Até 2009 eu não tinha da profissão de enfermeira(o) qualquer noção extraordinária. Parecia-me apenas (mais) uma entre muitas, embora com requisitos particulares, dada a necessária sensibilidade para lidar com o sofrimento das pessoas, a degradação por vezes irremediável do corpo e, frequentemente, a própria morte.
Até esse ano, sabia também que era uma profissão a que eu não podia ter aspirado. Como a de médico de qualquer especialidade, aliás. A doença sempre me afligiu, fosse a minha ou a das pessoas próximas. Esta fragilidade vem-me desde menino: lembro-me de que ir a um hospital era para mim absolutamente penoso. O cheiro intenso a desinfectante desagradava-me profundamente e nada, ali, me parecia convidativo. E com o tempo, esta minha fraqueza não melhorou.
Nunca em mim, portanto, houve qualquer aspiração a fazer um (qualquer) curso de saúde, embora me fascinasse a fisiologia animal, incluindo a humana e tudo o mais na área das Ciências Naturais. E os meus filhos, desde cedo, pareceram herdar aquela minha tendência, mas sem manifestarem qualquer apetência especial para o estudo particular dos seres vivos ou da Natureza.
Como ia dizendo, em 2009, após vários exames: ecografias, tomografias e ressonâncias, por esta ordem, fui encarando o ar fechado dos técnicos e dos médicos com a serenidade de quem não tem qualquer sintoma doloroso nem sente desconforto ou qualquer desconformidade funcional. Sabia a raiz etimológica dos termos usados nos resultados, mas lia-os e eram apenas palavras exteriores ao que sentia. O cirurgião foi muito sério e eu concordei que era melhor agir(mos) rapidamente. Corria o mês de Abril, fizemos o internamento, ocorreu a intervenção, durante sete longas horas (sobretudo para a minha mulher, em ansiosa espera) e eu saí da bruma depois disso, sentindo uma voz difusa, provinda de uma «nuvem verde» (a cor das batas da equipa médica) a gritar como que de muito, muito longe: Benigno! Benigno!, Fora esse o diagnóstico do patologista que, no momento, dissecava e observava ao microscópio a «carne» a mais que crescia no meu corpo, depois de extraída. Já em mim, pensei nos meus filhos, com a mesma intensidade com que o fizera antes de seguir para o bloco cirúrgico. E senti-me grato e aliviado. Que eram lá os eléctrodos que tinha no peito, o soro que entrava por um braço, não sei o que mais que entrava pelo outro, a algália que me prendia a um saco e o dreno que saindo de um furo do abdómen escoava para um frasco? Sentia-me como um tronco em que tivessem enxertado uma infinidade de tubos e cabos. Mas não tinha dores, de modo que, estando quietinho, era como se não tivesse corpo.
Foi então que pude apreciar o trabalho dos enfermeiros. Eram todos bastante jovens, mais mulheres do que homens (só dois, os que lidaram comigo). A primeira sensação de acanhamento e de surpresa surgiu quando me foi dito, em tom suave, que íamos tomar banho. Como é que eu ia tomar banho com aquela floresta de tubos? Disfarcei o que pude, sem saber se, involuntariamente, terei feito algum olhar de súplica e misericórdia. Se assim tiver sido, nada perturbou a técnica, que tratou de mim de forma eficiente e confortável, com o desembaraço e segurança de quem sabe o que faz e com uma suavidade tal que era como se o meu corpo não tivesse peso. Depois, ela e as outras, foram irrepreensíveis ao longo dos dias de internamento. Lembro-me que na primeira e na segunda noites do pós-operatório entravam no quarto como que levitando na penumbra, observando-me e olhando os painéis dos instrumentos numa acção que gerou em mim grande tranquilidade, confiança e apreço crescentes.
Passaram os dias. Horas antes da alta, pedi umas folhas onde pudesse, em meia dúzia de linhas, deixar uma nota de apreço e gratidão pelo trabalho das equipas médica e de enfermagem que cuidaram de mim.
Como a empresa se revelara grande e difícil para ser fazer todo o trabalho de cirurgia de uma vez só, fui para casa recuperar e voltei ao bloco operatório em Julho, para nova intervenção do lado oposto. Nessa altura já sabia ao que ia. O tratamento foi similar e eu não pude deixar de, novamente, agradecer por escrito ao Dr Sérgio Haddad e aos seus colaboradores e à equipa de enfermagem.
«Partido ao meio», nunca mais fui o mesmo, desde então. Mas ter-se-ão evitado males maiores, pelo que vou vivendo tanto e tão bem como e quanto posso. E a minha admiração por médicos e enfermeiros, que já era grande, só podia aumentar. No entanto, como foram as(os) enfermeiras(os) que passaram mais tempo junto de mim, fiquei-lhes com um carinho muito especial, desde então e para sempre, enquanto viver.
Este meu sentimento não pode ser (meramente) subjectivo, pois que têm sido inúmeros os profissionais de enfermagem formados em Portugal que têm emigrado para exigentes países europeus, como a Inglaterra ou a Irlanda, onde são muito bem recebidos e tratados e… pagos. O que só pode ser merecido.
Aduzo ainda, em abono da isenção e objectividade da minha opinião, o facto de não ter interesses próprios ou próximos nesta matéria, porquanto ninguém da minha família é profissional de enfermagem. E, das minhas relações, só a minha amiga Ceci é enfermeira (há décadas), sendo que nunca a ouvi queixar-se do seu trabalho, que desempenha com suave doçura e dedicação, facto que se me afigura como mais uma prova do que afirmo.
Como adversativa, acrescentaria apenas que, no nosso país, profissionais como professores, médicos e enfermeiros talvez centrem excessivamente a tónica reivindicativa nos vencimentos em vez de a fazerem incidir no conjunto de condições necessárias ao bom desempenho das suas funções, com proveito próprio mas sobretudo daqueles que lhes cabe servir. Sendo que essas condições (que são muito mais e de maior importância do que o que ganham ao fim de cada mês) têm que ser gratas, estimulantes e compensadoras para cada profissional.
Mas não quero afastar-me do motivo deste texto, que é o de prestar humilde, mas sentida homenagem pessoal aos enfermeiros de Portugal. A eles, um grande obrigado.
Com especial carinho.
José Batista d’Ascenção