Terminei há dias a leitura do romance de Nuno Galopim publicado em Setembro último. É um livro escrito «a régua e esquadro», numa linguagem muito precisa e clara [contrariando, e bem, a tendência de muitos escritores para a complexificação do discurso e das ideias, como se – suprema ilusão, deles e dos leitores, em perspectivas múltiplas e diversas – não quisessem ser entendidos. Uma tal complexidade impõe-se(-me) em obras com a envergadura de um «Ulisses» de J. Joyce, mas não consigo sofrê-la em genialidades da escrita que - ideia minha – não resistirão à passagem do tempo], sem perda de fluência, de coerência, de criatividade e da curiosidade que desperta no leitor, o qual progride com gosto e se surpreende até às derradeiras páginas.
Muito estudou o autor: sobre os assuntos da História sócio-política, entendida nas linhas e nas entrelinhas da intriga que lhe subjaz; sobre a linguagem e os modos de vida da época e das figuras históricas que tomou como protagonistas (veja-se a referência ao …«hábito antigo de [o rei] comer apenas uma refeição por dia. Uma refeição interminável»…, páginas 161 e 162); sobre a caracterização de ambientes e de espaços exteriores e interiores, onde a narrativa faz decorrer as acções, assim como sobre os locais, as paisagens e a geografia em que os humanos se inscrevem, de modo característico, realística e consistentemente documentado. Pelo livro perpassa e transparece o estado de conhecimentos científicos da época, assim como a mentalidade dos tempos, manifesta, por exemplo, nas multidões que assistem gulosamente aos autos-de-fé. A personagem principal, em toda a sua desventura, resultante da sua psicologia e do seu desinteresse mais que da sua incapacidade de governação, é bem vincada. Assim, o infeliz D. Afonso VI, libertino e irresponsável, mas cheio de humanidade, nos defeitos e no sentir profundo de algumas prerrogativas e coordenadas próprias da função que devia desempenhar, acaba, mercê da mestria do autor, por cativar a simpatia do leitor.
Lê-se o livro e parece que assistimos ao desenrolar da História real – não da História que é a versão dos ganhadores («O vencedor escreve habitualmente a História a seu gosto», página 231, ideia que já havia sido referida antes e que volta a sê-lo depois) – feita das grandezas e misérias do género humano, em que se sucedem as cenas impressivas e dinâmicas no interior de palácios, igrejas ou tabernas, nas praças ou nas ruas, nas viagens por terra ou por mar, nos diálogos entre as personagem e na tessitura fisionómica e caracterológica de cada uma delas, de modo que em todo o entretetecer dos fios do enredo se revela, sobretudo, o fundo inescapável da natureza e da alma humana e das condicionantes que as podem afectar.
Os títulos de cada capítulo limitam-se invariavelmente a indicar o ano e o local, situando o leitor no tempo e no espaço. Os diferentes capítulos e a sequência em que se organizam poderiam funcionar como o guião preciso de um filme baseado na obra, que bem o merece. Afirmo-o sem autoridade na matéria, que parca é a minha cultura cinéfila, mas porque foi o que senti, e por me aborrecerem filmes de que adivinho o fim às primeiras imagens. Além disso, justifico o meu atrevimento com a convicção de que o livro e um filme que se fizesse sobre ele poderiam, considerada a aversão dos portugueses pela leitura, complementar-se no que respeita ao estímulo do prazer de ler e de conhecer e gostar da História de Portugal.
O motivo da história romanceada neste livro é a investigação sobre se o rei D. Afonso VI, que ficou para a História como impotente, que nem sequer consumou o seu casamento, e viu a rainha sua mulher desfazer a união [fazendo uso desse argumento, tornado acusação, dirimida num tribunal «constituído para discutir o corpo de um rei» (página 108)], para casar com o próprio cunhado, irmão mais novo de D. Afonso VI – o infante D. Pedro –, teria, afinal, deixado descendência fora do casamento. D. Pedro prendeu e desterrou o rei seu irmão, tempo durante o qual foi regente, até ele morrer e lhe herdar a coroa. A razão de uma investigação sobre a possível descendência de D. Afonso VI relacionava-se com a importância vital de aumentar as possibilidades legítimas de sucessão ao trono num quadro político (ainda) sequente à restauração da independência de Portugal, enquanto não fosse seguro que viessem a nascer e chegassem à idade de poder reinar filhos varões de D. Pedro II.
Os meandros da narrativa, na sua riqueza e precisão, exigem naturalmente a leitura do livro, de que não é possível alguém vir a arrepender-se. Como «prova» não deixo de referir a que me pareceu a sua frase mais bela, personificando a ilha Terceira e o Monte Brasil: «Um imponente monte (…) que saía da ilha como um braço com uma mão aberta se lança de um corpo quando acena a alguém.» (página 146) Quem tem sensibilidade e recursos para escrever algo assim, tem seguramente possibilidades de escrever muito mais com igual valia literária.
Boas leituras.
José Batista d’Ascenção
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