Pescoço "alado", característica de pessoas com síndrome de Turner |
Os meus avós maternos tinham uma horta primorosa, onde também havia uma capoeira com algumas galinhas. Lembro-me de, criança, me deter frente à rede a reparar num exemplar que não era fêmea nem macho. A ave cresceu com as outras, mas ficou sempre diferente: nem pôs ovos nem cantou de galo. Os meus avós chamavam-lhe “galela”. Vim a saber que o termo não era deles. A “galela” foi uma curiosidade que acabou numa caçarola, dado que, para esse fim, tanto fazia. Mais tarde fiquei a saber que fenómenos dessa natureza também afectavam ovelhas e cabras, e que, para as pessoas rurais, isso não era uma realidade estranha.
Aquilo ficou-me. Entre 1980-85, na Universidade de Coimbra (UC), o meu professor de genética clássica, Montezuma de Carvalho, havia de elucidar nas suas aulas várias anomalias cromossómicas do par sexual nos humanos, comummente XX nas mulheres e XY nos homens: a monossomia X (X0), causadora da síndrome de Turner; a trissomia XXY, que origina a síndrome de Klinefelter; a trissomia XXX; a trissomia YYX; etc.
Aquele professor, que era uma personagem curiosa, acabou por nunca mostrar no meu núcleo de estágio pedagógico a carta com a cunha para Oliveira Salazar ser admitido na UC, que um dia (nos) “prometera”. Em compensação, certa vez, trouxe-nos um gato bebé só com um olho no centro da testa – um ciclope – que, havia décadas, conservava em formol.
Nesses anos, por mais do que uma vez me referiram que determinada pessoa, também estudante, a que chamavam «Paulinha», não era o que parecia em matéria de sexo. Nunca troquei com ela qualquer palavra nem lhe percebi qualquer gesto ou atitude que denunciasse algo fora de comum. Duvidei até, admitindo que fosse boato, e nunca teci comentário algum com ninguém, apenas me interroguei sobre a concretização da matéria das aulas do Prof. Montezuma.
No campo desportivo, o caso da atleta sul-africana, Caster Semenya, recordista de velocidade, não me deixou surpreso, vi-o como confirmação da complexidade da Natureza e da ignorância humana.
Enquanto professor (do ensino secundário), ao longo de quase quatro décadas, tive conhecimento de dois casos de alunos(as) intrinsecamente desconfortáveis com a sua identidade sexual, e num deles, fosse como fosse, era recorrente a fuga das aulas de educação física, particularmente dos balneários. Nunca soube se, no que sentia, pesaria mais a insatisfação pessoal ou o medo da reacção dos colegas.
Nas aulas de biologia, sempre que a matéria fazia parte dos programas, fiz esclarecimento de casos típicos, discuti-os seriamente com os alunos e nunca foi difícil mostrar-lhes que a lotaria hereditária poderia ter conferido, com maior ou menor probabilidade, a qualquer um deles ou aos seus familiares, havidos ou a haver, amigos ou conhecidos alguma das situações analisadas. O objectivo foi sempre o de focar a importância de reconhecer que o património genético de cada qual não foi escolhido pelo próprio, donde é preciso sensibilidade e um profundo respeito por todas as situações, mormente as que, de há muito, estão tipificadas. Respeito, repito, que é mais fácil quando a escola ensina, como devia.
Já as tentativas de forçar gramáticas que contemplem a panóplia imensa de casos, traduzida em siglas e palavras supostamente inclusivas, deviam ceder prioridade ao estudo, ao conhecimento e à ponderação, tornando claros e comuns os conceitos da ciência, como factores de prevenção de eventuais catalogações espúrias, segregacionismo e intolerância.
José Batista d’Ascenção
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