sábado, 20 de fevereiro de 2021

A ladainha dos malefícios futuros da pandemia sobre os jovens

Fonte da imagem: aqui.

Tenho lido vários escritos sobre os males terríveis que aguardam crianças e jovens na sequência das limitações ao convívio e à socialização por que passam(mos) há (quase) um ano. Não me identifico com o pessimismo desses textos nem creio no rigor das previsões que anunciam. Admito até que correspondam mais ao estado de espírito (de alguns) dos seus autores, eles próprios afectados pela situação que vivemos, a que ninguém escapa, das crianças pequenas aos mais idosos.

Já bastam as dificuldades que enfrentamos. Não indo mais atrás, penso na geração dos meus pais e tios, por exemplo, e nos terrores que viveram com a guerra colonial, que deixou marcas profundas, claro, mas que eles suportaram (tantas vezes no silêncio da dor inexprimível); penso na minha geração e na quantidade de emigrantes que partiram deixando as crianças entregues à mãe, ou aos avós ou a familiares, o que perturbou o crescimento de muitas, mas não foi dramático na maior parte dos casos; penso ainda na vaga enorme de “retornados” que, em 1974-75, trouxe meio milhão de portugueses das ex-colónias, com pouco mais do que a roupa do corpo, e eles integraram-se no corpo da sociedade, que se renovou sem sobressaltos catastróficos, não obstante o sofrimento de muitos. São exemplos.

Em contraponto, lembro-me do optimismo das teorias pedagógicas, em cujo estudo me apliquei na minha formação para a docência, já lá vão várias décadas, e na frustração (surda ou nem tanto) da sua aplicação à realidade, que nos conduziu à escola doente dos tempos presentes. O investimento foi fruste, porque o conhecimento e a visão do futuro não eram sólidos e estavam enviesados. Ironicamente, a pandemia está a valorizar o papel da escola. Senão para aprender, pelo menos para socializar e para os professores tomarem conta dos alunos. Fosse esta uma janela de esperança.

Hoje como então, há muitos que pensam que sabem, mas que sabem pouco, tanto mais que ignorantes são todos os que ignorantes parecem mais a (quase) totalidade dos que não causam essa impressão, face à infinita diversidade do que se sabe e do que se desconhece.

Suponho que seja mais ou menos isto: temos medo; há muito “nevoeiro”; não sabemos o caminho; e, pior, não temos preparado bem grande parte das crianças.

Assim mesmo, com humildade, seriedade, serenidade, estudo e trabalho, mas também com a alegria possível, resolveremos, tanto quanto pudermos, a fome, a saúde e o prazer de viver a que todos têm/temos direito.

O que não será pouco. E é dever de cada um.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

«Pensar, depressa e devagar»

Há livros que nos surpreendem. Suporá o comum dos mortais que o que tem na memória é um registo objectivo do que se passou, que os acontecimentos históricos se deve(ra)m a causalidade determinada (que não a casualidade estatística), que os executivos influenciam decisivamente o desempenho das grandes empresas ou que um médico ou um juiz, de ordinário, fazem diagnósticos ou produzem sentenças seguindo com a maior coerência as perícias ou as provas de que dispõem. Ou seja, um indivíduo normal julga-se um ser racional e admite que os seres humanos que são como ele procedem comummente com racionalidade. Os bons publicitários sabem que não é bem assim. Os políticos hábeis também. E os negociantes eficazes, a mesma coisa. É pois provável que tal indivíduo tenda a relativizar ou a não considerar a enorme importância do acaso e da sorte nos acontecimentos da vida das pessoas. 

Ou seja: as coisas e os fenómenos diferem das ideias que temos deles. Daniel Kahneman, psicólogo, galardoado com o prémio nobel da economia, baseado em conhecimento produzido por si e por outros, mostra-o abundantemente neste livro. Impressionei-me. Eis algumas razões:

«Podemos ser cegos ao óbvio e somos também cegos à nossa cegueira.» (p.35) E «a inteligência elevada não torna as pessoas imunes aos enviesamentos». (p. 68)

«Os nossos pensamentos e o nosso comportamento são influenciados, muito mais do que sabemos ou desejamos, pelo meio a cada momento». (p. 172) «Estímulos não notados no nosso ambiente têm uma influência substancial nos nossos pensamentos e ações. Estas influências variam de momento a momento». (p. 297)

«As pessoas […] procuram dados que serão provavelmente compatíveis com as crenças que detêm». (p. 112) Os professores, por exemplo, tendem a inflacionar a pontuação de uma resposta deficiente se antes dessa tiverem avaliado outra resposta muito boa do mesmo aluno, o que se compreende: se o aluno se saiu bem no primeiro caso não cometeria erros idiotas no segundo. Se a ordem de classificação for a inversa, a classificação total é penalizadora (lê-se na p. 114)

«Quando lhes pedem para reconstruir as suas antigas crenças, as pessoas reproduzem, em vez disso, as suas crenças atuais […] e muitas não conseguem acreditar que alguma vez tenham achado outra coisa.» (p. 267)

Considere-se «a história de como a Google se transformou num gigante da indústria tecnológica. Dois estudantes criativos de Ciência Informática da Universidade de Stanford apareceram com uma forma superior de procurar informação na internet. Procuram e obtêm financiamento para iniciar uma empresa e tomam uma série de decisões que resultam bem. […] Numa ocasião memorável tiveram sorte […]: um ano depois de terem formado a Google estavam dispostos a vender a sua empresa por menos de um milhão de dólares, mas o comprador achou o preço demasiado elevado» (p. 264)

«A existência de mais de cinquenta anos de pesquisa é conclusiva: para uma grande maioria dos gestores de fundos, a seleção de ações é mais parecida com o lançamento de dados do que com um jogo de póker.» (p. 283)

«A imagem frequentemente usada da “marcha da História” implica ordem e direção. […] A ideia de que os grandes acontecimentos históricos são determinados pela sorte é profundamente chocante, apesar de ser demonstravelmente verdadeira.» Evoquemos o papel de Hitler, de Estaline e de Mao Zedong, no século XX: […] «houve um momento no tempo, precisamente antes de um óvulo ser fertilizado, em que havia uma hipótese de 50 por cento de o embrião que se tornou Hitler poder ter sido feminino. Combinando os três acontecimentos, havia uma probabilidade de um oitavo [12,5%] de um século XX sem qualquer dos três grandes vilões»… (p. 287)

«Radiologistas experientes, que classificam radiografias ao tórax como “normais” ou “anormais” contradizem-se 20% das vezes, quando veem a mesma chapa em ocasiões separadas» (p. 296)

Warren Gamaliel Harding foi o vigésimo nono Presidente dos Estados Unidos da América (1921-1923), sendo que a «única qualificação para esse cargo era ter uma figura que parecia talhada para a função. Com queixo quadrado e de elevada estatura, era a imagem perfeita de um líder […] As pessoas votaram em alguém que parecia forte e decidido»… [311-312 p.] Este fenómeno não é restrito ou datado, e não apenas na América…

Sobre o optimismo, que se considera essencial para o sucesso, diz o autor: «ainda estou para conhecer um cientista com sucesso a quem falte a habilidade para exagerar o significado daquilo que está a fazer e acho que alguém a quem falte um sentido ilusório de importância esmorecerá perante as repetidas experiências de múltiplos pequenos fracassos e raros sucessos, que é o destino da maioria dos investigadores.» [351 p.]

Os nossos sentidos enganam-nos frequentemente. «O mesmo som será experimentado como muito elevado ou bastante ténue, dependendo de ter sido precedido por um sussurro ou por um rugido. […] De igual modo, é preciso conhecer a cor de fundo para saber se uma faixa cinzenta numa página parecerá escura ou clara.» (p. 363)

Resumindo: a mente humana é muito curiosa (na p. 187 há uma referência a António Damásio) e estamos longe de abarcar a totalidade do seu funcionamento. Este livro, extenso, profundo e revelador, muitíssimo para além dos excertos referidos, aproxima-nos da sua compreensão. Embora parte significativa do seu conteúdo não seja acessível a um público muito vasto, qualquer pessoa ganha em lê-lo.

José Batista d’Ascenção

domingo, 7 de fevereiro de 2021

O primeiro "comboio" português – à vela ou puxado por burros

[Preciosidade do conhecimento, retirada há momentos do mural do "facebook" do Professor Galopim de Carvalho]

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«Salreu, perto de Estarreja, conserva a memória de antigas salinas, do mesmo modo que Sal Rei, uma vila da ilha da Boa Vista, em Cabo Verde, arquipélago onde os primeiros colonos baptizaram como Ilha do Sal a ilha Llana (antigo nome dado pelo seu descobridor, António Noli, em 1460) de grande secura e planura, propiciando a formação de salinas naturais. . Para comercializar (exportar) este sal, foi ali construída a primeira via-férrea portuguesa, desde a grande salina da Pedra de Lume até ao ancoradouro, onde barcos ingleses o carregavam. O comboio era à vela, aproveitando a energia do vento. Na falta deste, a tracção era feita por burros.»

Afixado por José Batista d'Ascenção

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Importância das vacinas e do conhecimento científico

Origem da imagem: aqui.

Na “luta pela vida”, os organismos têm que obter alimento, defender-se de predadores, parasitas e competidores, e assegurar a reprodução que perpetua cada espécie. O mutualismo faz também parte das relações entre os seres vivos, mas é apenas, e só em certos casos, uma das interacções possíveis.

Os seres humanos são uma espécie biológica sujeita, como as demais, às leis da natureza. Como há uma infinidade de micróbios (vírus, bactérias, protozoários, fungos…) e mesmo de animais (piolhos, carraças, ténias…) que aproveitam todas as oportunidades para se instalar no nosso corpo, é preciso que tenhamos meios de defesa, quer conscientes e voluntários, como os hábitos de higiene (corporal, alimentar e social), quer intrínsecos e internos, como o (chamado) sistema imunitário.

O sistema imunitário é composto por células sanguíneas (os glóbulos brancos ou leucócitos, de muitos tipos), que viajam pelo sistema circulatório (sanguíneo e linfático) e se demoram mais ou menos tempo nos gânglios, vigiando todas as partes do corpo e detectando e destruindo microrganismos invasores ou neutralizando as suas toxinas. Para isso, há células que fazem previamente o reconhecimento do que é estranho ao próprio organismo. Segue-se o ataque, que é feito directamente por alguns leucócitos, “engolindo” (por fagocitose) os intrusos, ou ocorre mediante a acção de anticorpos, moléculas proteicas desenhadas especificamente para neutralizarem “partículas” estranhas, que tanto podem fazer parte da superfície dos micróbios invasores como ser as toxinas por eles produzidas. A estas partículas chama-se antigénios. Os anticorpos são produzidos contra alvos específicos, por leucócitos especializados, depois do primeiro contacto com cada antigénio, de que é guardada uma memória. Por vezes, o sistema imunitário é tão zeloso que luta contra o que nem nos faria qualquer mal, como alguns pólens, casos em que sofremos de alergias. Em certas disfunções, o sistema imunitário “considera” como estranhos componentes do próprio organismo, passando a atacá-los persistentemente, o que dá origem a doenças auto-imunes.

As vacinas são um acto sanitário que consiste (em termos muito básicos) em inocular no organismo uma quantidade de antigénio em condições em que não desenvolva doença (micróbios mortos ou atenuados ou algumas porções deles, cobertura de vírus, toxinas inactivadas…), de forma a que o sistema imunitário faça o devido reconhecimento, produza alguns anticorpos e guarde memória do(s) antigénio(s). Num contacto posterior do antigénio com o sistema imunitário, este reage de pronto, podendo produzir, em poucas horas, quantidades enormes de anticorpos, o que previne a doença. A descoberta das vacinas ocorreu quando um médico inglês, Edward Jenner (1749-1823), verificou que as vacas, por vezes, apresentavam nas tetas pústulas iguais às das pessoas que sofriam de varíola, mas tinham sintomas mais leves. Verificou também que as mulheres que ordenhavam as vacas contraíam formas suaves da doença. Teve então a intuição de recolher pus das feridas de uma leiteira e inocular um rapazinho de oito anos com esse material (o que hoje não seria admissível; o menino não era filho dele…). A criança manifestou sintomas ligeiros e recuperou rapidamente. Submetido a nova inoculação, agora com material colhido de uma pessoa com varíola, o rapaz não desenvolveu a doença. Estava imunizado. Era a descoberta das vacinas. Vacina (do latim, vaccinu) é uma palavra que deriva da palavra vaca (do latim, vacca).

Conhecido o efeito das vacinas, a saúde humana beneficiou de larga melhoria. Doenças houve que foram erradicadas, por exemplo a varíola, enfermidade causada por um vírus, cujo último caso foi diagnosticado em 1977.

Acontece que muitas pessoas, por ignorarem as lições da História e desconhecerem o valor intrínseco da ciência, contestam o saber disponível que tanto custou a alcançar e lançam-se em campanhas contra a evidência de extraordinários benefícios que a humanidade conseguiu. É o caso dos contestatários das vacinas.

Sirva o atual momento das condições de saúde em Portugal e no mundo, e até o mau exemplo dos que ilegitimamente se fazem vacinar antes de outros em condições de prioridade, para rechaçar as ideias insanas dos que contestam a importância da vacinação.

José Batista d’Ascenção