quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Ódios cordiais

Sempre me interroguei porque havemos nós, pobres humanos, de antipatizar visceralmente com certas pessoas, embirrando com assimetrias da face, o nariz ou o olhar, o tom de voz, o aspecto geral, etc. Por vezes não conhecemos nem nunca falámos com as vítimas da nossa aversão e, no entanto, esse sentimento persiste.

Por mim, censuro-me quando tal me acontece: tenho vergonha do que sinto, sofro em silêncio e procuro reprimir a fealdade e injustiça do meu sentir.

Pior do que isso só a desfaçatez e a hipocrisia de revestir de amabilidade o que intencionalmente se faz ou diz para prejudicar alguém que se detesta. Procedimentos desse tipo são vulgares e muito visíveis nos políticos, razão por que são poucos os que têm o meu apreço.

Vem isto a propósito do modo como, um dia destes, António Costa veio “defender” Marcelo Rebelo de Sousa, que havia produzido declarações infelizes, mas sinceras, pelas quais pediu desculpa 48 horas depois, embora dizendo que não dissera o que disse. A intervenção de Costa pareceu-me um exercício de hipocrisia, executado com elevada mestria política.

Como Marcelo Rebelo de Sousa não deve ter gostado nada da “solidariedade” primo-ministerial esperou mais uns dias e aproveitou para, a despropósito, fazer uns elogios estratosféricos a Passos Coelho, para realçar, eventualmente, a separação do seu campo político do de António Costa. Acontece que Passos Coelho nunca gostou de Marcelo R. de Sousa (em tempos chamou-lhe “cata-vento”), que lhe paga(va) na mesma moeda, embora com suprema subtileza. Marcelo e Passos lidavam mal com outro brilhante protagonista político – Paulo Portas, cujos interesses de progressão pessoal o fizeram colidir com cada um deles, em diferentes momentos do seu percurso político. De resto, Paulo Portas já antes havia usado e trucidado o líder do seu partido, Manuel Monteiro, por idênticas razões de fundo. Monteiro, menos fulgurante, teve ao menos a virtude de ser transparente: não escondeu que Paulo Portas descia no seu critério de apreciação. Grande dignidade e discrição teve António José Seguro, em passo semelhante, quando António Costa o tombou do trono do poder no partido socialista. Em política, a sinceridade não vinga.

Outra personalidade política tida por muito sagaz é o actual presidente da assembleia da república. Calculista, frio e fino, dizem, certa ocasião abdicou da elegância, quebrou o verniz, e afirmou que gostava era de “malhar na direita”. Ele que não percepcionou, em devido tempo, pelo menos nunca reconheceu, as falhas de carácter e os erros de governação do ex-primeiro-ministro José Sócrates, que serviu proximamente. Não foi caso isolado. É a política. Há quem aprecie. Não eu.

Lembro-me que terá sido Jorge Sampaio, muito antes de ser presidente da república, quem, um dia, face ao intriguismo reinante em facções distintas do seu partido, o PS, dizia que formalmente todos se tratavam muito bem, explicitando que «se odiavam cordialmente».

Infelizmente, não é só na política.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Sexualidade, criminosos hipotéticos e crimes sem castigo

A comunicação social multiplica a (e multiplica-se na) denúncia de agressões sexuais sobretudo contra crianças e mulheres. Infelizmente nem tudo são notícias falsas. Longe disso. É caso para dizer que, nos casos justificados, “não lhes doam as mãos”.

Até há pouco tempo não era assim, embora não faltassem indícios conhecidos e, às vezes, largamente comentados (pelo menos à boca pequena), mas ignorados pelos órgãos de informação.

Pelo meio foram surgindo paranóias justiceiras para promoção de protagonistas políticos caseiros, com falta de obra (mais) meritória. Penso concretamente no prazo que se esgota para que eu, enquanto professor, autorize a solicitação de um certificado do registo criminal a obter pela escola onde trabalho. Eu e todos os professores. Eu e os outros funcionários públicos. Este pedido, no caso dos professores, é feito no início de cada ano lectivo. Quem propôs a medida foi a, em tempos, ministra da justiça, Paula Teixeira da Cruz. Lembro-me que, na sequência, chegou a ser obrigatório os docentes que acompanhavam alunos em visitas de estudo levarem consigo aquele documento para mostrarem às autoridades que, porventura, mandassem parar o(s) autocarro(s) durante o percurso. Nesses tempos, eu e mais professores optámos por não propor visitas de estudo nem participar nas que outros organizassem. O certificado, para além de inútil (formalmente válido apenas por três meses após a emissão e somente para aquele fim), era mais um motivo de burocracia e despesa, mas, fundamentalmente, entendíamo-lo como a consagração de uma desconfiança ofensiva.

Nesta matéria, o que é preciso são procedimentos efectivos (preventivos ou punitivos) em situações concretas ou indícios delas e não medidas rasas de princípios duvidosos e eficácia nula.

De resto, e muito bem, relativamente aos casos verificados nas escolas, as denúncias foram atempadas, incisivas e consequentes. Assim acontecesse noutras áreas/organizações/instituições.

E nunca houve (nem se aceitaria que tivesse havido), no sector da educação, presidentes da república a avisar eventuais implicados em actos remetidos à justiça.

José Batista d’Ascenção

domingo, 9 de outubro de 2022

O encanto das crianças

Na aldeia em que nasci e cresci até ao início da adolescência, diziam os mais velhos que «tudo o que é pequenino é bonito». O dito, que tem a sua lógica, aplicava-se indistintamente a seres vivos e a objectos, utilitários ou não. Já em criança, as miniaturas que eram dadas como brinquedos a meninas e meninos, fossem carrinhos, sapatos ou cadeiras, me pareciam, então como hoje, peças invariavelmente bonitas. Lembro-me de um camião que herdei de alguém, todo ele feito de cortiça, excepto os eixos das rodas, que era tão minuciosamente perfeito e robusto – com seis ou sete anos, podia sentar-me sobre ele – que merecia a minha devoção.

Bonitos são também os bebés animais, selvagens ou domésticos. A graça de pintainhos ou patos, de borregos ou cabritos, de cães ou de gatos só tem paralelo na ternura e cuidado que as mães lhes dedicam. E não é preciso a sensibilidade de um Trindade Coelho («Os meus Amores») ou de um Aquilino Ribeiro («O Romance da Raposa») para lhe dar destaque. Basta a qualquer mortal poder ver. Porém, tal possibilidade está afastada de muitas crianças dos nossos dias, porque o estilo de vida as faz crescer sem essas vivências. O que será uma perda relevante no seu crescimento, particularmente se pensarmos nos jogos digitais gratuitamente violentos ou nos vídeos frenéticos a que ficam sujeitas durante muitas horas do dia, desde a primeira infância.

Da vida das crianças desapareceu ou reduziu-se drasticamente o contacto com a natureza, passando o seu ambiente próximo a ser dominado pelas correrias e pelo “stress” dos pais e pela dependência do mundo virtual digital. Como consequência, não é só a motricidade fina, a coordenação motora e a massa corporal que são afectadas, também a afectividade relacional ficará comprometida.

Não obstante, as crianças continuam a ser crianças, com a sua inocência e curiosidade. Ora, as crianças necessitam da atenção, da paciência e do tempo de adultos próximos, concretamente familiares. E então, podendo ser crianças, são inevitavelmente bonitas, porque não é por serem fisicamente belas (ou andarem bem arranjadas) que as crianças são agradáveis.

As crianças são bonitas por serem crianças.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Os princípios e a vidinha

A luta pela vida é uma constante na Natureza. Luta sem tréguas. Implacável. Permanente. O que não impede manifestações assombrosas e comoventes de graça, de ternura e de beleza. Finitas e mutáveis, sempre. Frequentemente cíclicas, como o surgimento da Primavera após cada Inverno.

Nas sociedades humanas, as coisas são ainda mais complexas. O bicho humano, filho da Natureza, subverte-a, como se fosse possível escapar-lhe. E subjuga-se à vontade (própria e alheia) de domínio sobre os semelhantes. Religiões, filosofias, sistemas políticos e económicos e organizações bélicas definem princípios - os seus - e criam mecanismos de poder. Necessariamente, surgiram espíritos que iluminaram o conhecimento e muitos contribuíram lúcida e generosamente para melhorar a condição humana. Parte deles foram ouvidos e seguidos. E muitas sociedades progrediram. Mas sempre em benefício de alguns, relativamente minoritários, reconheça-se. O lastro biológico não permite a bondade universal nos grupos humanos. Nunca se sabe quando os demónios se soltam, em cada indivíduo e, pior ainda, nas multidões. Como a História documenta, recorrentemente.

A mesquinhez intrínseca da vidinha, rude ou ladina, tem uma força incomensurável e, por isso, a deriva da evolução psicossocial dos humanos é cheia de regressos e desilusões, que os “salvadores” de todos os tempos e lugares espreitam. E aproveitam.

Para além da sorte e do acaso, que também contam, salva-se quem pode e é capaz, independentemente dos métodos.

Ainda que ilusoriamente.

José Batista d’Ascenção