Aprecio o bom uso da língua portuguesa: a correcção e riqueza vocabular, o domínio da gramática, a elegância da frase, a clareza e o rigor da comunicação. Mas a nossa língua anda muito maltratada, na vozearia popular, como sempre, mas também por quem devia ter uma preparação linguística em conformidade com os títulos académicos que ostenta e as funções profissionais que desempenha: professores!, de qualquer grau de ensino, especialistas das mais diversas áreas, jornalistas, locutores, etc.
Não pretendo, naturalmente, arvorar-me em autoridade na matéria, mas não escondo algumas perplexidades.
A língua é dinâmica, evolui e incorpora novos termos (neologismos, estrangeirismos…), o que, em sim mesmo, é bom: torna-a mais rica, potencia a expressão cultural e alarga as possibilidades de comunicação. Leia-se qualquer livro de Mia Couto e veja-se como isso pode ser maravilhoso.
Porém, eu preferia que textos antigos pudessem ser lidos por mim e pelos meus (futuros…) netos com uma compreensão tanto maior quanto possível. Serve isto para dizer que ainda não compreendi as vantagens do que chamam o «novo acordo ortográfico», acerca do qual desde sempre perguntei: acordo de quem com quem, em nome de quem? (uma pergunta inicialmente mais longa mas a que encurtei a parte final: «e em benefício de quem?») Discordo do acordo. Esta situação provoca-me desconforto e incómodo porque, como professor, tenho que usar o “acordês” e como cidadão uso a ortografia que aprendi desde os bancos da escola primária. Daqui resulta que, por vezes, troco os termos das duas grafias em cada uma das situações em que me desdobro. Tentando não ceder ao queixume penso, no entanto, que é justo e necessário colocar algumas questões:
- quais eram os (maiores) problemas de comunicação escrita entre o português de Portugal e o português do Brasil, ou as variantes de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe e Timor-Leste?
- quais desses problemas ficaram resolvidos com o “acordo ortográfico”?
- que novos problemas surgiram com a aplicação do dito acordo?
- serenamente, qual é o balanço possível até ao momento?
- quando se vão (tentar) resolver os principais problemas criados, revendo o “acordo” feito?
Sobre o uso do português tenho prestado alguma atenção às opiniões e escritos de pessoas tão diversas como Bagão Félix, Vital Moreira, Onésimo Teotónio Almeida e aos meus amigos António Antão e António Bastos. Não leio linguistas. Leio clássicos da literatura. Vou aprendendo o que posso. E questiono(-me sobre) a deriva de certos termos e a aplicação deturpada ou contraditória que se faz dos mesmos. Hoje, infelizmente, poucos professores esclarecem a raiz etimológica das palavras e menos ainda insistem na facilidade e propriedade da sua utilização por quem tenha esse conhecimento.
Tome-se o caso da expressão “comportamento bestial”, a qual ainda mantém (creio) o significado de brutalidade, de acção perversa, mas a palavra simples “bestial” (próprio de besta, brutal, estúpido ou repugnante), passou a ser comummente entendida com o sentido de extraordinário ou fantástico, o que nem a mim espanta. Mas desagrada-me, por exemplo, que se pronuncie ou escreva “competividade” ou “empreendorismo” ou “aonde estás?”. Também não me parece bem o uso (generalizado) da conhecida expressão “agricultura biológica”, como se pudesse existir algum tipo de agricultura não biológica! A marca “bio” aplicada aos mais diversos produtos (bolachas, por exemplo…) é um oportunismo comercial que se serve de uma “moda” que assenta na ignorância das pessoas. Se tudo o que é biológico fosse bom, então não nos devíamos preocupar com coisas como ovos contaminados por salmonelas, porque isso, embora resultado de falta de higiene e conservação, é um processo inteiramente natural e …biológico, tão biológico como o é qualquer tipo de putrefacção. Para mim, “agricultura ecológica” seria uma expressão feliz, pressupondo exigências e exigindo cuidados, por forma não a ludibriar incautos.
Outro exemplo de oportunismo do mesmo tipo foi a utilização imprópria do termo “universidade”. Há uns anos, porque começou a haver um número significativo de pessoas aposentadas com reformas bastante razoáveis, logo surgiram umas organizações chamadas “universidades seniores”, muito pomposamente “vocacionadas” para lhes proporcionar ocupação. Ora, ocupar utilmente as pessoas aposentadas e poder aprender com elas (talvez mais que ensiná-las…) é muito meritório. Mas, “universidades”? Porque não “universalidades”?
Chocante e degradante é a utilização da palavra “universidade” na propaganda partidária em Portugal, por alturas do Verão, em que se arranjam uns políticos que vão falar a jovens militantes sobre temas de que ninguém se lembra depois, sobretudo pelo efeito das encenações que não pela relevância do do que é dito ou pela atenção que os ouvintes lhe prestam. Foi numa «universidade» destas que, este ano, Cavaco Silva confirmou pública, inglória e desnecessariamente que não foi um grande Presidente da República nem sabe ser um ex-ocupante do cargo.
O pior disto é que, num país em que poucos lêem, se não moderamos a tendência, corremos o risco de entrar num tempo que que as palavras servirão principalmente (e intencionalmente?) para não nos entendermos.
Em relação ao tema, em que não me alongo mais para não dilatar o texto, falham enormemente a política, a cidadania e, sobretudo, a escola, tal como está formatada.
José Batista d’Ascenção