Quando eu era menino, ir a casa dos avós (maternos), no extremo da aldeia, a que, por essa razão, se chamava e ainda chama “outr’aldeia”, com as minhas irmãs, enchia-me, a mim e a elas, de expectativa e entusiasmo. Por um lado, a comida da avó, fosse qual fosse, era sempre diferente e muito especial, de tal modo que me ficou a ideia de que, se fosse possível prová-la em qualquer parte do mundo, próxima ou longínqua, naquela altura, agora ou em qualquer tempo futuro, a identificaria de olhos fechados à primeira vez que a levasse à boca. Era assim e assim me ficou na cabeça e em todo o meu ser, com destaque para o recôndito do peito. Por outro lado, havia um ambiente tão próximo, tão confortável e tão convidativo, enfim, tão nosso, que, não raro, dava vontade de fugir e dar uma saltada à casa dos avós. Claro que, sempre que isso acontecia, lá estava a avó, muito firme, a perguntar se a mãe sabia aonde tínhamos ido, dava-nos alguma coisinha pequenina, se tinha, e apressava-nos o regresso. Falava eu de doce e excitada expectativa, que aumentava exponencialmente se, para além de nós, estivessem alguns primos. Praticamente, todas as semanas íamos à outr’aldeia e os avós vinham também, com frequência idêntica, mas não em dias fixos, à nossa casa.
Mas o mais saboroso do que retive eram os serões das noites longas de Inverno. Na casa dos avós, pobre como era a casa de todas as pessoas da família, costumávamos ficar à lareira, à noite, depois da refeição, com o lume a crepitar e todos em roda, o avô fechando o semi-círculo do lado esquerdo, na sua cadeira, e a avó do lado oposto, num banquinho, de costas para o armário grande, de onde podia sempre tirar alguma coisa saborosa, a distribuir pela pequenada, que brincava entre si e escutava com mais ou menos interesse os conselhos dos adultos, indiferente à cavaqueira entre eles. Estes, por entre a conversa, mantinham-se de olho nos nossos movimentos não fosse algum de nós chegar-se demais ao fogo. Um lugar muito apreciado por mim e pelos meus parceiros de brincadeira era o espaço entre os joelhos do avô, com um dos seus braços a rodear-nos a cintura – chamávamos-lhe a “casinha do avô”. Se o ciúme dos restantes não era (muito) notório, porque, se o fosse, o avô dava um afago, aceitava um beijo e docemente reconduzia o beneficiário para a brincadeira com os pares, as suas mãos fortes e calosas erguiam o ocupante e sentavam-no, por alguns minutos, numa das pernas. Como se estava bem ali: com uma das mãos do avô a amparar-nos as costas e a outra sobre o peito, ao receber um beijo sobre o cabelo, elevava-se a gente numa espécie de trono de algodão doce a contemplar um mundo perfeito e seguro. Melhor só quando o avô correspondia ao pedido de algum de nós para que contasse um conto. Um conto à escolha do avô. E então, quando ele começava, um silêncio descia sobre todos, para que a história fluísse nas palavras de encantamento que, ora numa altura ora noutra, faziam brilhar os olhos dos ouvintes, e só eram interrompidas por interjeições de espanto ou explosões de gargalhadas. Nesses momentos, o avô cadenciava o discurso, para acentuar o “suspense” ou estimular o riso, intervalando se necessário, até todos ficarem à espera, muito atentos e presos à continuação. Cada conto podia estender-se mais ou menos, e dar lugar a outro ou a outros consoante as reacções e o entusiasmo da assistência. O fim aproximava-se quando um ou outro dos mais pequenos se esforçava por arregalar os olhos, a que o peso do sono fazia descer as “persianas”. Nessa altura, para alguns de nós, já o conto era sonho, embalados no berço de encantamento que eram os braços em que, aconchegadamente, adormecêramos.
Bem-haja eterno, queridos avós.
José Batista d’Ascenção
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