outra dúvida, relativamente a outros que vou lendo, cada vez mais me vai parecendo que Mia Couto é o melhor dos autores portugueses contemporâneos: o mais original, o de obra mais bela e mais plural e mais universal. Do alto da minha insignificância, parece-me que Mia Couto merece o prémio Nobel da literatura, simplesmente, porque é melhor do que os autores que eu li que já o receberam, com excepção de Garcia Marquez. Obviamente, eu penso que quem dá um prémio, dá-o a quem quer, mereça-o ou não. Por isso, fiquei mal impressionado ao ver escritores portugueses com dor de cotovelo quando Saramago foi contemplado, o que, a meus olhos, reforça a ideia de que os que não contiveram o azedume menos que ele mereciam ser premiados. Grandeza de outro quilate teve-a Jorge Luís Borges, que escrevia divina e intemporalmente como mais ninguém, indiferente às políticas de atribuição do Nobel da literatura. Mas esse era um escritor de outra galáxia.
Voltando à Terra: Parabéns, obrigado e muitas felicidades para Mia Couto.
José Batista d’Ascenção
Sem comentários :
Enviar um comentário