domingo, 25 de março de 2018

«O bailinho do eucalipto no caixão do pinheiro»

Artigo de João Camargo no jornal «Público» de 24 de Março de 2018 (página 61)


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Ontem, ao fim da manhã, voz respeitada alertava-me para um texto imperdível sobre o que é fundamental ter em conta nas questões da floresta no nosso país. Só mais tarde pude ler. Realmente, aquele texto, que nem é longo, toca no que é essencial, mas que nos escapa com alguma facilidade, presos que estamos na rede de interesses económicos poderosos que extrai da floresta tudo o que pode, indiferente ao prejuízo humano, ambiental e económico, de ontem, de hoje e do futuro e que, socorrendo-se de informação parcial, publicidade ou propaganda, impede que vejamos claro o que está em causa. Entre outras coisas, ali se diz:
«Os dois maiores incêndios de sempre em Portugal ocorreram a 15 de Outubro na Lousã e em Arganil, queimando 65 mil e 38 mil hectares. Foi a primeira vez que existiram megaincêndios na Europa no Outono.
(…)
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Ainda assim, no centro do segundo maior incêndio de sempre em Portugal, o de Arganil, houve uma pequena mata pública que persistiu. A Mata da Margaraça, composta por carvalho-alvarinho, castanheiros, aveleiras, ulmeiros, cerejeiras, nogueiras, medronheiros, loureiros e azereiros, uma “relíquia” de florestas do passado, viu menos de 20% da sua área arder, apesar de estar cercada por fogo de todos os lados. A sua estrutura de espécies e de ecossistema conseguiu reduzir a intensidade do fogo dos extremos para o centro. A composição e interacção de espécies “combateu” o incêndio e o seu núcleo, mais maduro, ficou intacto, como destaca o relatório [da comissão técnica independente].
(…)
Existe uma preferência por espécies [como o pinheiro-bravo e o eucalipto] nos incêndios, que é perceptível até num ano infernal como 2017. Só a discriminação contra as espécies florestais que não dão dinheiro imediato justifica este triste bailinho e regozijo pelo facto de o pinheiro-bravo, espécie em profundo declínio no nosso território, ter ardido mais do que o eucalipto, a espécie mais plantada do país. [Mas] essa é uma informação que, sozinha, diz pouco mais do que nada.»

Nota: os excertos aqui publicados dão uma ideia muito importante mas parcelar do que está em causa, motivo por que não dispensam a leitura de todo o artigo.

José Batista d’Ascenção

Homenagem (singela) aos enfermeiros do meu país

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Até 2009 eu não tinha da profissão de enfermeira(o) qualquer noção extraordinária. Parecia-me apenas (mais) uma entre muitas, embora com requisitos particulares, dada a necessária sensibilidade para lidar com o sofrimento das pessoas, a degradação por vezes irremediável do corpo e, frequentemente, a própria morte.
Até esse ano, sabia também que era uma profissão a que eu não podia ter aspirado. Como a de médico de qualquer especialidade, aliás. A doença sempre me afligiu, fosse a minha ou a das pessoas próximas. Esta fragilidade vem-me desde menino: lembro-me de que ir a um hospital era para mim absolutamente penoso. O cheiro intenso a desinfectante desagradava-me profundamente e nada, ali, me parecia convidativo. E com o tempo, esta minha fraqueza não melhorou.
Nunca em mim, portanto, houve qualquer aspiração a fazer um (qualquer) curso de saúde, embora me fascinasse a fisiologia animal, incluindo a humana e tudo o mais na área das Ciências Naturais. E os meus filhos, desde cedo, pareceram herdar aquela minha tendência, mas sem manifestarem qualquer apetência especial para o estudo particular dos seres vivos ou da Natureza.
Como ia dizendo, em 2009, após vários exames: ecografias, tomografias e ressonâncias, por esta ordem, fui encarando o ar fechado dos técnicos e dos médicos com a serenidade de quem não tem qualquer sintoma doloroso nem sente desconforto ou qualquer desconformidade funcional. Sabia a raiz etimológica dos termos usados nos resultados, mas lia-os e eram apenas palavras exteriores ao que sentia. O cirurgião foi muito sério e eu concordei que era melhor agir(mos) rapidamente. Corria o mês de Abril, fizemos o internamento, ocorreu a intervenção, durante sete longas horas (sobretudo para a minha mulher, em ansiosa espera) e eu saí da bruma depois disso, sentindo uma voz difusa, provinda de uma «nuvem verde» (a cor das batas da equipa médica) a gritar como que de muito, muito longe: Benigno! Benigno!, Fora esse o diagnóstico do patologista que, no momento, dissecava e observava ao microscópio a «carne» a mais que crescia no meu corpo, depois de extraída. Já em mim, pensei nos meus filhos, com a mesma intensidade com que o fizera antes de seguir para o bloco cirúrgico. E senti-me grato e aliviado. Que eram lá os eléctrodos que tinha no peito, o soro que entrava por um braço, não sei o que mais que entrava pelo outro, a algália que me prendia a um saco e o dreno que saindo de um furo do abdómen escoava para um frasco? Sentia-me como um tronco em que tivessem enxertado uma infinidade de tubos e cabos. Mas não tinha dores, de modo que, estando quietinho, era como se não tivesse corpo.
Foi então que pude apreciar o trabalho dos enfermeiros. Eram todos bastante jovens, mais mulheres do que homens (só dois, os que lidaram comigo). A primeira sensação de acanhamento e de surpresa surgiu quando me foi dito, em tom suave, que íamos tomar banho. Como é que eu ia tomar banho com aquela floresta de tubos? Disfarcei o que pude, sem saber se, involuntariamente, terei feito algum olhar de súplica e misericórdia. Se assim tiver sido, nada perturbou a técnica, que tratou de mim de forma eficiente e confortável, com o desembaraço e segurança de quem sabe o que faz e com uma suavidade tal que era como se o meu corpo não tivesse peso. Depois, ela e as outras, foram irrepreensíveis ao longo dos dias de internamento. Lembro-me que na primeira e na segunda noites do pós-operatório entravam no quarto como que levitando na penumbra, observando-me e olhando os painéis dos instrumentos numa acção que gerou em mim grande tranquilidade, confiança e apreço crescentes.
Passaram os dias. Horas antes da alta, pedi umas folhas onde pudesse, em meia dúzia de linhas, deixar uma nota de apreço e gratidão pelo trabalho das equipas médica e de enfermagem que cuidaram de mim.
Como a empresa se revelara grande e difícil para ser fazer todo o trabalho de cirurgia de uma vez só, fui para casa recuperar e voltei ao bloco operatório em Julho, para nova intervenção do lado oposto. Nessa altura já sabia ao que ia. O tratamento foi similar e eu não pude deixar de, novamente, agradecer por escrito ao Dr Sérgio Haddad e aos seus colaboradores e à equipa de enfermagem.
«Partido ao meio», nunca mais fui o mesmo, desde então. Mas ter-se-ão evitado males maiores, pelo que vou vivendo tanto e tão bem como e quanto posso. E a minha admiração por médicos e enfermeiros, que já era grande, só podia aumentar. No entanto, como foram as(os) enfermeiras(os) que passaram mais tempo junto de mim, fiquei-lhes com um carinho muito especial, desde então e para sempre, enquanto viver.
Este meu sentimento não pode ser (meramente) subjectivo, pois que têm sido inúmeros os profissionais de enfermagem formados em Portugal que têm emigrado para exigentes países europeus, como a Inglaterra ou a Irlanda, onde são muito bem recebidos e tratados e… pagos. O que só pode ser merecido.
Aduzo ainda, em abono da isenção e objectividade da minha opinião, o facto de não ter interesses próprios ou próximos nesta matéria, porquanto ninguém da minha família é profissional de enfermagem. E, das minhas relações, só a minha amiga Ceci é enfermeira (há décadas), sendo que nunca a ouvi queixar-se do seu trabalho, que desempenha com suave doçura e dedicação, facto que se me afigura como mais uma prova do que afirmo.
Como adversativa, acrescentaria apenas que, no nosso país, profissionais como professores, médicos e enfermeiros talvez centrem excessivamente a tónica reivindicativa nos vencimentos em vez de a fazerem incidir no conjunto de condições necessárias ao bom desempenho das suas funções, com proveito próprio mas sobretudo daqueles que lhes cabe servir. Sendo que essas condições (que são muito mais e de maior importância do que o que ganham ao fim de cada mês) têm que ser gratas, estimulantes e compensadoras para cada profissional.
Mas não quero afastar-me do motivo deste texto, que é o de prestar humilde, mas sentida homenagem pessoal aos enfermeiros de Portugal. A eles, um grande obrigado.
Com especial carinho.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 22 de março de 2018

O país que temos (a sorte de ter) e as pessoas que somos

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O continente português é um pequeno rectângulo com grande diversidade ambiental. De Norte a Sul viaja-se do verde do Minho - cada vez mais «glauco-verde-brilhante-eucalipto» - e da rudez telúrica de Trás-os-Montes e Alto-Douro até às praias luminosas do Algarve, passando pelas particularidades rústicas das «terras do demo» ou, mais pelo litoral,  até atravessar as campinas ribatejanas e seguindo depois pelas planuras ondulantes do Alentejo. Os relevos são geralmente mais elevados do lado de Espanha e inclinam genericamente para o raso das bordaduras atlânticas. Diversidade paisagística temo-la também desde o mar até à fronteira com Espanha, no «interior» que, entre nós, é o conjunto de terras que distam do oceano entre 30-40 km, ou menos, e um máximo aproximado de 200 km, em linha recta. Este nosso «interior» é, paradoxalmente, atravessado por muitas estradas de construção recente, com bom piso e traçado a convidar a velocidades excessivas, que enegrecem a contabilidade de acidentes. Trata-se de vias de circulação que, ao invés de contribuírem para a fixação de pessoas nessa zona, se converteram em mais um estímulo para a sua desertificação progressiva. Os portugueses em Portugal são (relativamente) poucos e os que não emigram vão-se deslocando para a estreita faixa de terra que debrua o mar…
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As ilhas dos Açores e da Madeira conferem à globalidade do país algum subtropicalismo atlântico húmido e verdejante, aumentando significativamente o leque de variações da paisagem portuguesa.
Acerca das nossas gentes (isto é, de nós próprios), da nossa alma, da nossa disponibilidade e generosidade, também haverá razoável consenso. Mas há em nós traços histórico-culturais e de carácter de que resultam frustrações dolorosas. O coração grande dos portugueses, especialmente em alturas de perigo ou emergência, parece ser avesso à racionalidade da ciência que desconhecemos, desvalorizamos e desprezamos. Os (nossos) grandes poetas não esqueceram o «mal de inveja» que nos corrói e podiam escrever eternamente sobre as responsabilidades que descuramos em nós e exigimos dos outros (que podem ser todos, reais ou imaginários, excepto nós e os que, por alguma razão, julgamos «nossos»). Entre esses «outros» destacam-se os políticos, os poderosos, os que decidem, mesmo que escolhidos/eleitos com o nosso voto. Às vezes, os «outros são os nossos vizinhos ou os nossos colegas ou superiores ou subordinados, no trabalho. E se esses «outros» são atreitos ao zelo excessivo em causa própria, qualquer que seja, não somos eticamente exigentes com eles (porque também não o seríamos connosco próprios), salvo se alguma das suas acções colide com os nossos interesses (caso em que defendemos acerrimamente a ética, os princípios e a honra). Na realidade, se aspiramos a uma sociedade em que os princípios éticos estão acima e antes da redacção das leis e se somos cidadãos contribuintes com os impostos em dia, essa colisão é efectiva e irremediável, mas temos grande facilidade em ignorar o facto, como se o mesmo não implicasse qualquer prejuízo da nossa parte. Por isso, acalentamos implícita ou explicitamente o dito que afirma que «quem parte e reparte e não fica com a maior parte ou é burro ou não tem arte!». Este modo de pensar (e sentir) e (de) agir condiciona grandemente a sociedade portuguesa: como não há referências éticas precisas com estipulada aceitação universal, não há política impoluta, nem justiça que funcione nem escola que valha.
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Segundo cada um de nós, a culpa - a que devíamos chamar responsabilidade - é sempre de terceiros, pelo que o que falha não resulta de prática pessoal assumida ou do incumprimento da palavra dada, já que o nosso sentido de justiça é (demasiado) centrado (e funciona) em (proveito de)… nós mesmos. Em consequência, somos tão diversos em certas tradições e manifestações culturais e sócio-políticas (vejam-se as diferenças Norte-Sul ou entre continente e ilhas), quanto uniformes naquela «ronha» que tão rigorosamente nos caracteriza (e diminui e prejudica).
Não sei, porém, se foi por sermos como somos que sobrevivemos como nação indivisa ao longo de tantos séculos. Neste «nem escapamos nem sucumbimos» a certo mau viver, talvez nos aguentemos «eternamente», mas (suponho que) com prejuízo de (quase) todos, incluindo os que não suspeitam disso.

José Batista d’Ascenção

domingo, 18 de março de 2018

Sobre o meu amigo António Leite Bastos, notas ao correr da pena

Com o meu amigo Bastos eu poderia conversar horas seguidas. Na realidade, talvez devesse deixá-lo falar do que muito bem entendesse, sem intervir, só pelo gosto e pelo proveito de o ouvir. Quando me pronuncio, fica-me a dúvida sobre se não estou a perder algo mais que dissesse. O Bastos viveu muito. É um minhoto de gema, das terras de Basto, mas a vida e o mundo caldearam-no de modo tal que o vejo como um bom cidadão português de todos os lugares, um homem de princípios éticos irrepreensíveis e de opções e posições claras, mas nunca ostensivas ou impositivas.
Tem uma memória invejável de que não é possível duvidar. Da sua meninice e juventude abre, às vezes, o baú de histórias deliciosas, com pormenores tão realistas que as ouvimos como se nelas estivéssemos a participar. Sirva de exemplo o daquele professor que, perante os erros calamitosos que uma aluna (que nem era das piores) escrevera no quadro, já no final da aula, lhe ordenou: - tem paciência, ou apagas ou assinas! E a menina, atarantada, assinou, tendo o quadro ficado assim após a aula.
Sabe de cor as datas de todos os aniversários dos seus muitos convivas e dos filhos deles, e das pessoas das suas relações. Ou de outras, como é o caso de políticos e de dirigentes desportivos. E o mesmo se passava com números de telefone, quando os dispositivos não gravavam as listas de contactos. E também é assim com matrículas de carros (da última vez que troquei o meu carro velhinho, a brincar, enviei logo a matrícula nova ao Bastos, para o caso provável de, nalgum momento, me esquecer dela ou me baralhar!).
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Feito o secundário, o Bastos rumou a Coimbra, para frequentar a Faculdade de Letras, onde se licenciou em Filologia Românica. Docente do grupo de português/francês, profissão que foi a sua, vinham-lhe de longe o gosto e a aptidão para línguas, de modo que ainda hoje nos explica termos e frases em árabe, que chegou a estudar com um professor que admirava. A maneira como esclarece a origem de certas palavras, caso lhe perguntemos, é sucinta e clara e agradável. Coimbra ficou-lhe no imaginário (leia-se, no peito) de forma tão profunda e comovente que, hoje, quinze anos depois de se ter aposentado, está sempre disponível para lá voltar em romagem de saudade e gratidão. Com entusiasmo percorre os espaços na universidade e pela cidade, e leva-nos à rua e à casa onde viveu e ao café, no «quebra-costas», que frequentava com os amigos da mesma casa e do seu ou de outros cursos. E indica-nos a mesa que ocupavam normalmente, a metro e meio daquela outra, lugar de homens de gabardine e ar fechado, que ninguém conhecia da academia e que todos tinham por agentes da «PIDE». Ali nos sentámos, há coisa de um ano, a saborear o tempo e a liberdade e foi muito bonito ver o balconista, senhor já calvo e com falhas de dentes, reconhecer o Bastos e falar-lhe dos seus outros colegas «doutores». O senhor Arsénio, muito jovem nesses tempos, arranjara ali emprego e viria a ficar, anos mais tarde, dono do estabelecimento. Pelo aspecto, não enriqueceu, mas preservou a humilde gentileza e disponibilidade de então. O Bastos viveu com interesse as manifestações da praxe académica, excluídas bizarrias animalescas como as do presente, e as actividades culturais coimbrãs: há tempos fiquei-lhe com alguns «cedês», para ouvir e oferecer, de um fadista de Coimbra seu contemporâneo que, por exigência e perfeccionismo, recusou, mais do que devia, e com prejuízo próprio e alheio, a prática da arte musical. Ouviu-o com apreço, in illo tempore, Vinicius de Morais, durante uma noite, na república «Baco», mas nem esse estímulo evitou o apagamento voluntário. É jurista, chama-se Fernando Gomes Alves e é um deleite, através da sua voz, imergir na beleza e matar saudades dos sons de Coimbra.
A seguir a Coimbra, após a formatura, veio a «guerra colonial», que o Bastos fez na Guiné-Bissau. O dia libertador chegaria enfim, mas o meu amigo cumpriu no mato, com a patente de alferes, todo o tempo de serviço. Hoje, o Bastos fala-nos da guerra com uma placidez tocante. É a única pessoa, entre familiares meus e meus conhecidos que viveram essa experiência, que é capaz de o fazer desse modo (nem António Lobo Antunes). Foi uma dura prova, em que a sua formação e o trato com as pessoas lhe granjearam a consideração dos superiores e o respeito dos subordinados. Respeitava e procurava compreender os nativos, quaisquer que fossem as tribos a que pertencessem: balantas, papéis, manjacos, bijagós, nalus… Com os elementos das milícias fazia uso do seu tacto particular: pedia-lhes as informações que supunha que eles conheciam, dando tanta atenção à expressão que imediatamente assumiam como às palavras que articulavam, e assim ficava com uma ideia mais próxima dos perigos com que era preciso lidar. Sabia gerir o medo, o seu e o dos seus homens, mesmo nas situações (mais) adversas, como naquela ocasião fatídica em que um deles pisou uma mina antipessoal e ficou reduzido a pedacinhos que couberam num pequeno saco de plástico. Relativamente aos oficiais com quem conviveu salienta, na qualidade de militar, a estima que sentia pelo general António de Spínola.
Veio da guerra sem mazelas físicas e foi racionalizando sobre as marcas que sempre ficam. Com sucesso. Depois começou uma longa carreira de professor de português, francês e literatura portuguesa. Por amor à docência e por não se identificar com o regime político de antes de 1974, fugiu como pôde dos cargos de direcção. Até os inspectores do tempo da ditadura, que lhe apareceram de surpresa à porta da sala de aula, por mais que uma vez, lhe reconheceram o mérito, e isso deu-lhe grande satisfação pessoal. Já em tempos de liberdade, para além da docência, aceitou orientar professores em estágio e fê-lo bem. No café, onde tenho o privilégio de me sentar com ele e outros amigos, é muito bonito ver chegar tantas pessoas mais ou menos jovens que, carinhosamente, o querem cumprimentar. E fazem-no com um misto de alegria e gratidão nada comuns. São quase sempre seus ex-alunos.
O meu amigo Bastos até na sua opção clubística é tão delicado e superior que desarma com um simples sorriso qualquer dito (mais) provocador de qualquer membro da tertúlia que se reúne à sua volta.
Em relação a ele só uma pena sinto: a de que não reduza a escrito tantas histórias com interesse e algumas particularmente saborosas que protagonizou ou de que foi testemunha.

Nota: este texto é apenas um leve apontamento, algo indefinido, sobre aspectos que aprecio no meu amigo. Conhecer a sua vida e o modo como a viveu daria muitos textos, de que não estou à altura, nem cabem aqui. 

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 1 de março de 2018

O facto maravilhoso de cada ser humano ser único e irrepetível, exceptuando os gémeos verdadeiros e a horrenda possibilidade de clonagem

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Entre familiares, amigas e amigos meus (que, em situação similar, comovidamente felicito), são vários os casos de exaltação e entusiasmo perante o nascimento recente ou próximo de netos, nalguns casos pela primeira vez. E, havendo em Portugal tantas pessoas de mais idade e proporcionalmente tão poucas crianças, talvez esse facto contribua de algum modo para a expectativa dos meses de espera e para a festa com que se vive cada natividade.
Um facto maravilhoso fácil de constatar, e com que procuro cativar os meus alunos, é referir-lhes a improbabilidade de que, numa família, um nascimento traga a cópia de alguém que tenha nascido dos mesmos pais em datas anteriores, e muito menos de quaisquer outros pais do presente ou do passado, desde que a humanidade existe. E, para adensar o espanto, pode sempre referir-se, como costumo fazer, que, nos tempos futuros, por mais ou menos gerações que a espécie humana dure, não é provável que surja uma cópia exacta de alguém que hoje vive.
Ora, as nossas características biológicas, por assim dizer, são o resultado da expressão de um código que existe no núcleo das nossas células, inscrito numa substância (uma macromolécula) chamada ácido desoxirribonucleico (sigla ADN), muito longa e por isso muito condensada num certo enrolamento (à volta de proteínas), com muitos sectores (genes), correspondentes ao código das nossas características hereditárias (genéticas). Como não seria prático ter todos os milhares de genes humanos num só filamento, cada célula humana possui 46. Esses filamentos chamam-se cromossomas (porque se podem corar facilmente com certas tintas usadas para facilitar a observação ao microscópio óptico), e vinte e três desses cromossomas são herdados do pai e os outros vinte e três são herdados da mãe. Já as nossas características não hereditárias (desde o corte de cabelo às formas de convivência) resultam da influência do meio, em que se inclui a acção educativa.
Aqui, falamos de variabilidade genética. De onde surge essa variabilidade, quando e como?
Para os seres vivos se reproduzirem e originarem descendentes com variabilidade (genética) é que surgiu a reprodução sexuada, o único modo de multiplicação possível nos animais ditos superiores (uma planta, além da reprodução sexuada, pode reproduzir-se assexuadamente por «estaca», por exemplo, originando outra ou outras geneticamente iguais à primeira - o que corresponde à formação de clones, facto que o Homem aproveita há milénios). A reprodução sexuada exige a formação de células germinais (gâmetas) que têm que se fundir entre si, num processo chamado fecundação.
Quando os gâmetas se formam (na mulher começam a formar-se nos ovários, ainda antes do nascimento!, e nos homens formam-se nos testículos, a partir da puberdade), por divisão de células com 46 cromossomas, ocorre uma divisão celular especial em que as células-filhas ficam com apenas metade dos cromossomas da célula-mãe (divisão por meiose, que quer dizer «reduzir a metade»). Estas células produzidas aos milhões nos testículos e contando algumas centenas nos ovários adultos, podem encontrar-se na fecundação, originando então a primeira célula de um novo ser, chamada «ovo» ou «zigoto». Acontece que quando os gâmetas se formam, a partir de células com 23 pares de cromossomas [22 desses 23 pares dizem-se homólogos porque têm o mesmo tipo de informação genética, mas eventualmente não coincidente, por exemplo o carácter liso ou encaracolado do cabelo num e noutro dos cromossomas do mesmo par; e o vigésimo terceiro par corresponde aos cromossomas sexuais, que não têm o mesmo tamanho nem conteúdo genético equivalente], ocorre a separação aleatória dos cromossomas de cada par – recorde-se, um deles herdado da mãe e o outro do pai – de modo independente de cada um dos outros 22 pares. Assim, cada gâmeta recebe 23 cromossomas, mas tanto podem ser 12 de origem materna e 11 de origem paterna como o inverso ou ocorrer uma distribuição em qualquer outra proporção possível, por exemplo, 15 de origem materna e 8 de origem paterna. Portanto, cada gâmeta tem só metade do número de cromossomas das células do corpo (células somáticas), mas baralhados entre os que são herdados do pai e os que são herdados da mãe da pessoa em que são produzidos, num número de combinações que é de 2 elevado a 23, em que 23 se refere ao número de pares de cromossomas. Este número, no caso humano, corresponde a uma de 8.388.608 possibilidades para cada gâmeta formado, seja ele masculino (espermatozoide) ou feminino (ovócito II). Se não houvesse outra fonte de variabilidade genética (e há), a probabilidade de um dado espermatozoide, com uma das combinações de entre as mais de oito milhões e trezentas e oitenta e oito mil possíveis (precisamente aquele e não outro), se encontrar com um dado ovócito II (de entre um número igual de possibilidades), seria uma de 8 338 608 x 8 338 608 = 70 368 740 000 000 000 000. Ou seja, o inverso de um número mais de nove mil vezes superior à população actual da Terra!
Acontece porém que, antes ainda da separação dos cromossomas de cada par, há um fenómeno de permuta entre os genes dos seus cromossomas, recombinando os genes de procedência materna de um dos cromossomas com os genes de origem paterna do outro cromossoma, pelo que, após a separação, cada cromossoma, embora portador do mesmo número de genes, já os leva numa dada combinação, entre os que foram herdados do lado da mãe e os que foram herdados do lado do pai. Esse fenómeno chama-se «sobrecruzamento» e aumenta a variabilidade genética num factor cuja ordem de grandeza nem sabemos calcular.
Produzidos os gâmetas, todos «originais», o encontro entre espermatozoide e ovócito, em condições naturais, não se pode prever (quem casa com quem e quando e em que altura vai ser gerado um bebé?) e aí reside outra fonte de variabilidade.
Aqui, chegados, percebe-se que cada ser humano é fruto de uma «improbabilidade», de uma lotaria que saiu uma vez e não volta a acontecer (por comparação, acertar no totoloto, vezes repetidas, deve ser muito mais provável!). Podíamos dizer, por isso, que cada pessoa é um «milagre», uma preciosidade única, merecedora de um respeito profundo, só por existir, e de um maravilhamento afinal extensivo a cada criatura do planeta.
Há que ter alguma sensibilidade na análise, porém, pois que, em certo ano, em que eu, com todo o entusiasmo, explicava isto numa turma de alunos, verifiquei que uma menina ficara consternada: aproximou-se no final e disse-me desapontada: - «sotôr» eu acredito na reencarnação!

José Batista d’Ascenção