segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Deve um escritor famoso levar a ironia até ao desprezo pelos leitores?

António Lobo Antunes
Não aprecio particularmente a escrita de António Lobo Antunes. Foi com dificuldade que cheguei ao fim de livros como “A exortação aos crocodilos” e “Eu hei-de amar uma pedra”. Também não gosto especialmente da sua maneira de ser, no que tange à elevada opinião que tem sobre si próprio e à depreciação que faz de outros escritores, às vezes com profunda deselegância ou mesmo rancor, como aconteceu, por mais que uma vez, com José Saramago (o Nobel é um prémio que é atribuído, e não necessariamente merecido, digo eu, que não me entusiasmei com alguns livros do nosso Nobel da literatura, e digo igualmente que muitos receberam aquele prémio merecendo-o bem menos do que ele) ou quando produziu afirmações marialvas de péssimo gosto e nenhuma educação referindo (em calão) a possível misoginia de Fernando Pessoa como obstáculo à possibilidade de se ser bom escritor. Em consequência, para Lobo Antunes, a prosa literária de Saramago é estrume e os versos de Pessoa não são boa poesia. Opiniões/problemas dele – lá se amanhe.
Mas o que me fez escrever este texto é uma crónica de Lobo Antunes, no último número (1282) da revista «Visão», intitulado «O senhor Vicente».
Segundo essa crónica, o senhor Vicente era um africano “solitário e introvertido com toda a gente”, mas que “conversava imenso” com Lobo Antunes, que o considerava um “génio”. Nessas conversas, Lobo Antunes ficou a saber do seu amor contrariado por uma mulher branca, «cujos pais se opuseram com ferocidade ao casamento». E como «não há nada mais horrível do que o mal de amor, (…) após meses a escutá-lo» Lobo Antunes acabou «por soltar uma breve frase de compreensão – Ó senhor Vicente isso é chato.», expressão que fez estacar o senhor Vicente, «a ruminar [aquela] opinião em silêncio, cara a cara (…) até agarrar os dois braços [de Lobo Antunes] com as mãos e [lhe] soprar na cara, (…) a mais lancinante frase que alguma vez» escutou:
«- É chato na medida em que se torna aborrecido.»
Frase que traduz «o poder de condensação de um espírito superior que merece entrar de imediato na galeria dos grandes conhecedores da alma humana» e resume, «com extraordinária simplicidade e não menos extraordinário conhecimento uma boa parte das questões essenciais da vida.»
Frase «cegante de evidência» em que «há qualquer coisa (…) que tem a cristalina simplicidade da célebre fórmula de Einstein E=mc2 ou [“sei lá”, intercala Lobo Antunes] do Teorema de Pitágoras», donde, «o senhor Ventura merece estar ao lado dos raríssimos espíritos que nos dão a conhecer o mundo com a simplicidade dos eleitos.» Como «o grande Laplace» que, tendo oferecido um exemplar do seu livro acerca das órbitas dos planetas a Napoleão, à pergunta deste: «- E Deus?», respondeu: «Sire, não tive necessidade de incluir essa hipótese», resposta que «não conseguiu alcançar, no (…) modesto entendimento [de Lobo Antunes] a profunda análise que o senhor Vicente logrou» com a sua frase, a qual constitui, segundo Lobo Antunes, «uma descoberta inigualável que abre estradas para o desvendar do espírito humano.», etc.
Se Lobo Antunes, alguma vez tivesse ido à terra do interior de Portugal onde nasci, podia muito bem ter ouvido por lá, de viva voz, que aquela frase, tão vazia de significado como muitas outras, «é mais velha que o ladrar dos cães» (afirmado eventualmente em versão escatológica).
Ora, Lobo Antunes sabe muitíssimo bem que (mesmo) as pessoas comuns dispensam ironias luzentes sob a forma de pechisbeques discursivos à maneira de “para quem é bacalhau basta”.
O que levará este homem a ser tão sobranceiro com os seus iguais de ofício e com aqueles que o lêem?

José Batista d’Ascenção

PS: Escrevi este texto perfeitamente à-vontade, sabendo que em nada afecta António Lobo Antunes. Nas alturas em que se coloca, as opiniões desfavoráveis sobre si próprio devem ser-lhe indiferentes. E, de resto, não vejo qualquer possibilidade de que chegue ao seu conhecimento o que aqui deixo escrito.

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