terça-feira, 31 de outubro de 2017

A minha roupa parece velha porque… é velha

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Faz tempo, depois de muita insistência em casa, lá me dispus ao sempre penoso sacrifício de ir comprar (alguma) roupa. Lembro-me que fiquei algo perplexo quando uma jovem lojista me explicava que certo par de calças de ganga, bastante coçadas e delidas - ela chamava-lhe «pré-lavadas» - para, propositadamente, parecerem velhas, eram mais caras. Porém – insistia a rapariga – atendendo ao meu «estilo», talvez fossem da minha preferência… Ora eu, quando compro roupa, prefiro-a nova, deixando que o tempo e o uso se encarreguem, o mais demoradamente possível, de a fazer velha. Vai daí, com toda a paciência de que fui capaz, esclareci que pretendia comprar roupa nova, com aspecto de nova, precisamente porque a minha era velha. Pareceu-me que deixei a menina baralhada. Para não lhe causar (mais) incómodo, cedi afavelmente à pessoa que me acompanhava, ao sentir que, de modo suave, me pegava no braço, e fomos embora.
A roupa esfarrapada não me causa impressão desfavorável, se me parecer limpa. Talvez isso se deva a ter crescido na presença de e com pessoas que, de tão humildes, e por se ocuparem de trabalhos esforçados, muito mais vezes do que gostariam, andavam rotas.
Hoje, pessoas jovens e menos jovens usam roupas, sobretudo calças de ganga, que foram intencionalmente rasgadas. É moda, dizem-me. Repito, isso não me impressiona. Já me impressiona e desagrada que alguém se espante por eu gostar desse mesmo tipo de calças intactas, bem lavadas e passadas a ferro (o que não significa que as use sempre tal como gostaria).
Em certo sentido, a moda da roupa rota parece-me em harmonia com a condição socio-económica e até mesmo psico-afectiva de grande parte das pessoas do país, que às vezes vejo como um país de esfarrapados (para além de desdentados, uma miséria triste, cuja resolução, por motivos de decência e de saúde não devia ficar muito cara). Com receio, aliás, de que a tendência se possa agravar, em vez de atenuar-se. Medos que eu tenho, e que gostaria que fossem infundados...
Nas nossas comunidades há também quem caracterize certos oferecimentos ilusórios e hipocritamente generosos como «oferecimentos esfarrapados», traduzidos, não raro, pela curiosa formulação: «não queres, pois não?», sem esperar resposta. Também são mais comuns do que o desejável aquelas desculpas que o não são nem poderiam ser e a que apropriadamente se chama «desculpas esfarrapadas».
Procurando não passar da condição de mal amanhado para a de esfarrapado, dou comigo a pensar: será que ainda vou andar (involuntariamente) na moda?

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Eu, «depois que envelheci»

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Diferentemente da generalidade das pessoas, sempre associei o termo «velho», quando aplicado a pessoas, à ideia de sabedoria, experiência, maturidade, compreensão, generosidade, ternura e, nalguns casos, beatitude. Assim me ensinaram em criança e cedo o interiorizei. Por isso, mais que os conselhos, avisos, ordens ou repreensões dos meus pais, eram as palavras dos meus avós que eu ouvia, senão com mais respeito, pelo menos com maior reverência. São as considerações (normalmente curtas) do meu avô, ou os ditos da minha avó (os maternos, que o avô paterno morreu bastante mais cedo e a avó, que foi a sua mulher, já não a conheci) que sempre me acompanharam e que, amiúde, evoco nas mais variadas situações.
O que viria a encontrar depois, ao longo da vida, foi um certo horror à palavra «velha(o)», como se a mesma fosse um insulto, a contrario da minha escala de valores. Lá na aldeia onde nasci e fiz a escola primária, não eram só as pessoas que, sendo velhas, eram especialmente estimáveis. Também beneficiavam dessa condição os animais a quem a idade pesava, os quais requeriam atenção e cuidados específicos (certo que a beleza e a graça das crias jovens e a sua capacidade de brincar eram um deleite, mas até isso – aprendíamos nós – dependia da presença próxima dos progenitores, mais velhos), as coisas ou objectos (vinho velho e novo ou o queijo podiam ser bons por motivos opostos em questão de idade; os sapatos mais usados, sem serem demasiado velhos, eram preferíveis ao novos que, frequentemente, «mordiam» os pés; havia também quem se afeiçoasse a roupas com algum uso por oposição aos fatos novos, ditos «domingueiros», até pelo receio e preocupação de os não sujar excessivamente ou danificar… Que tempos!) e até às plantas se podia aplicar critério parecido: só as mais crescidas (mais velhas) podiam dar-nos a beleza abundante das flores e o prazer e o proveito dos frutos, assim como a sombra no Verão e a harmonia da paisagem. Nas relações familiares e sociais (e na tropa!) havia mesmo um ditado, bastante discutível, mas com um certo fundo verdadeiro, que afirmava que «a velhice é um posto». 
Hoje, com a idade de várias décadas, percebo a falta de energia, as falhas de visão ou de memória, o desconforto físico e as dores, assim como a consciência da fragilidade e da morte mais próxima no tempo; e olho mais vezes para o que passou por comparação com o que eventualmente surgirá no futuro, que perspectivo com alguns receios. Porém, vivo a progressão na ou para a decrepitude com a angústia da degradação do corpo e do espírito, mais que a da finitude da vida. E julgo perceber bem o modo como Jorge Amado um dia classificou a velhice… Creio, de resto, que, uma vez que, em média, vamos vivendo cada vez mais, maior pode ser, por várias razões, a tendência para haver autodescontentamento das pessoas com o estado de idade avançada.
No entanto, sentindo-me já velho, em muitos aspectos (de mais a mais, sinto-me bem na companhia de pessoas mais velhas, prefiro as suas conversas às de muita gente mais nova, aprecio o à-vontade e franqueza de quem já viveu muito e comungo facilmente das suas perspectivas de vida, ou da falta delas...), isso não me perturba nem me desgosta. É em mim muito forte a convicção de que as pessoas muito interessantes, normalmente, tornam-se mais interessantes ainda com os anos, à medida que envelhecem, e parece-me que não o seriam tanto sem o avançar da idade, que dá têmpera, capacidade de reflexão e serenidade: estou a lembrar-me das conversas de Agostinho da Silva, de certos escritos diários de Miguel Esteves Cardoso ou dos abraços de Marcelo Rebelo de Sousa. Na minha maneira de sentir, sem querer chamar-lhes velhos, só pode falar, escrever ou abraçar assim quem tem uma compreensão profunda da vida e do mundo, o que – a meu ver – equivale a ter vivido muito, e daí o meu carinho pelos velhos.
Ao contrário, há crianças e jovens que me parecem «velhos» naquele sentido pejorativo que não partilho, e pessoas de idade que são «velhas» no bom sentido que dou ao termo, e perante as quais me curvo reconhecido. A esses chamo afectuosamente «os meus velhos». Isto não obsta a que goste muito de crianças e jovens, em si mesmos e na esperança de que cheguem a «velhos», compensando o mundo pelo que o mundo lhes deu.
Também na literatura, um dos livros cuja leitura mais me marcou foi «O Velho e o Mar» de Ernest Hemingway, pela obra que é e pelas razões que referi.
Obrigado, «meus velhos».

José Batista d’Ascenção

domingo, 22 de outubro de 2017

MANIFESTO, por Jorge Paiva

Galopim de Carvalho e Jorge Paiva:
dois estrénuos defesores do ambiente e da pedagogia
em Portugal. Imagem obtida aqui.
Se acabassem os Serviços Hospitalares e os hospitais fossem abandonados, aumentaria extraordinariamente o número de mortes e os hospitais degradar-se-iam, acabando por ruir.
Se acabassem os Serviços Prisionais e as prisões fossem abandonadas, aumentaria extraordinariamente o número crimes e as prisões degradar-se-iam, acabando por ruir.
Como acabaram com os Serviços Florestais aumentaram extraordinariamente os incêndios florestais e as casas dos guardas florestais degradaram-se, acabando muitas por ruir.

ESTE FOI UM DOS ERROS DE SUCESSIVOS GOVERNOS
MAS HÁ MUITOS MAIS, QUE LEVARAM AOS PIROVERÕES QUE TEMOS

Todos os Partidos Políticos são culpados da hecatombe florestal portuguesa.
Em vez de os políticos se entreterem a vociferar uns contra os outros no Parlamento, nos debates televisivos e durante as campanhas eleitorais, devem unir esforços para conseguirem programar e solucionar o mais grave desastre humano, económico e ambiental que temos.
Por ser uma solução temporalmente longa e que terá que abranger várias legislaturas é que os políticos, vociferadores compulsivos, nunca se reuniram para conseguirem um acordo global.

TRATA-SE DE PURA INCOMPETÊNCIA POLÍTICA

BASTA!!!
   
Jorge Paiva, Outubro de 2017

Afixado por: José Batista d'Ascenção

sábado, 21 de outubro de 2017

«Incêndios, Educação e Política»

Gostava de ter escrito isto:

«Da tragédia de Entre-os-Rios à da praia do Meco; da violência escolar generalizada aos incêndios deste ano, creio que o problema central português é um problema de natureza educativa, de (in)consciência histórico-cultural e de cidadania.
[...]
Para o país das reformas de miséria, da toxicodependência alarmante em regiões do interior; para o Portugal do abandono escolar indisfarçável, da violência entre adolescentes que não constam do ranking das escolas, pedir a esse Portugal mais do que o que tem dado é não compreender os dramas existenciais com que os portugueses se confrontam. É não saber de que massa os portugueses são feitos.
[...]
Na escola, nas universidades, nos lugares de onde saem os futuros políticos (as jotas partidárias por onde se faz o carreirismo da praxe), que real importância tem a destruição do Pinhal de Leiria?
[...]
Arderam 506 mil hectares, morreram 106 pessoas, os feridos ascendem a mais de sete dezenas... Conhecer o país real implicaria uma classe política sabedora da História e da literatura, que agiria com bom senso e com responsabilidade, porque se lembraria — assim a escola fosse o lugar das aprendizagens a sério — que D. Dinis não é um nome vão; que ser português é ser-se, quase sempre, da “arraia-miúda” de que nos fala Fernão Lopes. Descaracterizados, americanizados, berlinizados, como poderão algum dia perceber o que aconteceu entre Junho e Outubro de 2017?»

António Carlos Cortez. In: jornal "Público" de 21 de Outubro de 2017, página 60

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

O horror dos incêndios, (agora) também em Braga

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A «protecção civil» em Portugal, se (considerarmos que) existe (e que cada um de nós faz parte dela), é digna de lástima, uma desgraça e uma vergonha.
Ontem a cidade de Braga esteve sitiada pelo fogo durante todo o dia e, em particular, à noite. Não (me) espanta. Era uma questão de tempo. Se se partir da cidade, em qualquer direcção, por qualquer estrada, pode-se reparar que há pinheiros, eucaliptos, silvas e mato praticamente em cima de casas de habitação. Este é o panorama comum a todo o país, com excepção, talvez, do Alentejo e de algumas faixas do litoral. Nem as cidades escapam, mesmo as de média-grande dimensão, como se verificou há uma dúzia de anos em Coimbra, e ontem em Braga. Os sinais de perigo eram bem visíveis e ignorámo-los: as nossas florestas são catástrofes anunciadas, quais barris de pólvora prontos a deflagrar à mais leve ignição, intencional ou por descuido. Foi assim na noite de festa de S. João em Braga: logo após o fogo-de-artifício, o monte do Picoto comple(men)tava tristemente o espectáculo, com grandes labaredas. Não (nos) serviu de nada.
Suponho que a lei estabelece que na periferia das habitações deve haver uma faixa de 100 metros que não deve estar ocupada por floresta e mato de combustão fácil. Olhe-se à volta e veja-se onde é que isto é cumprido no nosso país. É aqui que devia entrar a função da «protecção civil».
Esclareça-se: a protecção civil começa em cada cidadão (repita-se: em cada um de nós). Qual é a nossa consciência desse facto? E o que devemos exigir de nós, e das nossas instuições, em matéria de prevenção de incêndios?
Cumpre-nos limpar as imediações das nossas habitações, se os terrenos são nossos, e exigir que sejam limpos, pelos donos ou pelos serviços da «protecção civil», se não nos pertencem. Fazemos a nossa parte? E se solicitarmos o cumprimento da parte que cabe a terceiros: cidadãos, autarquias, bombeiros…, alguém se digna, sequer, ouvir-nos?
Ontem, um hospital e um hotel, em Braga, correram riscos. Mas como é que foi possível a direcção dessas ou de outras entidades, as autarquias das freguesias e do concelho e os bombeiros não detectarem o perigo, que era previsível, na floresta próxima, e terem antecipadamente feito ou exigido que se fizesse o que era indispensável? O mesmo se passaria se se tratasse de um lar de idosos, de uma fábrica ou, como sabemos, de casas de habitação… Isto não se entende: quem pensamos nós que há-de gerir a floresta, especialmente quando confina com edificados com muitas pessoas? Ou margina estradas com muito tráfego? (atenção, não confundir a vegetação desordenada e por limpar com as árvores que desejavelmente devem existir nas orlas das vias de circulação). Deus? O destino? Uma acção milagrosa qualquer?... Uma atitude destas resulta inevitavelmente nas desgraças que vamos «preparando»…
Em Abril passado, indignei-me porque a Câmara de Braga procedia a uma poda infeliz dos lódãos na «variante» de Real. Ele eram máquinas, uma série de homens a trabalhar e a «polícia municipal» a ordenar o trânsito, muito dificultado. Interpelei as autoridades no local e enviei «mails» para a Câmara a sugerir que procurassem melhor altura para podar bem as árvores e que fossem limpar os matos que constituíam perigo em tantos locais nas proximidades da cidade (que resultaram no que agora se viu). Enquanto ninguém descobre um antídoto eficaz para o fogo, não temos alternativa a limpar os matos. Isso deve ser muito preferível, por evitar mortes e prejuízos materiais, e ficar mais barato, do que passarmos por aflições como as de ontem, em Braga e no resto do país.
Há, claro, os incendiários e os dementes piromaníacos a que é preciso estar atento e em quem é preciso ter mão, por via legal, judicial e comportamental. O espectáculo das chamas nas televisões e nas redes sociais, multiplicado à exaustão, pode ser um estímulo para que essas pessoas provoquem mais incêndios. Não sei mesmo se os avisos da «protecção civil» para os dias de maior perigo não serão uma indicação prévia ou mesmo um “convite” a que os dementes e criminosos actuem…
Entretanto, vamos destruindo o nosso país, o país dos nossos filhos! 
Pela minha parte, e à falta de melhor, estou disponível para oferecer parte do meu tempo de férias para participar em brigadas de limpeza das matas que as autarquias e os bombeiros ou outras entidades queiram fazer o favor de organizar. Não sei operar uma roçadora de mato, mas disponibilizo-me para aprender, e não serei completamente inútil com uma enxada nas mãos, ajudando a limpar uma faixa conveniente nos lados das estradas.
Não apreciando nem gostando de protagonizar acções quixotescas, havia de sentir-me bem se pudesse ajudar um pouco mais…

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Deve um escritor famoso levar a ironia até ao desprezo pelos leitores?

António Lobo Antunes
Não aprecio particularmente a escrita de António Lobo Antunes. Foi com dificuldade que cheguei ao fim de livros como “A exortação aos crocodilos” e “Eu hei-de amar uma pedra”. Também não gosto especialmente da sua maneira de ser, no que tange à elevada opinião que tem sobre si próprio e à depreciação que faz de outros escritores, às vezes com profunda deselegância ou mesmo rancor, como aconteceu, por mais que uma vez, com José Saramago (o Nobel é um prémio que é atribuído, e não necessariamente merecido, digo eu, que não me entusiasmei com alguns livros do nosso Nobel da literatura, e digo igualmente que muitos receberam aquele prémio merecendo-o bem menos do que ele) ou quando produziu afirmações marialvas de péssimo gosto e nenhuma educação referindo (em calão) a possível misoginia de Fernando Pessoa como obstáculo à possibilidade de se ser bom escritor. Em consequência, para Lobo Antunes, a prosa literária de Saramago é estrume e os versos de Pessoa não são boa poesia. Opiniões/problemas dele – lá se amanhe.
Mas o que me fez escrever este texto é uma crónica de Lobo Antunes, no último número (1282) da revista «Visão», intitulado «O senhor Vicente».
Segundo essa crónica, o senhor Vicente era um africano “solitário e introvertido com toda a gente”, mas que “conversava imenso” com Lobo Antunes, que o considerava um “génio”. Nessas conversas, Lobo Antunes ficou a saber do seu amor contrariado por uma mulher branca, «cujos pais se opuseram com ferocidade ao casamento». E como «não há nada mais horrível do que o mal de amor, (…) após meses a escutá-lo» Lobo Antunes acabou «por soltar uma breve frase de compreensão – Ó senhor Vicente isso é chato.», expressão que fez estacar o senhor Vicente, «a ruminar [aquela] opinião em silêncio, cara a cara (…) até agarrar os dois braços [de Lobo Antunes] com as mãos e [lhe] soprar na cara, (…) a mais lancinante frase que alguma vez» escutou:
«- É chato na medida em que se torna aborrecido.»
Frase que traduz «o poder de condensação de um espírito superior que merece entrar de imediato na galeria dos grandes conhecedores da alma humana» e resume, «com extraordinária simplicidade e não menos extraordinário conhecimento uma boa parte das questões essenciais da vida.»
Frase «cegante de evidência» em que «há qualquer coisa (…) que tem a cristalina simplicidade da célebre fórmula de Einstein E=mc2 ou [“sei lá”, intercala Lobo Antunes] do Teorema de Pitágoras», donde, «o senhor Ventura merece estar ao lado dos raríssimos espíritos que nos dão a conhecer o mundo com a simplicidade dos eleitos.» Como «o grande Laplace» que, tendo oferecido um exemplar do seu livro acerca das órbitas dos planetas a Napoleão, à pergunta deste: «- E Deus?», respondeu: «Sire, não tive necessidade de incluir essa hipótese», resposta que «não conseguiu alcançar, no (…) modesto entendimento [de Lobo Antunes] a profunda análise que o senhor Vicente logrou» com a sua frase, a qual constitui, segundo Lobo Antunes, «uma descoberta inigualável que abre estradas para o desvendar do espírito humano.», etc.
Se Lobo Antunes, alguma vez tivesse ido à terra do interior de Portugal onde nasci, podia muito bem ter ouvido por lá, de viva voz, que aquela frase, tão vazia de significado como muitas outras, «é mais velha que o ladrar dos cães» (afirmado eventualmente em versão escatológica).
Ora, Lobo Antunes sabe muitíssimo bem que (mesmo) as pessoas comuns dispensam ironias luzentes sob a forma de pechisbeques discursivos à maneira de “para quem é bacalhau basta”.
O que levará este homem a ser tão sobranceiro com os seus iguais de ofício e com aqueles que o lêem?

José Batista d’Ascenção

PS: Escrevi este texto perfeitamente à-vontade, sabendo que em nada afecta António Lobo Antunes. Nas alturas em que se coloca, as opiniões desfavoráveis sobre si próprio devem ser-lhe indiferentes. E, de resto, não vejo qualquer possibilidade de que chegue ao seu conhecimento o que aqui deixo escrito.

domingo, 1 de outubro de 2017

Descaminho das palavras

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Aprecio o bom uso da língua portuguesa: a correcção e riqueza vocabular, o domínio da gramática, a elegância da frase, a clareza e o rigor da comunicação. Mas a nossa língua anda muito maltratada, na vozearia popular, como sempre, mas também por quem devia ter uma preparação linguística em conformidade com os títulos académicos que ostenta e as funções profissionais que desempenha: professores!, de qualquer grau de ensino, especialistas das mais diversas áreas, jornalistas, locutores, etc.
Não pretendo, naturalmente, arvorar-me em autoridade na matéria, mas não escondo algumas perplexidades.
A língua é dinâmica, evolui e incorpora novos termos (neologismos, estrangeirismos…), o que, em sim mesmo, é bom: torna-a mais rica, potencia a expressão cultural e alarga as possibilidades de comunicação. Leia-se qualquer livro de Mia Couto e veja-se como isso pode ser maravilhoso.
Porém, eu preferia que textos antigos pudessem ser lidos por mim e pelos meus (futuros…) netos com uma compreensão tanto maior quanto possível. Serve isto para dizer que ainda não compreendi as vantagens do que chamam o «novo acordo ortográfico», acerca do qual desde sempre perguntei: acordo de quem com quem, em nome de quem? (uma pergunta inicialmente mais longa mas a que encurtei a parte final: «e em benefício de quem?») Discordo do acordo. Esta situação provoca-me desconforto e incómodo porque, como professor, tenho que usar o “acordês” e como cidadão uso a ortografia que aprendi desde os bancos da escola primária. Daqui resulta que, por vezes, troco os termos das duas grafias em cada uma das situações em que me desdobro. Tentando não ceder ao queixume penso, no entanto, que é justo e necessário colocar algumas questões:
- quais eram os (maiores) problemas de comunicação escrita entre o português de Portugal e o português do Brasil, ou as variantes de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe e Timor-Leste?
- quais desses problemas ficaram resolvidos com o “acordo ortográfico”?
- que novos problemas surgiram com a aplicação do dito acordo? 
- serenamente, qual é o balanço possível até ao momento?
- quando se vão (tentar) resolver os principais problemas criados, revendo o “acordo” feito?
Sobre o uso do português tenho prestado alguma atenção às opiniões e escritos de pessoas tão diversas como Bagão Félix, Vital Moreira, Onésimo Teotónio Almeida e aos meus amigos António Antão e António Bastos. Não leio linguistas. Leio clássicos da literatura. Vou aprendendo o que posso. E questiono(-me sobre) a deriva de certos termos e a aplicação deturpada ou contraditória que se faz dos mesmos. Hoje, infelizmente, poucos professores esclarecem a raiz etimológica das palavras e menos ainda insistem na facilidade e propriedade da sua utilização por quem tenha esse conhecimento.
Tome-se o caso da expressão “comportamento bestial”, a qual ainda mantém (creio) o significado de brutalidade, de acção perversa, mas a palavra simples “bestial” (próprio de besta, brutal, estúpido ou repugnante), passou a ser comummente entendida com o sentido de extraordinário ou fantástico, o que nem a mim espanta. Mas desagrada-me, por exemplo, que se pronuncie ou escreva “competividade” ou “empreendorismo” ou “aonde estás?”. Também não me parece bem o uso (generalizado) da conhecida expressão “agricultura biológica”, como se pudesse existir algum tipo de agricultura não biológica! A marca “bio” aplicada aos mais diversos produtos (bolachas, por exemplo…) é um oportunismo comercial que se serve de uma “moda” que assenta na ignorância das pessoas. Se tudo o que é biológico fosse bom, então não nos devíamos preocupar com coisas como ovos contaminados por salmonelas, porque isso, embora resultado de falta de higiene e conservação, é um processo inteiramente natural e …biológico, tão biológico como o é qualquer tipo de putrefacção. Para mim, “agricultura ecológica” seria uma expressão feliz, pressupondo exigências e exigindo cuidados, por forma não a ludibriar incautos.
Outro exemplo de oportunismo do mesmo tipo foi a utilização imprópria do termo “universidade”. Há uns anos, porque começou a haver um número significativo de pessoas aposentadas com reformas bastante razoáveis, logo surgiram umas organizações chamadas “universidades seniores”, muito pomposamente “vocacionadas” para lhes proporcionar ocupação. Ora, ocupar utilmente as pessoas aposentadas e poder aprender com elas (talvez mais que ensiná-las…) é muito meritório. Mas, “universidades”? Porque não “universalidades”?
Chocante e degradante é a utilização da palavra “universidade” na propaganda partidária em Portugal, por alturas do Verão, em que se arranjam uns políticos que vão falar a jovens militantes sobre temas de que ninguém se lembra depois, sobretudo pelo efeito das encenações que não pela relevância do do que é dito ou pela atenção que os ouvintes lhe prestam. Foi numa «universidade» destas que, este ano, Cavaco Silva confirmou pública, inglória e desnecessariamente que não foi um grande Presidente da República nem sabe ser um ex-ocupante do cargo.
O pior disto é que, num país em que poucos lêem, se não moderamos a tendência, corremos o risco de entrar num tempo que que as palavras servirão principalmente (e intencionalmente?) para não nos entendermos.
Em relação ao tema, em que não me alongo mais para não dilatar o texto, falham enormemente a política, a cidadania e, sobretudo, a escola, tal como está formatada.

José Batista d’Ascenção