quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Fiandeiras d'algum tempo

Tenho um brinco com que brinco

Tenho um brinco que me enlouquece

Quanto mais brinco com o brinco

Mais o volume lhe cresce


Em tempos não muito distantes, dedicadas fiandeiras passavam horas de roca ao colo enrolando fio de lã, de linho ou de estopa no fuso que rodopiava entre o indicador, o médio e o polegar de uma das mãos, em acção combinada com o humedecimento com saliva do polegar e do indicador da outra mão, no acto contínuo de transformar um emaranhado de fibras precisamente nesse fio enrolado à volta da zona média do fuso.

Sendo mais do que uma mulher na fiação, a conversa podia incidir na vida alheia, indo da «Lua Nova» até à «Lua Cheia», e vice-versa, vezes sucessivas.

À volta do fuso esguio crescia em barriga o fio enrolado, até o tamanho atingido obrigar à sua fácil remoção, que se fazia puxando a maçaroca para a extremidade fina do fuso.

No ambiente rural, fiadas as maçarocas, seguia-se a tecelagem, em teares artesanais, a cargo de tecedeiras, que podiam ser as mesmas mulheres.

Os tecidos, produto final da fiação e tecelagem, eram nova matéria-prima para várias utilizações: vestuário, toalhas, lençóis, tapeçarias, sacos, etc.

A industrialização e os progressos técnicos varreram para o esquecimento ou para o vasto campo da ignorância aquelas ocupações das nossas bisavós dos ambientes campesinos.

Nem nos museus que ainda restam os jovens e as crianças de hoje percebem formas de viver que estão longe de ser remotas no tempo.

José Batista d’Ascenção

sábado, 26 de outubro de 2024

Só, à mesa do café

Fomos uma roda de amigos que frequentava «Os Coelhos». Sentávamo-nos e recebíamos em festa cada um que ia chegando. Eram ao fim-de-semana, os nossos encontros. Um destes dias ocupei eu, apenas eu, a mesa a que costumávamos iniciar cada confraternização. Então, parecíamos indiferentes à seta do tempo, mesmo quando começou a faltar um, depois outro dos convivas… Faltas definitivas, pelas leis da vida ou da saúde. Nunca falámos dos faltosos, como se fora impossível desocultá-los do peito. Vieram rugas e cabelos brancos, alargou-se a calvície, diminuíram os empolgamentos clubísticos do futebol e passámos a mostrar fotografias dos netos.

O senhor Miguel e o irmão sempre nos trataram familiarmente, como aos outros clientes. Depois, por saturação do senhor Pedro, o senhor Miguel ficou só, talvez mais apoiado pela esposa. Agora também ele arrasta uma das pernas, sem ter perdido a jovialidade de sempre. Quando, pela primeira vez, reparei, impensadamente, perguntei-lhe como tinha ficado assim. Respondeu-me que já estava muito melhor… e assim calou a minha inconveniente curiosidade.

Culpei a passagem do tempo, e senti mais agudamente a falta de outras caras, vozes e sorrisos. Voltei a culpar o tempo.

Desta vez, o senhor Miguel trouxe-me à mesa o segundo livro de poemas do filho, seu homónimo, a criancinha que há uns anos cirandava entre as mesas. Folheando-o, e lendo a primeira meia dúzia de composições, senti que é este outro tempo e que não há mais que aceitar a sua marcha.

Não pára o mundo. Nem nós paramos nele.

É assim. Ponto.

José Batista d’Ascenção

domingo, 20 de outubro de 2024

Trump Tranião (*)

No espantoso mundo de hoje, a mentira e a verdade são indistintamente usadas no argumentário político e, ultrapassadas quaisquer barreiras éticas e morais, a primeira prevalece sobre a segunda, de modo frontal e chocante para quem não perdeu os vínculos a princípios e à racionalidade.

As democracias e os valores do humanismo perdem terreno e a barbárie progride, na violência económica, que atira para a pobreza camadas populacionais cada vez mais numerosas, no ódio entre ideologias, culturas e religiões e, naturalmente, nas guerras em que desembocam.

Criminosos e assassinos, quando ascendem ao topo do poder político, arvoram-se em senhores da “moralidade” que procuram impor e eliminam por todos os meios os que os enfrentam. A democracia é menorizada, desvalorizada e aniquilada. Vale o autoritarismo, que parece ter muitos apoiantes.

O fracasso da educação, a nível mundial, e a dimensão da ignorância e do ódio disseminados pelas redes sociais, ao serviço dos seus donos, manipulam e condenam hordas de seguidores à escuridão que vai submergindo a humanidade.

Trump parece-me um produto das actuais condições políticas, sociais e culturais. Mente, ofende, não cumpre as leis, não reconhece as vitórias dos adversários, despreza os frágeis (chegou a recomendar a quem tinha «covid» que bebesse lixívia!) e deprecia as mulheres. Mas é muito (cada vez mais?) popular. Os grandes ditadores do mundo, de Xi Jinping a Putin, espreitam, aproveitam e agradecem.

Em que mundo vai viver a geração dos meus netos?

(*) Tranião, o trapaceiro-mor de «A Comédia do Fantasma», de Plauto, ficou impune. Trump vai ser recompensado?

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Arborização das cidades

É absolutamente necessário que as (nossas) cidades tenham artérias e outros espaços arborizados. Por via da sombra no Verão, da moderação das temperaturas, do consumo de dióxido de carbono, da produção de oxigénio e da manutenção de alguma humidade atmosférica, quando as árvores têm folhagem e o ar é mais seco. E também, claro, pelo embelezamento do verde ou outro colorido das folhas, assim como das flores e até dos frutos.

Mas a escolha das espécies deve ser ponderada e decidida em função dos espaços que vão ocupar e das características próprias: tamanho, volume/massa da folhagem caída, produção de pólens capazes de desencadear alergias, etc.

A tempestade desta semana derribou muitas árvores de grande porte, em cidades como Braga. Os prejuízos materiais e humanos podem ser elevados ou dramáticos. O risco nunca será zero, mas não podemos nem devemos “culpar” as árvores. Que mais fazer, então?

As podas deviam ser criteriosas e executadas de modo a não diminuir a resistência mecânica de troncos e ramos. Por outro lado, uma profissão que devia ter mais elementos é a de técnico de análise da saúde das árvores dos espaços urbanos, no que respeita a sistemas radiculares, troncos e ramaria. A detecção de árvores de grande porte em perigo de caírem já se faz com boa precisão, pelo que muitas quedas se podem prevenir, fazendo os abates necessários no último terço de cada Estio. Isto custa dinheiro, mas os prejuízos materiais também e as vidas não há valor que as pague.

Não podemos admitir nem permitir a desarborização das cidades, porque precisamos de árvores por perto.

As árvores são nossas amigas.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Mundo cão

Aluno da Universidade do Porto «identifica-se com um cão»

A Natureza produziu, por evolução, animais como os lobos (Canis lupus L.) e outros cães selvagens, uns do mesmo género taxonómico (Canis) e outros não. Dos lobos, a espécie humana criou, por selecção artificial, todas as variedades de cães (domésticos), num processo que não tem fim… É da biologia. Explicou-o primeiramente Charles Darwin.

Até recentemente, quando se pensava na evolução dos seres vivos, considerava-se o ser humano o expoente máximo da evolução. E, de facto, o cérebro humano é o órgão biológico de pensamento e reflexão mais complexo que o processo evolutivo da vida produziu. Pelo menos é aquele que maior influência e mais alterações pode concretizar, relativamente à nossa espécie e às outras, bem como ao ambiente, de que dependemos.

Fazendo fé em que a inteligência artificial não nos subjugará aos ditamos dos seus incansáveis, frios e “pacientes” algoritmos, a nossa massa cinzenta continuará a ser o factor principal das acções humanas. Ou não, se as forças da Natureza, por si, ou devido à acumulação de perturbações que nela causamos, nos varrerem para a inexistência ou para alguma condição radicalmente limitadora. Também podemos admitir que a máquina do pensamento humano esteja a atingir algum tipo de saturação limitante e tenda a repetir as loucuras demenciais que, recorrentemente, semeámos na História, alturas em que nos “devoramos” que nem “cães”. Isto é um insulto para os cães (apesar das aspas), bem sei.

Por mim, não creio (nem desejo) que possa chegar ao ponto de me sentir um cão, caso indesejável, mas que não seria original.

José Batista d’Ascenção