sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Natal e depois do Natal

Origem da imagem: aqui.

O Menino Jesus veio à nossa casa. Veio? E chegou carregado de prendas. Ou as prendas chegaram sem o Menino Jesus. Muitas prendas. Talvez as prendas devessem ser mais para as crianças. Eu gostava que não me dessem tantas prendas. Digo-o antecipadamente, olho para os embrulhos, para papéis e laços e sinto que falo e digo em vão. Não sou ouvido. Nós, pequeninos e grandinhos, precisamos de tantas coisas? Não precisamos. Precisamos do afecto, da amizade, do abraço, da proximidade, da companhia, do conforto da alma e também de prendas, claro. Mas não precisamos de quinquilharia dispensável nem da multiplicação de trapos. Assim o aprendi, assim o digo, sem efeito prático, nem a concordância dos próximos. Por isso, aumentam a minha solidão e a minha culpa, ao ver muitos lugares, em toda a parte, repletos de lixo e desperdício.

Na consoada éramos poucos, distantes quando pudemos, os lugares marcados e dois monitores para vermos os que estão longe. O neto surpreendeu-se porque, lá do outro lado do oceano, via em duplicado o mesmo avô, em companhias diferentes, porque calhou de ser captado pelas câmaras de dois computadores próximos. Maravilhas da técnica, que, não obstante, acentuam (em mim) sentimentos de distância e ausência.

Um dia destes, nas aulas, lá estarei, enfático, a combater o consumismo. Saiba-se que é para mim que falo em primeiro lugar. Para mim que me recuso a comprar coisas em que não veja alguma “utilidade”, da mesma maneira que outros dirão. E recebo como os outros, ainda que imerecidamente.

Chego a pensar que os portugueses que têm emprego e que auferem o décimo quarto mês deviam recebê-lo repartido pelos doze meses do ano, como medida para moderar os impulsos consumistas, pese a discordância dos próprios e a oposição do comércio.

O despesismo é uma faceta do nosso modo de viver e uma característica das sociedades que construímos. Mas a maneira como vivemos ofende a condição dos que no mundo não têm pão, nem tecto, nem trabalho, nem saúde. E não corresponde ao exemplo e à proposta do Menino Jesus do Natal.

Greta Thunberg é uma menina pouco simpática e algo zangada. Mas tem razão. Apoio a sua causa, respeito o seu protesto e reconheço a minha quota de responsabilidade. Declaro-o também em homenagem a alguns professores que tive e tenho o privilégio de ter.

Não temos todo o tempo, para nos obrigarmos a protagonizar Natais mais autênticos.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

É sensibilidade, é aprendizagem, é crescimento, é arte

Os alunos das turmas de artes da Escola Secundária Carlos Amarante (ESCA), de vez em quando, mostram-nos a riqueza das suas capacidades e do seu talento. Neste caso são as turmas 10ºM/N e 12ºM/N.

Olhando por eles, com zelo discreto, os seus professores incentivam-nos, ensinam-nos, fazem-nos revelar-se, oferecendo a todos os outros alunos, professores e funcionários da escola, a possibilidade de apreciarem arte jovem, florescente, criativa e prometedora, nalguns casos, ainda que noutros transpareça alguma ingenuidade ou insegurança ou a busca de «identidade artística», como é inevitável nesta fase das suas vidas.

A exposição estende-se pela galeria (corredor) da biblioteca, subordinada ao tema “O Vírus que mudou a nossa vida”, com obras realizadas durante o período de confinamento. Ao fundo, na sala Carlos Amarante da Biblioteca, o tema é Almada Negreiros. O período de exposição está a decorrer desde Novembro até Fevereiro de 2021.

Quem está na escola pode ver. Quem desconhece ou é exterior ao agrupamento de escolas, eventualmente perde. Por isso, estes trabalhos mereciam, em meu parecer, serem expostos noutros espaços da cidade de Braga, em tempo posterior, possivelmente quando o acervo for ainda mais rico e alargado a alunos de outras turmas de outros professores.

Propondo e desejando que isso se concretize, agradeça-se e felicitem-se, desde já, os alunos autores, os professores promotores e os organizadores da exposição: alunos, professores e a equipa da biblioteca.

Obrigado, muitos parabéns e felicidades.

A todos, um Natal com saúde.


Segunda nota de agradecimento: à D. Gracinda Cerqueira, funcionária da biblioteca pelo fornecimento de dados, e à D. Natércia Pinto, funcionária da ESCA, também artista plástica e talentosa recitadora de poesia, pela colheita das fotos.


José Batista d’Ascenção

domingo, 13 de dezembro de 2020

Tempos de fuga

Imagem colhida em tempos do mural do «facebook»
do Professor Galopim de Carvalho

Corre o tempo por nós ou nós pelo tempo. Mais ou menos emparedados, receosos, imersos em “notícias” pouco animadoras, vemos o ano correr para o seu término. E o tempo, que é de Natal, flui tristonho, sobrepondo-se à alegria associada à quadra, que uns vivem autenticamente e outros de modo convencional e de que outros estão arredados de qualquer modo.

Nos tempos que o governo permite ao comércio acorrem os consumidores, no afã de adquirir as prendas típicas da época. Com não menos ânsia o desejam os lojistas, fitos no dinheiro que lhes permita manter as portas abertas. E os funcionários/trabalhadores almejam, também eles, pela retoma da actividade que os poupe à perda dos seus empregos.

Por esta altura, retornei às páginas luminosas da carta encíclica «Laudato Si’», do papa Francisco. É todo um modelo de “desenvolvimento”, de economia e de modo de vida que te(re)mos que repensar, quanto mais cedo melhor, e já vamos tarde. E é aqui que se levantam obstáculos de monta, que só nos resta enfrentar, porque não nos é possível contorná-los:

- Sabemos que o planeta ficará exaurido de certos recursos e que não aguenta(re)mos o efeito do acumular de tantos resíduos e poluentes (já o planeta, em si, aguenta tudo, e não precisa nada dos actuais seres vivos complexos, com a humanidade à cabeça, para continuar a evoluir). Até de máscaras e de luvas os oceanos se estão a encher, com consequências que não sabemos medir…;

- O número de pobres e o grau de pobreza (em «relação íntima» com «a fragilidade do planeta», como escreveu o papa Francisco), a fome e a violência, a ignorância e o desrespeito pelos direitos humanos são problemas que se mantêm ou agravam ou se expandem em demasiados pontos do globo.

No imediato, o vírus SARS-CoV-2 condiciona deveras a vida das pessoas. Os governos fazem o que podem e o que sabem (havendo os que não se importam e fazem o que querem…), aguardando por melhores dias, que a ciência não deixará de proporcionar. Entretanto, do choro pungente da ministra da saúde de Portugal, à acção dos profissionais de saúde e, sobretudo, ao esforço e cuidado dos cidadãos responsáveis, tudo deve somar-se no estímulo à energia que temos que encontrar em nós mesmos para enfrentar a tormenta sanitária dos tempos actuais, que venceremos.

E o Natal, inspirado na comovente história religiosa de um menino pobre e despojado, há-de viver-se com a esperança funda de sempre, no íntimo dos corações. Deseja-se que não descuremos (todas) as precauções possíveis.

Só pode ser assim.

Feliz Natal.

José Batista d’Ascenção

domingo, 15 de novembro de 2020

O estado de necessidade, a organização dos serviços e a saúde das pessoas

 

Fonte da imagem: aqui.
Um dia da semana que findou ouvi a senhora Directora Geral de Saúde, Graça Freitas, anunciar que as vacinas da gripe não vão chegar para todos os que pertencem a grupos de risco, dada a enorme procura: «questão de fazer contas», disse.

Ouvi e não gostei. Depois dos apelos à vacinação, até por parte do senhor Presidente da República, em pose pouco ortodoxa, até à enfermeira que «apoia» a escola onde trabalho, muitas foram os estímulos para que os cidadãos se vacinassem.

Querendo colaborar, logo em Setembro, dirigi “mail” ao Centro de Saúde do Carandá – Braga, a solicitar, pela mesma via, a receita da dita vacina. E a minha médica de família respondeu imediatamente, enviando a respectiva receita (merecidos parabéns à muito competente Dra Ana Sofia Português). Fui então à farmácia, onde simpaticamente me disseram que a lista de espera era extensa. Perguntei: - Muitas dezenas? E a resposta foi: - Centenas! Centenas!

Conformado, fiquei à espera. E à espera continuo. O meu cuidado relaciona-se com a importância que dou às aulas presenciais: não queria que, com o rigor do Inverno, muitos professores no activo tenham que ficar em casa, com ou sem infecção pelo novo coronavírus. O prejuízo para os alunos já é grande e não convém aumentá-lo.

Naturalmente, penso que o fornecimento de vacinas devia destinar-se prioritariamente às pessoas com maiores riscos. E é meu dever prescindir dela em favor de todos os que sejam mais vulneráveis do que eu. É o caso da minha mãe, de idade avançada e precário estado de saúde, que também continua à espera.

Ora, isto era fácil de prever e de comunicar de modo claro. O que devia ter sido feito e não foi. Com pesar o afirmo, eu que nunca ampliei qualquer das muitas críticas (e algumas bem pertinentes) à Direcção Geral de Saúde, porque:

- não era fácil enfrentar esta situação pandémica sem cometer erros;

- as pessoas não cumpriram, em muitos casos, as medidas básicas;

- na maioria dos países, com estratégias muito diversas, não se fez melhor do que em Portugal.

Mas estas atenuantes não se aplicam ao modo como foi (e está a ser) gerido o processo de vacinação contra a gripe comum.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Sistema Nacional de Saúde - um bem que temos. Curtíssimo testemunho pessoal sob a forma de elogio e agradecimento

Porque me tenho sentido muito bem tratado nos serviços de otorrinolaringologia do Hospital de Braga, onde a especialista Cátia Azevedo tratou de consertar cirurgicamente um dos meus ouvidos, nos inícios do passado mês de Julho, hoje, após a consulta e exames auditivos que ali realizei, a meio da tarde, pedi para fazer o seguinte registo:

«À Dra Cátia Azevedo:

Elogio a sensibilidade, a dedicação, o rigor e a competência no desempenho das suas funções de médica e de especialista de otorrino. O meu apreço é extensivo às/aos profissionais de medicina e de enfermagem e das restantes áreas técnicas ou serviços que lhe prestam colaboração.

Por ser verdade e por minha vontade escrevi estas linhas. Com muita gratidão.

Sou: José Batista d'Ascenção

Hospital de Braga, aos 11 de Novembro de 2020»


José Batista d'Ascenção

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Há mais pessoas a gostar de ler em Portugal do que aquelas que se supõe

Colecção Ciência e Conhecimento 01
jornal «Público». Out. Nov. 2020
Que os portugueses lêem pouco é uma ideia consensual. E muitos não lêem qualquer livro em longos períodos ou mesmo durante a vida toda. E, no entanto, há pessoas que não associaríamos à leitura que gostam de ler.

Há dias, entrei no café a que vou certo dia da semana, pela manhã, e, pela segunda vez, levei comigo um livro de que aproveitei para ler umas páginas, depois de tomar café. O estabelecimento é amplo, com boa luz natural, dispõe de jornais que não me atraem e não é muito frequentado. E tem algo de original: À entrada, no canto do lado esquerdo, há como que um altar com uma santa em tamanho razoável, de vários decímetros, à volta da qual pairam umas quantas pombas brancas, à escala natural, significando harmonia e paz angelical, tanto quanto suponho. Eu sento-me nalguma mesa mais afastada, em conformidade com a minha condição de pecador sem remissão.

Pois naquele dia em que retomava a leitura de a “Origem das Espécies” de Charles Darwin, na primeira tradução portuguesa, e mergulhava no rigor e genialidade do autor, atenta a data em que a obra original foi publicada (1859, em Londres), ao trazer-me o café, a senhora que me aviou, uma mãe ainda jovem, permaneceu junto à mesa e perguntou:

- Desculpe, importa-se que lhe faça uma pergunta?

- Queira fazer o favor, talvez eu saiba responder… - foi o que me saiu.

- Esse livro é bom? Eu gosto muito de ler, e de aprender – era a pergunta e o acrescento justificativo.

- É muito bom – disse eu – mas é mais um livro de estudo, e já antigo, com mais de 160 anos. Não é propriamente um livro para nos distrairmos. Fala sobre a evolução dos seres vivos.

- Reparei no título e vou tentar ler esse livro – concluiu a minha interlocutora, e voltou para as suas ocupações, ao balcão, onde alguém a esperava.

Lidas umas páginas, paguei, agradeci, despedi-me e saí. Momentaneamente, ocorreu-me que aquele curto diálogo podia ter-se devido a uma atitude de mera simpatia para com um cliente silencioso e discreto, mas o pensamento transpôs-se-me para outra situação algo semelhante, vivida há meia dúzia de anos.

Aconteceu naquele dia em que fui com o meu velho carro à revisão, revisão que, pela vetustez do veículo, se tornara obrigatória a cada ano. Como havia mais automóveis como o meu, fiquei em fila e, então, deitei mão ao livro «O falcão de Bonaparte: as aventuras de um tenente francês durante a II invasão de Napoleão a Portugal», de Mariana Morais Pinheiro, uma jovem autora de Braga.

Quando chegou a minha vez, o técnico mandou-me avançar para o primeiro teste, não sem antes espreitar para o livro que eu poisara no assento do lado. Logo de seguida, entre uma e outra instrução, perguntou-me se o livro era bom. Disse-lhe que sim e que se relacionava com Braga e que tinha sido escrito por uma menina que morava numa rua ali bem perto.

Novo exercício de testagem, comigo ao volante, e o homem, discretamente, volvia:

- Então é um romance, e sobre Braga? Já leu muito? Eu gosto de ler.

Assenti e felicitei-o.

Quando cheguei à zona do «túnel», mais longe dos circunstantes e técnicos que por ali cirandavam, logo que saiu de debaixo do carro, nova insistência no assunto:

- E esse livro é caro? Vende-se onde?

Disse-lhe de pronto: - Custa dez euros e, se quiser, amanhã passo por aqui e deixo-lhe o livro.

Visivelmente contente, o meu interlocutor tornou:

- Fazia-me isso? Não lhe dava muito trabalho? Tinha que vir de propósito…

Sosseguei-o: - Está combinado, calha-me em caminho, e pode ser à hora de hoje.

Como a mãe da autora é minha colega, no dia seguinte, contei-lhe o sucedido e logo ela me dispensou um exemplar. Além disso, impressionada, disse-me que, perante tanto interesse, a Mariana até poderia ir lá assinar-lhe o livro.

Pouco depois passei pelo posto de inspecção. Aquele leitor interessado parecia estar à minha espera. Veio rapidamente, deu-me a nota que trazia na mão, pegou no livro e acariciou-o. Apressado nos agradecimentos, ainda tive tempo de lhe dizer que a Mariana Pinheiro podia vir ali fazer-lhe uma dedicatória, se ele quisesse.

Pareceu admirado. Olhou-me e olhou em redor.

- Aqui não... Agradeça-lhe só – pediu-me. E voltou pressurosamente para o trabalho, com o livro aconchegado.

Não lhe perguntei o nome, e como aquele centro de inspecções foi desactivado nunca mais vi o homem. Naquele momento, porém, senti-me como em garoto, quando me faziam sentir que tinha feito alguma coisa boa.

Regressado ao presente, reconfortou-me a ideia de que não é impossível que continue a encontrar leitores improváveis.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

O que valem os nossos semelhantes?

 

Viaduto da Avenida António Macedo sobre a rua de S. Martinho, em Braga
Passo ali de carro todos os dias de trabalho, às vezes mais do que uma vez, e, desde há semanas, fazia-me impressão aquele aparato entalado entre o tecto do viaduto e o cimo da rampa que desce até ao passeio, uns metros mais abaixo. Aquele lugar tornou-se uma “habitação”.

Hoje, cerca das 13.30 horas, regressava da escola e dei com a vista num homem que secava a face no que me pareceu ser uma toalha de rosto, aparentemente depois de lavar a cara. Avancei até poder parar o carro e voltei a pé, na disposição de falar com o senhor. Mas já não o vi.

Dirigia-me para casa, sabia que tinha o almoço à espera, sobre a mesa, e não pude nem quis afastar o pensamento sobre tantos que não têm tecto, nem mesa, nem trabalho, nem saúde, nem afecto, nem são tratados com um mínimo de dignidade. Não têm nada nem têm possibilidade de sair do ciclo de miséria em que se encontram. Alguns têm responsabilidades na situação em que caíram, ou em que se precipitaram, mas nem por isso merecem a indiferença de quem tem e de quem pode.

Porém, a maioria nasceu fora de berço com condições mínimas, nada os ajuda, parece só lhes restar a falta de tudo e ainda são vistos como “culpados” do casulo de pobreza a que estão condenados.

As sociedades evoluem, há progressos maravilhosos, que o conhecimento permite, mas as organizações político-sociais só em muito poucos países proporcionam boas condições de vida à generalidade das pessoas. E não é seguro que, nos próximos anos, esse tipo de sociedades tenha grandes probabilidades de replicação noutros países. A privação das condições materiais de dignidade mínima com a consequente limitação da liberdade parece, ao invés, propagar-se, profanar as democracias, e aumentar a subjugação material, educacional, psicológica, laboral e social dos cidadãos. Muito poucos controlam o mundo e os bens materiais e a generalidade dos restantes sobrevivem para ampliar as diferenças entre uns e os outros.

Falharam as filosofias políticas, falharam as religiões, falha a organização dos governos e dos sistemas de justiça e de educação. Por isso falham também as condições de nutrição, de habitação, de higiene e de saúde e de realização humana.

Que o mundo não está bem, não está. Sendo certo que nunca, em cada tempo, esteve melhor para a maioria dos seres humanos.

O que não legitima a perda de esperança, nem o abandono da luta pelos ideais de uma sociedade melhor e de um ambiente natural mais respeitado.

Porque não há outra via.

Quanto ao morador de debaixo do viaduto, que tal se a segurança social de Braga, em colaboração com a autarquia bracarense, fizessem alguma diligência? De preferência a tempo, que o Inverno não tarda.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Cinzas e a humilde grandeza da alma humana

Vista parcial da aldeia do Roqueiro,
que o fogo circundou em todo o perímetro

Negro, castanho e algumas manchas de verde. O solo nu. Ainda o cheiro intenso a queimado onde há troncos e raízes que continuam a arder debaixo da terra, mais de vinte dias após o inferno das chamas. Nas extensões ardidas não se vêem nem se ouvem pássaros. A sua música deu lugar ao silêncio fundo da natureza, realçando o efeito desolador da paisagem enegrecida e do odor que se mantém. Já nas “ilhas” de verde juntam-se muitos passaritos, provavelmente em luta desesperada por alimento.

Na expressão das pessoas nota-se um desalento profundo, uma mágoa cansada, calada numas e liberta em voz forte noutras. As primeiras porque se sabem sós e julgam inútil dizer aquilo para que não há palavras. E as segundas porque não entendem nem aceitam a atitude e a acção daqueles a quem cabe (ou devia caber) governar (bem) e de muitos dos que são designados por “protecção civil”. Reclamam bombeiros de proximidade bem preparados e equipados, com autonomia e poder de decisão na protecção atempada de pessoas e bens. Nas horas de aflição, só puderam contar consigo próprios e com os populares que, de povoações vizinhas, acorreram a prestar o auxílio possível. Em todos o susto, a perplexidade, a solidão e um triste sentimento de isolamento e abandono. Sabem bem que os jovens cujos pais partiram em busca de uma vida melhor cada vez têm mais dificuldade em retornar às origens, suas e dos seus.

No fim-de-semana passado pude finalmente ir ver a casinha que os meus pais contruíram e onde nasci. E revivi sensações que dispensava. Desconhecia que o fogo pudesse passar no sótão de uma casa sem queimar os pisos inferiores e sem o telhado, com caibramento de madeira, colapsar. Fiquei assombrado: tubos e cabos eléctricos e de antenas arderam até ficar o cobre exposto. Os equipamentos de comunicação ficaram impossibilitados de funcionar. Estive, por isso, afastado das imagens e do som do mundo durante dois dias, mas não lhes senti a falta. Pelo contrário, foi grande o conforto que me encheu o peito em todos os contactos com os que me conhecem desde sempre.

Soube que a casa que pertence à minha família não ardeu completamente porque aquelas pessoas e outras que não conheço não desistiram de a salvar, com a água que conseguiram trazer e espadanando sem descanso as chamas que a envolviam. “Perdidos” no mar de fogo, os bombeiros não acudiram ali, como o não fizeram noutros lugares da povoação. Mas os meus conterrâneos não desistiram, lutaram até à exaustão e venceram aquela tormenta.

Eu e os meus familiares ficamo-Vos infinitamente gratos, gente boa!

José Batista d’Ascenção 

domingo, 27 de setembro de 2020

Jornalismo da actualidade: que formação exige e que interesses serve?


Imagem obtida através da «Google»: aqui.

Oponho-me àquela infeliz ideia de que “antigamente” é que era bom por oposição à actualidade. Antes pelo contrário: as crianças e jovens de agora têm as potencialidades que os seres humanos sempre tiveram, mas encontram condições como nunca houve de poderem realizar-se e darem contributos válidos à colectividade.

Contudo, no nosso país, muito nos falta para termos uma sociedade justa e solidária. Falha clamorosamente o sistema de justiça e não falha menos o sistema educativo, na sua base e no ensino secundário. O primeiro padece de uma orgânica fechada, hermética e, porventura, endémica, que não mostra celeridade nem justeza, nem inspira confiança aos cidadãos. E o segundo prepara bem a maior parte das crianças sobredotadas e aquelas a quem as famílias dão suporte e acompanhamento adequados, mas deixa na ignorância uma enorme quantidade de meninos, que serão adultos limitados nas suas capacitações, na exigência dos seus direitos e no exercício da cidadania.

O que também funciona mal, em minha opinião, é a comunicação social, concretamente as televisões e os jornais. Da rádio (que oiço sobretudo no carro) tenho melhor impressão. Nas “tevês” o entretenimento é muitas vezes “abaixo de cão”: explora-se o que de pior, mais instintivo e irracional há nas pessoas e impingem-se doses tremendas de publicidade, comummente enganosa. O primeiro canal da televisão pública, que devia contrastar, pela positiva, com os canais privados, não foge suficientemente ao figurino, atolando até os bons profissionais em amálgamas deformativas de conteúdos sem qualidade. Nos telejornais, a predominância de assuntos de “faca e alguidar”, desastres e violência ou doenças, guerrilhas partidárias ou “desportivas”, emitidos em mau discurso, gramatical e fonético, por vezes estridente, em alinhamentos artificiais e tendenciosos, enjoa e devia causar repulsa, se o auditório fosse mais exigente. Situação que considero deplorável é a de supostos “espaços” noticiosos em que o jornalista degrada o seu papel perante um político “residente”, que faz propaganda pessoal ou defende interesses que lhe convêm. Como se fosse natural, normal e desejável. E como se os espectadores fossem estúpidos.

Na imprensa escrita, jornalistas de tomo, de pensamento escorreito e escrita impecável, constituem referências a que não se dá o devido valor. Entre vivos e falecidos, nomes como os de Joaquim Letria, Vasco Pulido Valente, Teresa de Sousa, Vicente Jorge Silva, São José Almeida e muitíssimos outros, são exemplos da arte de bem escrever, informar e formar. Por oposição, a superficialidade, a parcialidade e os atropelos nas ideias e no discurso (gramatical e ortográfico), agora abundantes, chegam a ser deprimentes, quando, por obrigação de ofício, a isenção, o rigor, a clareza e a elegância discursiva deviam ser a pedra de toque dos artigos escritos.

A agravar a “informação” escrita (e oral…) há ainda o desprezível «novo acordo ortográfico», deturpador efectivo da nossa bela língua, merecedor do caixote do lixo ou, pelo menos, a carecer de profunda revisão.

Não obstante, deposito grandes esperanças naquela fracção de crianças e jovens altamente bem preparados e capazes de colmatar (progressivamente) as atávicas falhas de formação e de exigência que nos caracterizam como povo.

Por não ser pequena a tarefa que lhes cabe, e a que não podem fugir, muito sucesso lhes desejo.

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

E se exigíssemos uma organização social em que os nossos idosos vivessem connosco?

Imagem obtida via «google»: aqui.

O que se passa em Portugal com as pessoas mais velhas é, em muitíssimos casos, uma indignidade. O facto de não ser só entre nós é apenas agravante.

E não me refiro especificamente ao que se passa com as infecções generalizadas em muitos lares, legais e ilegais, pelo coronavírus mais recente. O problema vem de há muito e tende a agravar-se porque:

- a esperança média de vida aumentou significativamente desde há cinquenta anos;

- o mundo do trabalho e das relações sociais rejeita ou segrega os (mais) velhos;

- as habitações não são projectadas tendo em conta as mazelas da velhice, nem sequer as limitações de pessoas com problemas de mobilidade;

- tornámos “educação” e “cidadania” numa espécie de variações de publicidade exibicionista e espalhafatosa que inculca o conceito ilusório de juventude perene;

- o crescimento da economia faz-se para aumentar o consumismo, em detrimento dos princípios da qualidade de vida, associada à moderação do desperdício e à preservação do meio natural. Na realidade, desde há várias décadas, o número de velhos e de reformados aumentou, em número de efectivos e em proporção à juventude, mas como que deixou de haver lugar para eles no seio das famílias e da sociedade, salvo na medida em que as suas reformas ou pensões alimentam negócios ou suprem as despesas de filhos e netos.

Os idosos deviam permanecer nas suas casas enquanto fosse possível, organizando-se serviços comunitários que, na ausência ou impedimento dos familiares, lhes prestassem cuidados e vigilância no domicílio, como já se pratica em alguns lugares do meio rural.

Em vilas e urbes, as políticas de habitação e urbanismo deviam promover a construção de casas de um só piso e arruamentos com um mínimo de obstáculos e desníveis.

E a economia devia estar ao serviço do bem-estar das pessoas e sujeita a esse bem-estar, assim como à poupança de recursos e à minimização da produção de tralha inútil ou poluente.

Felizmente, já fomos capazes de sensibilizar os cidadãos, particularmente os mais jovens, para o respeito pelos animais, apesar dos exageros de almas muito preocupadas com a alimentação de pombos, gatos ou cães na via pública, por exemplo. Precisamos de estender os mesmos desvelos às plantas e ao património natural ou edificado. E também precisamos urgentemente de dar atenção e cuidado àqueles que nos deram o ser e a boa ou menos boa educação que temos.

Por decência, antes de tudo, e preventivamente, em nosso benefício.   

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

A aproximação do Outono, as árvores do espaço urbano e a atenção que requerem

Tulipeiro do jardim dos Biscaínhos (Braga).
Com mais de 250 anos e 27 m é o maior de Portugal.
Imagem e informação obtidas aqui.

Depois da canícula e da acção devastadora dos fogos, os ventos e a chuva fortes podem ser mais nefastos ainda, seja pela erosão agressiva das terras nuas de vegetação e de manta-morta, que retinham a água e retardavam (muito) a escorrência, impedindo o arrastamento dos solos, seja porque os ventos desabridos, dando em árvores repletas de folhagem de arruamentos e jardins, tornam mais provável a sua queda ou a quebra dos ramos envelhecidos ou podres, que não resistam à intensidade do fluxo eólico.

No que são ou foram as nossas florestas deixámos há décadas de fazer prevenção eficaz dos incêndios. Também não temos sido capazes de (re)florestar adequadamente. E bem caro o temos pago, e continuaremos a pagar - nós e os nossos descendentes, não se sabe por quantas gerações.

Em oposição, nos espaços urbanos, derrotamos as árvores com podas inqualificáveis, muitas vezes porque os próprios cidadãos exigem que assim seja. Não se afligem com as ruas atravancadas de carros e o ar saturado de fumo dos escapes, mas queixam-se de ramarias próximo das janelas e da queda de folhas, de pólens (alguns dos quais provocam alergias, tenho disso experiência própria) e até da passarada que se acolhe nas árvores.

Mas as plantas são fundamentais. Não podemos passar sem elas. E se, como em Braga, em 2015, uma árvore caiu durante uma intempérie e matou um transeunte, no coração desta cidade, nas zonas em que o chão dos passeios foi pavimentado com grandes pedras de granito, nos meses quentes, a pedra exposta ao sol aquece de tal modo que, mesmo à noite, três ou quatro horas após o ocaso, ainda as pessoas sentem enorme desconforto devido à constância de elevadas temperaturas, no interior das casas como nas ruas, como revelam alguns moradores.

Portanto, árvores sim. Mas bem escolhidas, bem plantadas e bem cuidadas. Nesta altura, justifica-se que se faça vigilância adequada sobre aquelas que podem justificar o corte de ramos ou pernadas que ponham em risco pessoas ou bens, com a entrada do Outono.

Sem nunca esquecer que as árvores são nossas amigas e que o inverso também devia ser verdadeiro.

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A maldição dos fogos e a esperança que se vai consumindo neles

Imagem obtida aqui.
Soube há pouco o que temia desde a hora do almoço. A aldeia em que fui menino foi envolvida no mar de fogo que lavrou desde Proença, que em horas se propagou aos concelhos vizinhos, como o de Oleiros (era inevitável) e que progride ainda na sua marcha tenebrosa. Em redor da casa onde nasci dizem-me que não sobrou nada e que está tudo negro. Há quinze dias estava lá e foi um deslumbramento e uma paz especiais. Agora estou sem coragem para ir ver a desolação que resta.
Não compreendo as mentes e as mãos que ateiam os incêndios. E desisti de compreender as acções dos políticos sobre a matéria. Sei que aquelas populações estão entregues à sua (má) sorte. E sei igualmente que não merecem tantas e tamanhas desgraças. Na minha tristeza, abraço os que há poucos dias queriam abraçar-me, sem conseguirem reter as lágrimas. Esses e todos os outros que por lá permanecem. Aconchego-os no meu peito, com carinho. 
Amanhã é outro dia.
Recomeçaremos.

José Batista d'Ascenção

Um brinde saboroso com “água das pedras”

Fonte da imagem: aqui.
Hesitei em escrever isto. Mas há contentamentos que não cabem em nós. Cá vai, sem pedir licença à personagem principal.
Eu e a maior parte dos meus amigos chegámos àquela idade em que cada ida aos laboratórios de realização de exames médicos desencadeia receios tanto maiores quanto a precisão e minúcia da tecnologia actual.
Foi o caso que, no início do Verão, o meu amigo Antão teve que ir fazer umas análises. Aquelas implicaram outros exames e as dúvidas aumentaram. E com elas o medo. Como eu sempre gostei de estudar fisiologia animal (o que agradeço ao Professor Arsélio Pato de Carvalho e à sua esposa, a Professora Caetana A. M. Carvalho, que tão boas lições me proporcionaram na primeira metade da década de oitenta do século passado, na Universidade de Coimbra), dei comigo a alargar-me nas explicações de anatomia interna, a discutir hipóteses e a incidir em possibilidades e probabilidades benignas.
Em benefício do meu amigo, chegaram na semana passada os resultados de tomografias e biópsias que o não salvam de “ir à faca”, mas que foram um alívio das preocupações dele e de nós que o consideramos, por apontarem um mal que não é aquele que normalmente nos arrasa, antes ainda de começarmos a luta para o vencer.
Por isso, na manhã de ontem, Domingo, enquanto ele, o Bastos e eu demos a volta a temas diversos, brindámos discreta mas sentidamente com a água mineral que habitualmente hidrata as conversas da nossa “tretúlia” matinal domingueira.
Com muita satisfação. Como se a intervenção cirúrgica que espera o nosso amigo fosse coisa de somenos.
E é, porque assim o sentimos.

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Ricos e pobres e o meu pobre país

Fonte da imagem: aqui.
Mais do que as religiões, a cor da pele, a etnia ou o género, o que mais limita negativamente as pessoas da generalidade das sociedades é a condição de (ser) pobre, sobretudo se associada à ignorância. O combate político fundamental da humanidade, antes de todos os outros, devia ser o de assegurar a todas as pessoas os mínimos de decência que tornam a vida digna: alimentação, higiene, habitação, saúde, educação e possibilidade de trabalho. O resto viria por acréscimo. A barreira a quebrar ou a esbater grandemente devia ser, portanto, a que existe entre os pobres e os ricos. Uma tal luta não deve visar a eliminação da riqueza dos ricos, salvo se conseguida à custa do aumento do número de pobres e/ou do seu “grau” de pobreza. Focar os objectivos políticos e sociais na diminuição progressiva da pobreza e do número de pobres é teoricamente possível: porém, é muito difícil de conseguir, devido principalmente às características dos próprios seres humanos (pobres e ricos), como a História demonstra.
Portugal, um velho país, embora desenvolvido, continua a ser um país pobre, muito dependente das conjunturas sócio-financeiras por causa do seu enorme endividamento. Políticos e governantes têm tido vistas curtas e grande fraqueza e incapacidade perante a corrupção, e pouca competência no desempenho da gestão económica. E o povo, no seu atavismo, derivado em grande medida de limitações de conhecimento, que tolhem a capacidade de exigência e de responsabilização, chega mesmo a reeleger alguns dos poucos responsáveis políticos que os tribunais condenam…
Em minha (humilde) opinião há dois “cancros” no funcionamento da sociedade política portuguesa: o quadro legislativo e a aplicação da justiça e o sistema educativo. A justiça é complacente, adormece e não condena as falcatruas dos poderosos e, muito especialmente, os “crimes legais” dos gananciosos da banca, tão insaciáveis quanto impunes. No que respeita à educação, por mais que nos queiramos iludir com o que alguns chamam “a geração mais bem preparada de sempre”, é atroz a impreparação cívica de muitos cidadãos em matéria de princípios éticos, participação democrática e racionalidade de procedimentos, com origem (ou reforço) na deficiente formação humanística e científica, que os certificados escolares não conseguem camuflar.
Sem justiça e sem educação não há sociedade justa e livre. E quem mais sofre são os (mais) pobres. Em sociedades com tais desequilíbrios de distribuição da riqueza, só os da minoria bafejada pela sorte podem congratular-se com a situação que lhes cabe. Mas não com tranquilidade infinita, porquanto os muitos que nada têm, mas vêem e desejam, podem “optar” pela obtenção violenta daquilo a que se julgam com direito…
Ora, esse mal pode e deve ser prevenido socialmente, de forma moralmente justa.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Verão de Setembro

Imagem adaptada, obtida aqui.
Os dias encurta(ra)m, mas o sol da tarde é quente. As noites, cada vez mais longas, trazem fresco e o fraco consolo de pensar que os incêndios são mais fáceis de combater.
É (para mim) um mês simpático, o de Setembro. Um mês de paz. As vindimas da minha aldeia são uma grata recordação de infância, cada vez mais remota, e por isso mais terna. Nesse tempo havia as férias (mesmo) grandes e as brincadeiras com primos ou (meninos) amigos ficaram agradavelmente gravadas na memória.
No presente, Setembro é apenas Setembro, bom pela ideia do que foi e pelas hipótese do que (ainda) pode ser, senão na realidade, pelo menos em intenções ou planos ou sonhos, já que os anos se escoam para quem passou a meia-idade e tem cada vez menos tempo para viver e alimentar e concretizar projectos. Por essa razão, há que aproveitar o tempo que resta da forma mais compensadora, em legítimo proveito próprio ou dos demais, particularmente dos vindouros.
Um dia destes, as folhas tingem-se de matizes diversos, normalmente apaziguadores, para a minha sensibilidade.
Os meninos voltam à escola. Uma felicidade que não valorizamos quanto devíamos. Os (seus) pais adentram-se nas rotinas do trabalho ou amarguram-se na desventura do desemprego. Os avós velam pelos adultos, seus filhos, e pelos jovens e crianças, seus netos, se não vegeta(re)m à espera da morte em lares, tantos deles esconsos.
Setembro é portanto bom e menos bom, consoante os casos e a sorte de cada qual. É nosso dever melhorá-lo quanto possível. Por nós e por todos os outros.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Ácidos gordos ómega 3 – o que são e a importância que têm

Figura 1. Exemplos de ácidos gordos: saturado e (mono)insaturado.
Imagem obtida aqui.
Os ácidos gordos das gorduras alimentares são, na sua maioria, constituídos por (moléculas formadas por) cadeias (mais ou menos longas) de átomos de carbono (C) a que se ligam átomos de hidrogénio (H), presas a uma “cabeça” constituída por um grupo químico designado grupo carboxilo (assinalado a azul na figura 1). O grupo carboxilo (COOH) é formado por um átomo de carbono ligado a dois de oxigénio (O), por uma ligação dupla a um deles e por uma ligação simples ao outro, o qual se liga também a um átomo de hidrogénio. Os tracinhos significam, portanto, ligações químicas entre os átomos. Um duplo tracinho refere-se a uma ligação dupla. Na cadeia hidrocarbonada, cada ligação dupla chama-se insaturação. Devido às suas afinidades químicas, cada átomo de carbono forma quatro ligações estáveis com outros átomos. Se não houver ligações duplas na cadeia hidrocarbonada, o ácido gordo diz-se saturado. Se as possuir diz-se insaturado. Um ácido gordo pode ser monoinsaturado ou polinsaturado consoante tem uma ou mais insaturações.

Figura 2: Ácidos gordos ómega 3 e ómega 6.
Fonte da imagem: aqui.
Quando existe uma insaturação no terceiro carbono a contar da extremidade da cadeia hidrocarbonada (oposta à “cabeça”), chamamos ómega 3 ao ácido gordo que a possui. Se houver uma insaturação no sexto carbono, contado do mesmo modo, o ácido gordo diz-se ómega 6 (Figura 2). Estes ácidos gordos são obtidos por via alimentar e são essenciais ao nosso organismo.
Os ácidos gordos insaturados são mais saudáveis do que os saturados porque, entre outros efeitos, têm menos tendência a aderir às paredes das artérias, depositando-se nelas. Os ácidos gordos polinsaturados ómega 3 parece terem um papel importante na saúde dos vasos sanguíneos e na prevenção de outras doenças. E a proporção adequada e equilibrada entre ómega 3 e ómega 6 parece favorece essa acção [«devemos comer menos alimentos ricos em ómega 6 e mais ricos em ómega 3» (1)].
As gorduras alimentares mais comuns: azeite, óleos vegetais, manteiga, a gordura animal (do peixe e da carne), do leite ou de frutos como as nozes ou as amêndoas, são constituídas por triglicerídeos, lípidos mais complexos do que os ácidos gordos. Cada triglicerídeo é formado por três ácidos gordos ligados a uma outra substância chamada glicerol. Digeridos no intestino, os triglicerídeos fornecem ácidos gordos (iguais ou diferentes entre si, saturados ou insaturados) usados no metabolismo das células.
Consequência da abundância alimentar e de mudanças no estilo de vida, designadamente o sedentarismo, nas populações das sociedades ocidentais, cuja esperança média de vida aumentou muito, por acção das vacinas e pelo uso de antibióticos, surgiram e multiplicaram-se as doenças cardiovasculares e certas formas de cancro (em tempos antigos, a maioria das pessoas morriam mais cedo, sobretudo por infecções derivadas de problemas sanitários e de higiene, agravados por factores de malnutrição).
Ora, constatou-se que os povos que vivem próximo do pólo Norte (como os esquimós) e populações de pescadores dos países nórdicos e de certas ilhas, com alimentação muito rica em gordura de animais aquáticos, designadamente peixes gordos de águas frias (salmão, truta, atum), quase não apresentam doenças cardiovasculares. Daí a investigação sobre as gorduras desses alimentos, focada nos ómega 3 e nos ómega 6. O papel benfazejo dos ácidos gordos polinsaturados, particularmente dos ómega 3, parece inquestionável, mas a saúde, que depende directamente da alimentação, depende igualmente de outros factores, como a prática de exercício físico regular, de hábitos e comportamentos (casos do tabagismo e do consumo de álcool ou drogas), das condições ambientais (por exemplo a poluição) e das profissões (“stress”, lesões diversas, químicos tóxicos, radiação, silicose dos mineiros, etc.).
De qualquer modo, “somos aquilo que comemos”. E comemos mal, não apenas (nem principalmente) por carência (nos países desenvolvidos o problema é o excesso), mas por falta de “educação” e por sujeição à publicidade das cadeias de produção e de comércio de alimentos processados, de doces e de refrigerantes, agravada pelas limitações financeiras de muitas famílias que vivem com rendimentos ou pensões de valor muito baixo.

(1) Nota: Informação mais específica, vasta e rigorosa sobre a citação feita e sobre todo o conteúdo do texto pode ser obtida no livro «Alimentação, Mitos e Factos», de Isabel do Carmo. Editora «Oficina do Livro». 1ª Edição, 2020. (páginas 187-201). 

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

O resineiro – profissão que os jovens quase não conhecem e os que a conhecem não a desejam

Em homenagem a resineiros como o Ti Zé Mendes, já falecido, e o filho, Carlos Mendes, o Eugénio Ladeira, o João Martins e o Joaquim Bernardo, que muitas vezes vi a caminho dos pinhais, quando passavam pela casinha dos meus pais.

Há cinquenta anos, Portugal tinha a maior mancha contínua de pinhal bravo (Pinus pinaster Aiton) da Europa, parte dela ocupando vasta superfície na região do interior centro, a norte do Tejo, conhecida por zona do pinhal. Os incêndios não eram uma praga, cortava-se madeira verde quando os pinheiros tinham o tamanho suficiente (e ficavam bastante grandes, geralmente maiores do que agora) e quando a grossura o aconselhava (medida pelo perímetro do tronco à altura do peito, que podia ser de 80 cm) explorava-se a resina. A obtenção de lenha e pinhas era constante e contribuía para a limpeza da floresta. O resineiro era também um vigilante.
A exploração da resina fazia-se nos meses de Março a Outubro-Novembro. Feito o alisamento da casca na zona onde se iam fazer as incisões periódicas, que se chamava descarrasque (com uma ferramenta manual chamada descarrascadeira), colocavam-se as bicas (lâminas metálicas para conduzir para os recipientes a resina que escorria), espetava-se a uma altura conveniente a estaca de madeira e mais tarde o prego de suporte dos “púcaros” ou tijelas, primeiro de barro (vermelho), e depois feitos (inevitavelmente) de plástico (de cor preta), com abas para adaptar à bica, normalmente encurvada em arco (também há bicas direitas). Outros recipientes de utilização possível são sacos de plástico com a boca agrafada à base da “ferida”, mas esta opção não é usada preferencialmente na maior parte dos pinhais actuais. Afixados os recipientes podia fazer-se a primeira incisão. Com a enxó, aplicada lateralmente, cortava-se a porção de casca (11-12 cm de largo por 3-4-5 cm de altura), e com um pulverizador de mais de meio litro e ponta longa, no tecido vivo acabado de expor, o resineiro seringava uma porção de ácido (ácido sulfúrico diluído, a 50%). Mais tarde, o uso de ácido líquido foi substituído pela aplicação de uma pasta acídica, de efeito mais longo. O ácido necrosava o tecido vegetal e impedia a obstrução dos tubos resiníferos, para que a resina fluísse facilmente. Feita esta operação, em cada um de quantos pinheiros houvesse nas propriedades exploradas pelo resineiro, esperava-se pelo encher dos “púcaros”.
Então fazia-se a colha da resina, dos púcaros para uma lata cilíndrica, de talvez 10-12 litros, afunilada para o topo, com uma abertura de 10 ou 12 cm de diâmetro. Este serviço, em que se usava uma espátula, era feito também por mulheres. Um trabalho difícil, fisicamente esforçado, pegajoso e sujo. Calcorreavam-se as courelas e ia-se a cada pinheiro esvaziar o respectivo púcaro. Sem luvas, as mãos enegrecidas e pegajosas, a pobre roupa enodoada da resina. Cheia a lata, que devia pesar vários quilos (1 litro de resina pesa cerca de 1,2 kg), era preciso ir despejá-la ao barril (antigamente de madeira, mais tarde um bidão metálico) colocado em terreno (mais) assente, no viso das lombas, onde pudesse chegar o meio de transporte: antigamente carros de bois e depois camionetas de carga.
Feita a colha, o resineiro renovava a ferida de cada pinheiro, com nova incisão, por cima da anterior. Os púcaros ficavam a encher e o processo repetia-se até ao fim da campanha. Cada pinheiro produz cerca de 2,5 kg de resina por ano.
Depois da última colha, havia ainda mais uma operação – a raspa. Como o nome indica, esta operação consistia em raspar a resina que ficava aderente ao lenho exposto das “sangrias”. Depois da raspa e do último transporte da resina colhida, nos barris ou bidões, o trabalho do ano no pinhal era encerrado com a remoção das bicas, dos recipientes e dos pregos, de todos os pinheiros. Este material era utilizado na campanha do ano seguinte. Um conjunto elucidativo de como se faz a resinagem pode ser visto aqui.
A resina seguia para as fábricas, onde sofria os tratamentos que permitiam obter os seus derivados: águarrás (essência de terebentina) e colofónia, também chamada pez. Aditivados, os produtos da resina são utilizados na produção de colas, tintas, vernizes, borrachas (de pneus e outras), adesivos, cosméticos, etc.
Os resineiros tradicionais que eu conheci trabalhavam muito, até ganhavam mais do que noutros serviços, mas, que eu saiba, nenhum enriqueceu na actividade.

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Glúten, sensibilidade, ignorância e negócio

Do livro: «Alimentação, Mitos e Factos», de Isabel do Carmo. Editora «Oficina do Livro». 1ª Edição, 2020. (páginas 79-86).

A doença celíaca é causada por anticorpos contra o glúten,
contido em cereais como o trigo. Fonte da imagem: aqui.
A verdadeira intolerância ao glúten, chamada doença celíaca, «é uma doença inflamatória do intestino delgado causada por uma reacção imunológica ao glúten [o organismo produz anticorpos contra as proteínas contidas no glúten]. […] Os grãos de cereais que contêm estas proteínas são o trigo, o centeio e a cevada» […], logo também contêm glúten «todas as substâncias produzidas a partir da fermentação da cevada, como o malte e a cerveja […].
A prevalência da doença celíaca na população em geral é muito variável, podendo ir de 0,1 a 1%.[…]
Os sintomas clássicos são diarreia, fezes contendo gordura e magreza persistente. Por vezes há anemia por falta de ferro, alterações do esmalte dos dentes e artrite. Algumas pessoas têm análises positivas e não têm nenhum sintoma. Outras têm sintomas ligeiros. Se estas pessoas também tiverem alterações da mucosa [“superfície”] intestinal, apesar de não terem sintomas, considera-se «doença celíaca silenciosa» e aconselha-se a alimentação sem glúten […].
Para este regime alimentar [sem glúten] ser rigoroso não deve incluir trigo, centeio e cevada e tudo o que seja feito com estas farinhas, como pão e massas, mas também molhos, condimentos, carne processada, substitutos vegetarianos da carne, cervejas, vinagres de malte, que podem conter glúten, apesar de não estar discriminado.»
Não confundir: «A alergia a cereais [como outras alergias] não é a mesma coisa que a doença celíaca embora também seja desencadeada por anticorpos.
[…] Várias celebridades, como actores ou desportistas, mostraram publicamente que não comem produtos com glúten.
Daqui aos […] 100 milhões de norte-americanos que não comem glúten e aos seus imitadores europeus foi um ápice. Entretanto comem soja e seus derivados… a grande produção agrícola norte-americana.»
Tornou-se moda.
O que se passa é que «há uma grande variedade de sintomas gastrointestinais que são atribuídos ao glúten e que são de outra origem. Podem desde logo ser atribuídos à má alimentação, rica em gordura, molhos, bebidas alcoólicas, doces e pobre em vegetais e fruta.
[…] O refluxo gastroesofágico do adulto [por exemplo] é muito comum», mas a causa não é o glúten. Nem dessa nem de muitas outras perturbações da fisiologia dos intestinos. Também «não deve ser feita qualquer confusão com duas doenças muito sérias – a colite ulcerosa e a doença de Crohn.» 
[…] «A alegada sensibilidade ao glúten é talvez a moda alimentar com mais repercussão, rivalizando com a intolerância à lactose e por vezes acumulando. […] Aquilo que era um pequeno nicho de mercado, difícil de encontrar para os portadores da doença celíaca, tornou-se um grande alvo comercial. A maior parte destes consumidores não tem intolerância ao glúten» […].
Por outro lado, estudos científicos mostraram «que as pessoas que ingeriam maior quantidade de alimentos com glúten tinham menor probabilidade de risco cardiovascular.» Acresce que a investigação revelou que «o pão sem glúten tinha em média mais do dobro da gordura e três vezes menos proteína. O mesmo se passava com as bolachas. As massas tinham metade da proteína. De facto, para obter o mesmo volume os fabricantes confeccionam aqueles produtos com farinha de milho e batata, juntando mais gordura para melhorar o gosto. Por outro lado, com a farinha de trigo a ser substituída por milho e batata no pão, bolachas e cereais de pequeno-almoço estamos também a retirar vitaminas e sais minerais em que o trigo é rico e o milho e a batata são pobres. A broa de milho é muito saborosa mas não substitui o pão de trigo ou de mistura.»

Nota: A composição deste texto foi feita com citações do livro referido. A sequência escolhida não corresponde à ordem em que os excertos citados aparecem no original.

José Batista d’Ascenção

domingo, 16 de agosto de 2020

Toda a gente é pertença da Terra, mas a Terra inteira não é de toda a gente

Nenhum ser humano pediu para nascer, muito menos para nascer num lugar específico. Qualquer pessoa recebe a influência do meio a que pertence, e o seu sentir e pensar é modelado pelas vivências que teve, particularmente as da infância e as da juventude. Idealmente, cada cidadão devia poder viajar para onde quisesse e estabelecer-se e viver em qualquer local de qualquer país ou região, usufruindo de todos os direitos comunitariamente estabelecidos. Porém, o mundo, mormente o das relações (psico-)sociais (e económicas) dos humanos, não é harmónico, sendo que a (mera) condição biológica do Homo sapiens, como a de qualquer outro ser vivo, impõe, também ela, algumas limitações à distribuição geográfica da espécie (a maioria das quais foram resolvidas pela aprendizagem e pela técnica).
O “direito” de migrar para qualquer lado e de nele permanecer ou de partir novamente caberia particularmente bem aos portugueses, desde sempre propensos à abalada, não tanto por acção de algum “gene” que disponha à migração, mas antes pela necessidade material em resultado da pobreza do país. Sendo nós, portugueses, um povo de emigrantes, estamos também predispostos a acolher quem chegue à nossa terra, oferecendo o mais amistoso tratamento. Nos casos em que assim não é, assim devia ser.
O que precede vem a propósito de leitura desconfortante que fiz do livro “A Estranha Morte da Europa, Imigração, Identidade, Religião», de Douglas Murray, Edições Desassossego. Resumidamente, o tema refere-se à imigração em massa de pessoas para a Europa, o que fez aumentar a população de cidades e países europeus, como acontece em Inglaterra, em França, na Alemanha, na Holanda ou na Suécia, desencadeando problemas de integração que se traduzem em sentimentos de desconforto e de desconfiança dos cidadãos europeus. À falta de melhores respostas, os líderes políticos esforçam-se por convencer os europeus das vantagens da diversidade cultural e da economia, mas, para uma parte cada vez maior das populações do Velho Continente, a realidade contraria essas ideias. Na opinião do autor, acresce o esforço dos líderes políticos para convencer as pessoas de que devem sentir-se culpadas pelos (e penitenciar-se dos) antecedentes históricos que conduziram à actualidade, o que colide brutalmente, por exemplo, com os atentados contra civis inocentes ocorridos em Londres, Paris, Berlim ou Barcelona, perpetrados por fervorosos praticantes da religião islâmica. Ou seja: os políticos não têm sabido lidar com o problema: como a natalidade em muitos países da Europa é muito baixa, mas é alta entre os migrantes, as dificuldades só podem avolumar-se no futuro, porque não é curial que quem chega não possa abdicar da sua cultura e se exija aos anfitriões que reneguem a sua: não é assim em nenhum lugar, porque há-de sê-lo na Europa?, pergunta Murray. Para o autor é crescente o divórcio entre os políticos da situação e o eleitorado europeu, com reflexos “naturais” no aparecimento e crescimento de movimentos conotados com a extrema-direita do “espectro político”.
Lê-se e percebe-se que os argumentos têm muita força. A condição de ser livre, de ter ou não ter religião, a emancipação da mulher, entre outros problemas, estão sob ameaça. É indubitável que foi na Europa que, não obstante os erros, as falhas e as monstruosidades, se atingiu maior qualidade de vida e dignidade do ser humano, em termos sócio-económicos e culturais, bem espelhados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em Paris. É por isso que tantos fogem para nós. Não se pode nem se deve pedir aos europeus que reneguem as suas origens histórico-culturais. Nem eles o devem permitir. É bom que lutemos pela separação entre estado e religião e pela independência entre religião e ciência. Foi assim que mais se aprofundou o conhecimento actual, que não é legítimo hipotecar. Do mesmo modo é imprescindível assumir a rejeição de algum sistema monolítico de valores sócio-político-religiosos que dominasse o poder e alterasse as condições existentes, de tal forma que os próprios descendentes dos que chegam - e que desejam ficar entre nós - já não gozariam dos privilégios que os migrantes vieram encontrar, porquanto a nossa sociedade se tornaria algo parecida com aquela(s) de que fugiram.

José Batista d’Ascenção

domingo, 9 de agosto de 2020

“Canto D’aqui” - a “excelênciofonia” da música tradicional portuguesa

Braga, 08 de Agosto, 21.30 horas. Noite agradável no Parque da Ponte, um espaço muito propício [a poucos metros do arco granítico que, durante décadas, ostentou uma placa de mármore evocativa de um concerto do cantor Francisco José, ali realizado em data que não retenho; a dita placa levou sumiço aquando da requalificação do parque, em anos relativamente recentes]. Assistência não excessivamente numerosa e muito bem distribuída no anfiteatro, por recomendação atenta a quem entrava no recinto, devidamente delimitado. O concerto, promovido pelo município, foi gratuito e teve início à hora marcada.
Seguiu-se a música, muito acompanhada pelo público, bom conhecedor da obra dos “Canto D’aqui”. Temas do Cávado, “Cante Alentejano”, músicas e cantares dos Açores, temas especificamente “bracarenses”, poesia de Manuel Alegre (“O meu amor mariñeiro"), em canção composta pelo grupo  galego "Fuxan os Ventos", canções “Morte que mataste (a) Lira”, de Adriano Correia de Oliveira (com solos assombrosos na voz do “viola-baixo”, Luís Veloso) e “Por este rio acima”, de Fausto, foram intercalados por várias peças musicais desse génio canoro da música portuguesa que é “Zeca Afonso” (“As sete mulheres do Minho”, “Maria Faia”, “Canto moço”, “Venham mais cinco”). José Afonso tem sido homenageado anualmente pelos “Canto D’aqui” desde 2007, em espectáculos musicais com a qualidade merecida, intitulados “Tributo a José Afonso”, este ano interrompidos pelas razões sabidas.
Os “Canto D’aqui” voltaram à estrada, protagonizando mais um belo espectáculo, sem pontos frouxos ou de menor qualidade e envolvência, depois dum interregno de meses, que todos estamos ávidos de ultrapassar.
Em boa hora.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Museu do Quartzo – Barral, Ponte da Barca

Resultado da fé e de uma incomum sensibilidade para o que é belo e natural, o cónego Avelino de Jesus Costa (também professor catedrático de Coimbra) [1908-2000] pode ter suposto que a regularidade geométrica da sílica (SiO2) crescida sob a forma de quartzo, e muito bem explicada pelas ciências geológicas, se enquadra na harmonia do mundo físico, como parte da criação realizada pelo Supremo, o qual se pode tornar próximo e sensível à devoção dos crentes, de vários modos, como seja a intercessão de Nossa Senhora da Paz.
A capelinha do santuário tem incrustados nas paredes exteriores vários cristais de quartzo de dimensões multidecimétricas, salientes da superfície, e, no altar, sobre a imagem da Santa, um outro, está disposto do mesmo modo, podendo ser encarado como suplementar coroa divina muito original.
Na cripta, ao lado, a base do altar, é (também) uma peça única de cristais de quartzo, de palmo ou maiores, com os seus belos prismas (de seis lados) encimados por pirâmides (igualmente de seis lados), com o peso de cerca de três toneladas.
No espaço envolvente, sob árvores frondosas, várias pedras irregulares com (muitas) dezenas de quilos cada, exibem a sua cor rósea característica (o quartzo pode apresentar várias cores, em consequência de diferentes «impurezas» da sílica, razão por que se diz um mineral alocromático).
À entrada do recinto, as esculturas do Anjo da Paz e da Pomba da Paz, elevam-se em pedestais revestidos de cristais de quartzo, grande parte deles com vários decímetros.
Em edifício lateral, a um átrio com um balcão de informação, sobretudo de cariz religioso, segue-se uma sala sobre o comprido com armários de dupla face, ao longo do centro, repletos de literatura religiosa, medalhas, diplomas e peças diversas de arte sacra. Nas paredes, a toda a volta, quadros (à data, vários deles correspondentes a uma colecção em exposição temporária), também eles religiosos. Desta sala passa-se a outra, mais pequena (talvez 4x3 metros) bem fornecida de belos exemplares de quartzo, sobretudo leitoso e fumado. Cada exemplar tem um número manuscrito a que deve corresponder algum tipo de inventário, que não está disponível para consulta ou aquisição. Em dois expositores desta sala exibe-se um conjunto de minerais diversos, corais, dois ou três fósseis (entre os quais duas pequenas trilobites e um pedaço de «madeira petrificada»), uma amostra de lava trazida do México, etc., provenientes das mais diferentes origens (Brasil, África, Arábia…) por emigrantes que os ofereceram ao museu. Estas amostras repousam sobre papelinhos manuscritos que indicam de onde vieram e, nalguns casos, também o nome de quem as ofereceu.
No armário central da sala do museu especialmente dedicada ao quartzo, numa informação impressa lê-se: «Todos os Cristais de Quartzo em exposição foram extraídos de uma pedreira existente nesta freguesia de Vila Chã S. João Baptista na década de 60 [do século XX]. Esta é a maior coleção de Cristais de Quartzo do País, destacando-se pela quantidade, o Quartzo Fumado, o Quartzo Rosa e o Quartzo Hialino.»
O acervo merece ser visitado. E para que as visitas sejam cada vez mais, a conservação e organização do espólio merece a (ou carece da) inspiração e dedicação de algum continuador científico da acção do cónego Avelino de Jesus Costa.
Gostámos de ver.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Ervas aromáticas – generalidades sobre ocorrência natural no país e uso culinário

Imagem obtida aqui.
Portugal, cuja dimensão maior, no continente, se estende na direcção norte-sul, é um país pequeno que apresenta variações climáticas significativas. Essas variações decorrem, entre outros, de factores como a proximidade do mar, o regime de ventos, a altitude e a disposição das montanhas, de que dependem a humidade e a temperatura.
Tradicionalmente, a província do Minho é associada a uma paisagem verde com precipitações frequentes e elevadas em comparação com o Alentejo (interior), mais seco e com temperaturas (mais) extremadas, onde, no Verão, os termómetros facilmente podem registar valores acima dos 40ºC.
A disponibilidade de água e os tipos de solo condicionam a vegetação existente em cada região e o desenvolvimento das plantas, quaisquer que sejam.
Da fisiologia dos vegetais faz parte um processo de libertação de vapor de água para a atmosfera, através de poros chamados «estomas», cuja abertura, dependendo do tipo de planta, é regulada ao logo do dia, em função da disponibilidade de água no solo e da insolação (para além da influência de um conjunto de outras causas). A esse processo, que se realiza nas folhas, chama-se «transpiração» das plantas. Ao longo do tempo, as plantas foram sofrendo adaptações evolutivas diversas, consoante os climas das diferentes regiões, por forma a colonizarem os mais variados «habitats», minimizando as perdas de água quando ela é escassa. Os «truques» são múltiplos e muito curiosos, mas não são objecto deste texto.
Entre outras funções, a produção de compostos aromáticos por variadas espécies vegetais pode proteger contra agentes microbianos e permite atrair ou repelir insectos e outros animais. Aquelas substâncias também dificultam a evaporação da água a partir dos exsudados das plantas, contribuindo para a poupança do precioso líquido. 
É, portanto, natural que, em zonas mais quentes e secas durante parte significativa do ano, haja maior diversidade e abundância de plantas aromáticas, como no Alentejo, e que, em zonas chuvosas, com solos abundantes em água, a sua ocorrência seja menor ou não existam.
Como, além do odor, os compostos aromáticos apresentam sabores particulares, as pessoas aprenderam a usá-las como condimentos alimentares, obtendo pratos deliciosos muito diversos, por vezes utilizando a mesma substância fundamental. São exemplo disso certos pratos típicos alentejanos confeccionados à base de pão. Mas o uso pode ser tão alargado quando a imaginação e o gosto o permitam, e o alecrim, os coentros, o poejo, os orégãos, as variedades de hortelã, o tomilho, a salsa ou o louro servem esses propósitos, de formas muito diversas. No entanto, é curioso verificar que, no Alto Minho, a comida (mais) tradicional tipicamente não contempla a generalidade das ervas aromáticas usadas no Alentejo, por exemplo. Como se percebe, isso relaciona-se com a utilização do que as pessoas tinham à mão, que era o que a Natureza fornecia. Pressuposto válido para quaisquer outras regiões, claro. Por exemplo, certo tipo de queijo da região de Condeixa tem um toque de paladar associado ao tomilho, erva consumida pelos animais produtores do leite na pastagem.
Obviamente, com a mobilidade das pessoas, que se tornou progressivamente mais fácil, os hábitos passaram a replicar-se em quaisquer lugares, com reflexos directos (também) na alimentação. Hoje, qualquer pessoa pode ter uma «horta» de ervas aromáticas na varanda, por exemplo. Se bem que, em termos alimentares, os segredos da tradição culinária, na sua genuinidade e ambiência própria, ainda contam muito - o que é bom e deve ser preservado.

José Batista d’Ascenção