sábado, 8 de março de 2025

Trump e Putin e o receio da eliminação de Zelensky e da Ucrânia como país independente

Cruéis e temíveis, os líderes dos EUA e da Rússia empurram o mundo em direcção preocupante.

Trump e a sua equipa são capazes de tudo, nenhum escrúpulo ou dignidade parece fazerem parte do espírito com que cortam e costuram os seus negócios.

Putin tanto faz cair aviões com alguém que lhe seja indesejável (caso de Prigozhin), como envenena e tortura adversários que não tolera (como aconteceu com Navalny), como empurra de varandas meros intelectuais ou artistas que, em algum momento, expressem discordância das suas ideias e, principalmente, da sua prática política (como se verificou com o dançarino Vladimir Shklyarov).

A Ucrânia tem um duplo azar: situa-se na esfera de influência da Rússia e possui abundantes riquezas, muito cobiçadas. Enquanto povo, quis a independência, tem um líder muito corajoso, mas as condições sócio-políticas são-lhe extraordinariamente adversas. De um lado, Putin, para levar o que pode, e pode muito, pela ocupação de grande parte do território e pelo poderio das armas. Do outro o seu amigo Trump, para obrigar os ucranianos à rendição e empolgar os seus recursos.

A humilhação de Zelensky é apenas uma forma de remover um obstáculo.

Temo que consigam, usando os meios que forem necessários.

O (resto do) mundo assiste, impotente ou alheio.

As consequências podem ser terríveis para todos em todo o lado. 

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 4 de março de 2025

A aguda consciência da necessidade e da preciosidade da água, por Eça de Queiroz

A água limpa é um bem imprescindível, como sempre foi e será, cada vez com mais acuidade. Eça de Queiroz, em «Carta sobre a Inauguração do Canal de Suez», dá-nos conta disso, eloquentemente [in: fascículo «De Port Said a Suez». Ed. Centauro, Babel. 2010].

…«Ao lado do canal marítimo, o canal de água doce (…) é uma das maiores obras de Lesseps [engenheiro francês que liderou a construção do Canal de Suez] e um dos episódios mais notáveis da perfuração do istmo. Os operários do canal tinham de trabalhar no deserto. A primeira necessidade era a água; um exército de operários não podia subsistir durante muitos anos apenas com a água trazida pelas caravanas. (…) O Sr de Lesseps resolveu ir ao Nilo, a trinta e cinco léguas [1 légua = 5 km], buscar água doce e trazê-la ao deserto por um canal que seguisse uma linha quase paralela ao canal marítimo e fosse ter a Suez. (…) O canal seria, assim, para uso dos operários, para irrigação daqueles terrenos áridos, e para a navegação de pequenos barcos.» (p. 25-26).

(…)

«Suez tem tido, até há pouco tempo, um viver incompleto pela falta de água. Em Suez, a água era conservada em caixas de ferro, trazidas do Cairo. A água da fonte de Moisés, (…) a três léguas, só a podem beber os camelos. No tempo da chuva havia, além da do Cairo, alguma água potável a seis léguas de distância. No tempo de calma [calor do Sol] a sede era uma doença: havia mercados de água onde os preços eram fabulosos, horríveis. Os ricos bebiam uma água meio salubre. Os pobres bebiam a água dos camelos, ou morriam de sede. Em Suez não havia (…) uma árvore, uma flor, uma erva. Havia gente que, tendo sempre ali vivido, não fazia ideia da vegetação. Contava-se de árabes de Suez, que, vindos do Cairo pela primeira vez, fugiam das árvores como de monstros desconhecidos. O canal de água doce mudou esta face das coisas. (…) No dia em que a água chegou a Suez foi uma vertigem. Os pobres árabes não podiam crer; mergulhavam-se nela, bebiam até lhes fazer mal, (…) davam gritos loucos. Alguns estavam aterrados e pasmavam da perda de tanta riqueza.» (p. 30-31)

Hoje, em diferentes lugares da Terra, muitos sofrem a falta terrível de água. Opostamente, muitas pessoas desconhecem o perigo do desperdício ou da destruição «de tanta riqueza».

José Batista d’Ascenção

domingo, 2 de março de 2025

Consumidores, que nós somos (II)

«Muitas pessoas que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial (…) remendavam cada meia, reparavam cada aparelho, guardavam cada pedaço de tecido e nunca desperdiçavam um grama de comida» (p. 82).

Ao invés, «desde a ascensão da era do consumo, a simplicidade tem-se mantido como uma actividade marginal» (p. 74). Curiosamente, a generalidade das pessoas acreditam que é «importante haver mais regulamentos ambientais, mas quase metade (…) não [vê] verdadeira necessidade de alterar os seus hábitos pessoais» (idem).

Já se tomam medidas governamentais, em muitas áreas, em diferentes países, mas é imprescindível «fazer alguma coisa quanto ao crescimento da própria procura por parte dos consumidores» (p. 83).

Cada um de nós bem podia esforçar-se por: «acabar com a tralha (…); fazer férias locais; comer verde; vestir retro; viajar poluindo menos (…)» (p. 87); etc.

O livro tem muito interesse e sugere que, se tivermos em conta o que, historicamente, em diferentes tempos e lugares, sociedades humanas solidárias e ecológicas fizeram, podemos encontrar viabilidade para um mundo melhor e (mais) sustentável, como agora se diz.

Vejo fundamentalmente dois problemas: por um lado, com a escola em falência, sabemos cada vez menos de História e, por outro lado, a estupidez humana e a extraordinária facilidade de comunicação tendem a empurrar-nos “democraticamente” em sentido pouco positivo…

José Batista d’Ascenção

sábado, 1 de março de 2025

Consumidores, que nós somos (I)

Em “tempos de trump”, em que os poderosos do mundo são indivíduos nada recomendáveis e muito perigosos, e em que o governo do país se degrada em irresponsabilidade impensável, a mesquinhez sócio-política faz a alguns de nós ter vontade de fugir do mundo comunicacional. O que não podemos. Mas, havendo outros motivos igualmente importantes, que exigem o nosso sentido de justiça e mínimos de lucidez, de solidariedade e de coragem, refiro alguns aspectos procedimentais e ambientais que retirei da obra intitulada «História para amanhã», de Roman Krznaric, publicada pelas «Edições 70».

«Abandonar o hábito do consumo» é o tema do capítulo 3. Aqui se refere que «a cultura do “desejo ilimitado” surgiu na Europa do século XVIII» (p. 68) e que o «crescimento económico que se enraizou nas sociedades ocidentais no início do séc. XX necessitava de um consumismo insaciável…» (p. 69). Na década de 1920, Eduard Bernay (sobrinho de Sigmund Freud), guru de relações públicas, «convenceu as mulheres a começarem a fumar cigarros, por estes serem “tochas de liberdade” e (…) inventou o bacon com ovos como (…) pequeno-almoço americano, em prol da suinicultura». (…) «Hoje em dia, somos seduzidos pelos algoritmos dos empórios das compras online…»(p. 69). (…) «Compro, logo existo.» (p. 70). Acontece que, «para lá de um certo ponto, mais coisas não nos tornam muito mais felizes» (idem). E o problema maior são os impactos planetários.

Efectivamente, os «compradores abastados do hemisfério norte são a linha da frente de uma espoliação ecológica» (idem) inimaginável nos tempos pré-industriais: «Montanhas de lixo electrónico, iphones descartados e seus metais raros, microplásticos encontrados nos estômagos de golfinhos, de tartarugas e de crianças; químicos tóxicos na água que bebemos e no ar que respiramos; florestas devastadas por ranchos de gado, para pôr carne nos nossos pratos» (…) [significam que] «andamos a gastar anualmente os recursos de dois planetas Terra». (idem).

(Continua)

José Batista d'Ascenção

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Música do Céu

Acabou de acontecer. Em Braga, no Teatro Circo. Carlos Paredes por Mário Laginha aos comandos de um quarteto jazzístico, com Julian Argüelle no saxofone, Romeu Tristão no contra-baixo e João Pereira na bateria. Música para os ouvidos e o coração de todos.

Que este tenha sido um concerto seminal. Bem podem os meus amigos acorrer à sua repetição por muitos lugares onde desejavelmente vai ocorrer. E a televisão, a televisão pública, que tantas pepineiras espalhafatosas nos impinge (não a mim, devido ao efeito de repulsão), devia gravar na íntegra e passar em horário nobre. Ganhava o público, homenageava-se condignamente a singularidade pessoal e musical de Paredes, e divulgava-se o génio criativo de Laginha e o talento dos músicos seus acompanhantes.

Não é pedir muito, juro. 

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O papa que vamos perder

Gostei de tudo em Francisco desde que foi eleito. É um Homem Bom na Cadeira de Pedro. Face ao desconserto do mundo foi lúcido e corajoso, inspirado e inspirador. A encíclica «Laudato Si» é o melhor e mais completo e mais belo e mais generoso livro de ecologia que me foi dado ler. «Ecologia» num sentido muito pessoal que dou ao conceito, com os seres humanos, especialmente os mais frágeis, no lugar que lhes devia competir, no seio das sociedades e da Natureza.

Parece-me que, idealmente, todas as religiões deviam ser isso. E as culturas também. Que é idealismo da minha parte, bem o sei e sinto.

Desejo imensamente que recupere. Digo-o com todo o pesar de quem já lhe sente a falta.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

António José Seguro – um político diferente?

Nunca acolhi como qualidades o malabarismo de ideias e de procedimentos da maioria dos políticos. Na minha bitola a verticalidade e a clareza são determinantes. Em consequência, não é muito extensa a lista de políticos (nacionais e estrangeiros) que me impressiona(ra)m favoravelmente.

Com excessiva antecedência movem-se os interessados (e respectivas cortes de interesseiros) na próxima corrida às eleições presidenciais.

Não sei (ainda) em quem irei votar. Mas há um “pré-candidato” que, sem me parecer um génio político, aprecio. Trata-se de António José Seguro. Eis as razões principais:

- foi sempre distante em relação às trafulhices de José Sócrates;

- teve a coragem de admitir que o número de deputados à Assembleia da República peca por excesso, perante o que é óbvio e se agrava há anos: muitos dos (supostos) representantes do povo fazem apenas número – não têm voz própria e votam como as cúpulas partidárias mandam;

- foi atirado escada abaixo por António Costa, num processo nem sempre elegante (assim me pareceu), mas soube retirar-se e manter-se digno e discreto;

- não colhe a simpatia de “socialistas” como Augusto Santos Silva, o que, na minha leitura, é bom sinal.

Vejo, por isso, com bons olhos que se candidate. Até porque as qualidades que se apontam a outros pretendentes ao lugar já os sucessivos incumbentes as encarnaram,  no todo ou em parte, e não se pode dizer que nós e o país tenhamos ganhado muito com isso.

Venha por bem quem for normal e leal. 

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Temperaturas «perspectivadas» e «projectadas»


Os meios públicos de comunicação social, rádio e TV, mas também todos os outros, deviam ter muito cuidado na utilização da (bela) língua portuguesa.

Hoje, às 09.00 horas, sintonizava a RDP – Antena 1 e não ouvi com agrado o locutor falar de «temperatura perspectivada» para uma e outra cidade, repetindo o termo «perspectivada», e terminando com a «temperatura projectada» para a cidade que referiu no fim da lista.

Só lhe faltou referir a temperatura prevista para qualquer das cidades, porque era de previsão que se tratava.

Não sei se há alguma entidade para seleccionar ou, pelo menos, para alertar os profissionais que, nas mais diversas instituições ou organizações públicas, têm de falar para as pessoas. Se não há, devia haver.

Acrescento, no entanto, que não sei quem falava hoje às 09.00 horas na RDP – Antena 1, pelo que admito que tenha sido alguma falha pontual da pessoa de serviço. Deus queira.

Para que conste, registo também que a antena 1 da RDP é uma estação de rádio em que oiço diversos programas, com muito gosto.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Extra ordinário


Dias mais compridos e luminosos cumprem a pré-Primavera em decurso e animam os espíritos. Janeiro é um mês longo, cinzento, frio e húmido (normalmente); e a primeira metade segue-se às festas do Natal e de Ano Novo, o que acentua as tendências depressivas. Mas, Janeiro já passou, os dias vão continuar a crescer e há uma ou outra flor que vai surgindo. Falta pouco para a Festa da Natureza.

É assim todos os anos. Valha-nos isso.

Fossem as nossas vidas e as políticas tão airosamente prometedoras.

O mundo está feio e não se descortinam «estações» auspiciosas.

Fabulosas conquistas dos seres humanos beneficiam os que podem, mas estão longe do alcance da maioria ou servem objectivos de subjugação da imensa mole dos mais fracos. As sociedades caminham vertiginosamente para as armadilhas utilitaristas dos poderosos, obscenamente ricos, mas que, também eles, não escaparão à derrota pelas consequências (sociais, climáticas, ambientais…) das suas retumbantes vitórias.

São tempos extra ordinários.

Como escapar à inexorabilidade dos algoritmos?

José Batista d’Ascenção

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Deputados da nação

Desde muito jovem, a seguir ao 25 de Abril, ao longo de décadas, admirei a qualidade de um número razoável de deputados do parlamento nacional. Nomes como os de Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal, Freitas do Amaral, Almeida Santos, Magalhães Mota, Sousa Franco, Natália Correia, Lucas Pires, Vital Moreira, Vasco da Gama Fernandes, Adriano Moreira, Helena Roseta, Manuel Alegre, João Amaral, Amaro da Costa, João Salgueiro, Jorge Sampaio, António Guterres, Marcelo Rebelo de Sousa, António Barreto, Pacheco Pereira, Mota Amaral, Oliveira Martins, Medeiros Ferreira e muitos outros deixaram em mim memórias francamente favoráveis.

Discursos com substância e ideias e beleza literária como os de Lucas Pires ou de Almeida Santos ou a poesia de Natália Correia eram peças de oratória de grande qualidade, que muito apreciava. E não eram incomuns nem solitárias. Ouvia-os e pensava que a palavras tão pertinentes e belas só podia corresponder o bem e a elevação moral e cívica, capazes de melhorar todas as condições do nosso pobre país, incluindo as da educação que haviam de fazer prosperar a economia.

E suportava facilmente as críticas de próximos e distantes que me acusavam de não optar por um campo partidário, execrando a eito os que não lhe pertencessem nem gravitassem por perto. Nos tempos do liceu, relativamente a colegas e professores, também vivi situação idêntica: apreciava todos aqueles que me pareciam dotados das qualidades mais diversas.

Por oposição, havia um rol de representantes parlamentares que sempre me pareceu que não mereciam o subido privilégio e a dignidade de serem deputados. E sabia que alguns só o eram e só tinham aceitado candidatar-se pela posição e pelos proventos. Justa ou injustamente, pareceu-me, ao longo destes cinquenta anos, que esta fracção de deputados se foi alargando. Na actualidade, a «casa da democracia» está muito mal frequentada e não honra o título. É o que sinto.

Ora, neste aspecto, não compreendo a posição daqueles que sempre se opuseram à redução do número de deputados. Seguramente com bons motivos ou, pelo menos, boas intenções, pois que homens como os Professores Jorge Miranda e Vital Moreira, se não erro, também são dessa opinião.

Mas, pergunto eu: que fazem no parlamento elementos que não intervêm de moto próprio e votam de acordo com as ordens que recebem?

E pergunto também: a «ciência política» e a matemática não estão em condições de, por conjugação adequada, proporcionar representatividade e proporcionalidade à diversidade ideológica do especto partidário com um número mais reduzido de representantes do povo? Se aqueles que enobrecem a função nunca foram além de escassas dúzias em cada legislatura, que fazem lá os restantes?

Um número entre 120 e 150 não seria já (mais do que) suficiente?

José Batista d’Ascenção

domingo, 26 de janeiro de 2025

Inteligência artificial e (boa?...) literatura

Acabei de ler o livro «As Filhas do Capitão», de María Dueñas, editado pela «Porto Editora» (2019). É um livro grande (574 pgs), que se lê com interesse, embora não seja uma obra-prima. Abrange 105 capítulos que, em minha opinião, podiam, sem prejuízo, reduzir-se a metade. Durante a leitura, notei a ocorrência de frases algo abstrusas ou de construção inabitual («o único que viu foi a mãe e as duas irmãs», p 95; «o único que eu quero», [com o significado de «a única coisa que eu quero»], p 117; «falavam como leitos desbocados», p120; «bigode historiado», p 135; «aspeto que ambas transpareciam», p 140; «largue-se daqui!» [no sentido de «saia!» ou «desapareça!»), p. 167; «um peitoril de desculpas serviu para se escapulir», p 305; «a caída de um pano», p 392; etc). Fui verificar quem seria o(a) tradutor(a). Não é indicado(a). Admito que a tradução tenha sido feita com recurso a algum programa informático. Esta suposição reforça em mim a ideia de que as ferramentas digitais deste e doutros tipos ainda têm um caminho mais ou menos longo a percorrer.

A leitura desta obra, de cuja honestidade não duvido, fez-me saltar (é o termo) para a importância que (me parece que) a inteligência artificial generativa tem em tudo o que hodiernamente se vai fazendo, a literatura incluída, naturalmente. Não são precisos muitos dados e especificações para que, quase instantaneamente, um programa de inteligência artificial faça o esquisso de um romance sobre qualquer tema, mais ou menos imbricado e de «ossatura» preenchida pelo enredo, de modo original, a gosto do suposto autor. Depois de pronto e posto à venda, grande parte do público-alvo efectivo não dará por nada. E pode até gostar muito e recomendar.

Isto é bom? Isto é mau? Provavelmente passará a ser (ou já é) tão comum que nem precisa de ser assumido, o que, de qualquer modo, muitos não fariam. 

Seja como for, por mim prefiro os clássicos, cujas obras nasceram exclusivamente do talento dos seus autores, por meio de intenso labor.

Pena que, agora, até esses sejam sujeitos à poda que censores modernos lhes aplicam, a pretexto de os expurgar dos conteúdos e ideias que julgam inaceitáveis, como se os leitores interessados fossem menos inteligentes do que são.

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Trump supõe-se capaz de tudo, até de raptar o oceano Atlântico

O ego incomensurável do indivíduo mais poderoso do mundo, de momento, fá-lo julgar-se omnipotente. O problema (maior) é que são muitos os que acreditam nisso. E o motivo não é só o fanatismo de grande parte dos cidadãos americanos, é também o pensamento (ou a ausência dele) de um imenso número de pessoas em todas as partes do globo.

Parece um regresso (inexorável) ao uso generalizado da mentira, da trapaça e do comércio político sem ética, pela força, se necessário. Manda quem pode. E não falta quem queira obedecer, a começar pelos multibilionários que não desistem da ambição de aumentar as suas fortunas. Poucos, muito poucos, donos de tudo; muitos, quase todos, em êxtase, porque fariam o mesmo, se pudessem.

Eis a marcha do mundo actual.

Aonde iremos parar ninguém sabe, mas o destino não agrada a cépticos como eu. Não, não vou por aí. E, forçando-me, violentariam a minha firme oposição.

Desejo, profundamente, estar enganado. Abstenho-me de especificar consequências. Gostava que os meus filhos e netos resistissem até a maré mudar, como tem de ser, e para que os sacrificados a haver não o tenham sido em vão.

Nessa altura, provavelmente, nem Trump nem eu existiremos já, mas continuará a não faltar quem o lembre e defenda. A humanidade é como é.

Além disso, se a Trump tivesse sido possível raptar o oceano, os seus seguidores podiam negá-lo com facilidade, bastando que o seu herói tivesse mudado o nome à massa líquida, pelo que a realidade, mutada pelo ar do tempo, não só deixaria de existir como deixava de ter existido.

Ora, o que não houve nem há em universos de realidade ficcionada conveniente não pesa na (in)consciência dos seus promotores. Eles a si mesmos se declararão definitivamente vencedores.

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

A lotaria da vida

Cheguei à idade de ser avô e já levo mais de quarenta anos na profissão que escolhi e de que não me queixo (embora a minha opção tivesse sido outra, se soubesse o que hoje sei). Tenho filhos maravilhosos e netos que me fazem sentir no céu. A Lurdes, minha mulher, que o diga. A ela estou grato, pelos frutos e pela companhia e amparo no percurso. A minha irmã mais velha deixou-nos imersa num oceano de doenças, na mesma idade, em anos e meses, que eu acabei de atingir. Sou órfão de pai, mas ainda tenho mãe, já bastante fragilizada.

Sou um privilegiado.

Há década e meia, exames eco e radiológicos mostraram-me que num corpo sem sintomas facilmente se desenvolve algum tipo de mal fatal. O cirurgião foi lesto, em Abril esventrava-me do lado direito, a bisturi, num rasgão de palmo, e em Junho, repetia o processo do lado esquerdo. Perceberamos que a causa era cromossómica, pelo que a doença ressurgiria, mais cedo ou mais tarde. Todos os anos temos olhado para o evoluir do processo e sabemos que as (poucas) opções não são fáceis nem agradáveis.

Ontem, o filho mais velho quis falar longamente comigo. Como eu aconselhara, desde a ida à faca, ele e o irmão deviam fazer exames de despiste quando se aproximassem dos quarenta. Ele não esperou tanto. Dias antes do Natal, invocando condicionalismos de trabalho ficou em Nova Iorque, enquanto a mulher e os meninos vieram ao rectângulo, para consolo dos familiares pátrios, especialmente os avós. Afinal, soube há poucas horas, fizera intervenção similar às minhas, mas com metodologias e técnicas muito mais modernas e menos invasivas. Falou com uma serenidade e coragem impressionantes (se assim não for disfarçou impecavelmente). Enviou-me os resultados dos exames que fez e disse que ia agora ter uma conversa com o irmão.

A síndrome tem o nome de Birt-Hogg-Dubé. A probabilidade de transmissão aos filhos dele é igual à probabilidade com que lha transmiti a ele (e não sei se ao irmão): 50%. Saber desta realidade quantificada ensombrou-me.

Por mim, estou bem, já vivi muito e sou um homem de sorte, quando morrer, morri apenas. Mas, a meus filhos e netos falta viver. E como eles merecem viver!

José Batista d’Ascenção

domingo, 12 de janeiro de 2025

A farsa dos dias comemorativos

Por Jorge Paiva, sob o título «Dias comemorativos inventados, reais e naturais» no jornal «PÚBLICO» de hoje, pg. 23 da versão impressa.

«A maioria dos dias comemorativos que se celebram em Portugal é inventada pela sociedade de consumo que nos consome. Vejamos alguns exemplos. Inventaram o Dia da Mãe, o Dia do Pai e o Dia dos Avós. Umas semanas antes de cada um desses dias, iniciam a campanha publicitária para que os descendentes não se esqueçam de comprar lembranças. Considero que não são Dias Comemorativos, mas Dias de Consumismo, com ofertas de lembranças materiais, a maioria delas desnecessárias ou inúteis, flores e doçaria em quantidades exorbitantes. Devo dizer que no Dia do Pai e no Dia dos Avós os meus descendentes não só não me oferecem nada, por saberem que não tolero esse consumismo, como, também, nem me telefonam. Magoado ficaria eu se eles só se lembrassem de mim apenas nesses dias. O famigerado Dia dos Namorados é um dos mais aproveitados para consumismo inútil. Até nos dias comemorativos dedicados à natureza e ao ambiente, o consumismo e o exibicionismo estão presentes. Por exemplo, no “Dia da Árvore ou da Floresta” não só lembram as pessoas para comprarem uma árvore e plantarem-na (geralmente mal e em local impróprio), como os políticos e governantes aproveitam para se exibirem a plantar uma árvore, sem nunca antes terem feito nada pela conservação da natureza. Alguns dias comemorativos inventados nem se comemoram simultaneamente em todo globo, como, por exemplo, o Dia de Ano Novo. Quando o foguetório, poluente e ruidoso, começa na Madeira, já os neozelandeses e australianos estão a dormir, mais ou menos alcoolizados. A voracidade desta sociedade consumista é tal que até para com os dias comemorativos reais (por exemplo, o nosso aniversário) pressionam as pessoas para o consumo e exibicionismo. Damos apenas um exemplo. Para o dia comemorativo do 25 de Abril, é ampla a propaganda para se comprarem cravos vermelhos, camisolas e cachecóis, [o] que muitos aproveitam para se exibirem como sendo democratas, mas não o sendo na realidade.

Os dias comemorativos naturais, como são, por exemplo, os solstícios e os equinócios, não só não os comemoramos, como a maioria da população humana nem sabe o que são estas ocorrências astronómicas. Porém, a maioria dos animais e até das plantas não só dá por esses fenómenos, como também altera funções fisiológicas e até muda de habitats e regiões.

[…]

Consideramos que somos a espécie mais inteligente desta “Gaiola” [o planeta Terra], mas é tão estúpida [a nossa espécie], que é a única que está a provocar a destruição do ecossistema em que vive; o globo terrestre era limpo (havia reciclagem natural) e atmosfera respirável, antes de surgirmos nesta “Gaiola”.»

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Assim é. Já estávamos mal. Ao iniciar-se, com toda a pujança, a «Era Trump», aceleramos vertiginosamente para a mais elevada degradação social e ambiental do planeta. Caro o pagaremos, a começar pelos mais pobres e desprotegidos. Mas os restantes não escaparão. Soubessem-no eles.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Os livros e nós

Há livros que nos constroem. Dar com eles pode ser uma questão de sorte. Não faltam bons livros. Sendo tantos os livros bons, quaisquer que sejam os critérios de apreciação, apenas podemos ler uma pequeníssima parte deles, por falta de tempo e excesso de opções possíveis. No que me cabe, decidi, nem sei quando, ler apenas livros cuja probabilidade de serem bons me parecesse elevada. Donde, fui, tendencialmente (e injustamente) pouco receptivo aos livros de pessoas (mais ou menos) próximas ou desconhecidas. E, numa ou noutra ocasião, em que me pediram opinião sobre se determinados escritos deviam ser publicados, não pude esconder a falta de entusiasmo, sugerindo, invariavelmente, que, na escrita como na pintura, na música ou noutras artes, cabe a poucos realizar e a muitos – a quase totalidade de nós – apreciar. E segui eu próprio a sugestão.

Não obstante, tive muitas surpresas. Obras aclamadas nem sempre me agradaram e trabalhos menos conhecidos, ignorados ou não valorizados deram-me satisfação e enriquecimento.

Foi, há meia dúzia de anos, o caso do livro «Gualdim Pais, o Fronteiro de Deus», de Fernando Pinheiro, autor honesto de labor sereno que, romanceando a vida do herói em título, entreteceu ricamente a história das origens de Portugal, da cultura e da identidade matricial dos portugueses.

E foi, há poucos dias, um livro do professor aposentado de Física e Química, Manuel Lago Cruz, que se intitula, muito apropriadamente, «Questões de Tempo». É uma edição de autor, sem data. O conteúdo debruça-se sobre noções de tempo, desde a antiguidade aos tempos de hoje, segundo filósofos, religiosos, cientistas, literatos, pintores cineastas ou outros, numa pletora de figuras proeminentes das mais diversas áreas, de todas as geografias (para meu gosto, nem Darwin e a sua teoria da evolução ficaram de fora). Está bem escrito, é muito claro, bem sequenciado e articulado. A cultura do Manuel Lago, confirma-se, é tão vasta quanto eu tinha a ideia que era, quando, nos finais do milénio passado, fomos colegas na mesma escola (E. Secundária D. Maria II, Braga).

Aclarei ideias. Muito grato ao Manuel. 

José Batista d’Ascenção