Os membros daquele casal eram de origens humildes. Com grande esforço, depois de uma escolaridade que não lhes foi fácil, onde venceram como puderam as dificuldades de percurso, e se conheceram no muito que tinham em comum, começando a namorar, conseguiram uns empregos modestos, pelo que, feitas contas à vida, decidiram casar-se. O governo da casa e as contas a pagar em cada mês obrigavam a gestão apertada dos fracos proventos, que geriam com racionalidade. Como não havia folga, decidiram-se por terem apenas um filho. Era importante ter um filho e dar-lhe as condições de que eles próprios e tantos como eles não haviam beneficiado. Passaria a ser o seu objectivo maior.
Nascida a criança não haviam de faltar-lhe amor e cuidados. Sempre tinham ouvido dizer, a pais e avós, que as pessoas se fazem desde pequeninas e que dificilmente alguém não seria bom tendo uma infância afectivamente rica e protegida.
Gostavam um do outro, felizmente, e não viam mais nada que o seu menino. Que mais e melhor podiam fazer? Estava escolhido o caminho.
Aquele menino foi crescendo com tudo o que os pais lhe podiam dar: da alimentação ao conforto, dos brinquedos às vontades que expressava ou que simplesmente adivinhavam. Desde o jardim infantil e dos primeiros anos da escola, a que em tempos se chamou «primária», procuraram que ao seu menino não faltasse o que os outros tinham, mesmo aqueles que tinham posses que não eram as suas. E o menino cresceu, manifestando e pedindo cada desejo, primeiro, e exigindo-o caprichosamente com o passar do tempo, cada vez com mais veemência, fosse na comida, no calçado e na roupa, no computador e artefactos associados ou no modelo caro de telemóvel. Os pais esforçavam-se por compreender: os tempos eram outros, todos os meninos tinham, como podia o seu não ter também? E passaram a poupar ainda mais nos gastos para si próprios ou em aquisições para a casa, agora que também já ganhavam mais um bocadinho, em favor das facilidades para o seu jovem em crescimento.
Na escola, o rapaz, que não era falho de inteligência, no dizer dos professores, era pouco atreito ao trabalho, tendia para a batota, especialmente copianços, que via como um direito e executava exemplarmente, e valia-se do seu franco desenvolvimento físico para mandar nos colegas, que receavam a capacidade de manipulação de que sabia revestir as suas exigências. Quando havia trabalho de grupo, uma técnica que alguns professores usavam, arranjava maneira de não colaborar muito mais do que apor o nome e reclamar mais na classificação final. Capaz de argumentos frontais, tanto mais afirmativos quanto menos verdadeiros, passou a ser visto como dotado de recursos particulares e chegou mesmo a ser proposto como líder de equipas escolares que debatiam nos «parlamentos dos jovens» e na propaganda para as listas das associações de estudantes, à maneira dos políticos adultos com traquejo. E aqueles, mais discretos, que não deixaram de referir certas falhas de legitimidade de algumas posições foram ignorados pelos restantes, quais fracos, com falta de garra e de vontade imperturbável. O rapaz era visto como um líder. E só não aceitava ser eleito delegado de turma, porque não estava para esse trabalho, porquanto, aliás, qualquer que desempenhasse o cargo fazia o que ele queria.
Cada vez mais desenvolto, o jovem ganhava protagonismo, dentro e fora da escola, pelo que foi com gosto que se inscreveu na claque de apoio ao clube de futebol da sua cidade. Em breve se destacou e era com vivo prazer que desfilava com dezenas de outros, que lhe reconheciam a bravura, no meio de centenas de polícias, muito cuidadosos, não fosse acontecer alguma coisa àqueles jovens, por alturas dos desafios. Dentro e fora dos recintos dos jogos, sentia-se bem ante a perspectiva de poder aplicar murros e pontapés, debaixo de insultos, se não fosse possível o uso de objectos contundentes, contra aqueles insossos que se permitiam ir ver futebol sem qualquer adrenalina…
E porque a escola age sempre com muito cuidado em não perturbar o crescimento livre dos meninos, compensando qualquer vestígio de hipotética capacidade, o rapaz fez o ensino secundário e conseguiu entrar na universidade. Foi um orgulho para os seus pais, que nunca, eles mesmo, ali se haviam podido imaginar. Tinham valido a pena os seus sacrifícios.
Na universidade, o nosso jovem, depressa se impôs nas manifestações da «praxe». Enquanto caloiro, aquilo a que o sujeitaram eram brincadeiras de criança. Quase se ria de tais infantilidades. Pelo que, nos anos seguintes, passou a mostrar como se fazia. Os que tinham iguais instintos apreciaram-no ainda mais e os que a ele se sujeitavam tomavam os insultos e as tiranias como o rigor de uma praxe a valer. Pois se é assim, nas nossas universidades…
Com o decorrer dos anos, cadeira agora e outra depois, aproximava-se o fim do curso. Não eram grandes as notas, mas quantos foram os grandes homens que fizeram cursos com mediania? - Pensaram os pais e pensava, principalmente, o filho.
Como, desde os tempos da escola, naquela altura em que se se treinara na argumentação «filosófico-política», entrara numa juventude partidária, onde fizera furor, por motivos óbvios, era objectivo dele, curso feito, chegar a secretário de estado. Também era essa a convicção de correligionários e colegas. E a partir daí logo se veria.
Havia de ser o cúmulo do orgulho para os seus pais, aquele (sempre) jovem cidadão com formação tão completa.
José Batista d’Ascenção
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