Acontece que cada autor, enquanto ser humano, é sempre um produto modulado pelos padrões sociais, culturais e educacionais do seu tempo, e das suas aventuras de vida, face às possibilidades que as condições biológicas (a genética, a neurofisiologia, a alimentação, a saúde…) determinam ou permitem. Inescapavelmente.
Vem isto a propósito de uma das minhas leituras de férias, «O Retrato de Dorian Gray», de Oscar Wilde. Pois li com desconforto a opinião de uma das suas heterodoxas e brilhantes personagens sobre as mulheres, em várias passagens. Trata-se de preconceitos tão taxativos quanto infundados, numa obra literária de grande fôlego - «O mais importante romance de Oscar Wilde» - lê-se na capa, por debaixo do título (Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2003). E surgiu-me a dúvida sobre se tais opiniões são (apenas) da personagem ou do próprio autor, mesmo descontando o seu apego ao cinismo, ao sarcasmo e à ironia. O mesmo senti sobre as relações amos-criados, em que estes são tratados mais como autómatos ou coisas do que como pessoas, pessoas de quem se aprecia «a plácida marca do servilismo» (pg 175).
Recentemente, li algumas referências aos registos de S. Paulo sobre a posição dos homens e das mulheres no casamento. Umas condenando, outras defendendo. Ora, poucos opinadores são capazes de situar o apóstolo no seu tempo, por incapacidade ou falta de habilitações, ao contrário do que faz brilhantemente o académico Frederico Lourenço, em textos de luminosa profundidade. Tem tanto sentido acusar(mos) o Santo de desprezo pelas mulheres como acusá-lo de não se opor à escravatura…
Ou seja: tendemos a olhar o passado com os olhos e o pensamento do presente e a julgá-lo pelo prisma que nos é imediato ou conveniente. Acontece que é desejável algo mais para um entendimento esclarecido.
Que às marcas do tempo nem os santos escapam.
José Batista d’Ascenção