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Volto à conversa contigo, meu neto. Nós, os que vamos ficando velhos, temos necessidade de falar, independentemente de nos quererem ouvir. Por isso falamos sozinhos, até, ou com os animais ou com pessoas imaginárias ou com os nossos botões, também para não incomodar. Tu estás um «homem» bonito de ver: olhos vivos e luminosos, sorriso desarmante e um palrar sonoro e cativante. É bom e faz bem ver-te crescer, bem alimentado, aconchegado e saudável. E é uma sorte que possas crescer assim, desejando nós que a mesma sorte te acompanhe a vida toda.
Mas, nas nossas cidades (na tua e na «minha»), no nosso país e em muitas regiões do mundo, há muitos meninos que não têm pão, nem casa, nem quem cuide deles, nem escolas, nem jardins, nem sítios seguros para brincarem ou sequer viverem. E muitos são levados de fugida, ao colo dos pais (que às vezes perdem ou deles se perdem), por caminhos e mares, em desespero, porque as suas terras se transformaram em lugares de sofrimento e horror insuportáveis. Que bom, tu não seres um desses meninos, e que mau que haja meninos nessas condições.
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Também é bom pensar nas possibilidades que hoje existem para acompanhar os bebés e as crianças portuguesas em geral, por comparação com o que acontecia no nosso país há apenas cinquenta anos (andava eu na escola primária). Mas há algo que piorou: o número elevado de crianças que então nascia e as poucas que nascem hoje. Certo que não faltam pessoas na Terra e algumas talvez venham para Portugal (precisamos de pessoas, sabes…), mas se não for assim vais crescer numa sociedade com muitos adultos e velhinhos e com (muito) menor proporção de meninos e jovens…
Por esta altura e nos dias próximos, até ao Natal, muitos são os adultos que se afadigam a gastar o que podem (e o que não podem) para comprarem presentes (muitos presentes) para oferecerem uns aos outros e, naturalmente, às crianças. Em não poucas famílias, os meninos ficam atafulhados de tralha e talvez seja por isso que lhe ligam tão pouco. Bem gostaria que não fosse assim contigo, meu rapaz, mas tenho receio. E há também aqueles meninos que nem um brinquedo, simples que seja, hão-de receber. Sempre foi assim (o que não está mais certo por isso). Mas o fundamental era que a uns e a outros não faltasse o pão e o carinho, qual deles o mais necessário, e um tecto, humilde que fosse.
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Depois, meu filho, há o lixo, cada vez mais lixo, que os adultos (e jovens) consumistas e os meninos mimados fazem cada vez em maior quantidade. E há esta bola em que existimos que não aguenta tanto «esterco sintético», não degradável. Eu e os da minha geração falhámos (também na educação das crianças e dos jovens) e deixámos degradar a «casa» que habitamos e de que somos parte, e que está repleta de motivos curiosos, extraordinários e belos. A humanidade tem os seus defeitos, meu querido. Assim mesmo, nunca a vida foi tão boa, ainda que para uma fracção minoritária dos seres humanos.
Com o teu pequenino contributo, somado aos de outros da tua idade, anima-me a ideia de que a «casa de todos» evolua para melhor. Mas antes que isso aconteça tens que brincar muito. Essa é, provavelmente, uma das condições necessárias para que possa acontecer.
Não te maço mais.
Um abraço apertado.
José Batista d’Ascenção
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