quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

“Os pobres”, livro de Maria Filomena Mónica

Publicado quase em meados do mês, fui procurar este livro, de que estava à espera. Gosto particularmente do desassombro, da clareza, do rigor e da firmeza de posições da autora e não fiquei desiludido. Por outro lado, admiro alguém que, afirmando que «Nunca passei fome. Os meus filhos nunca passaram fome. Os meus netos nunca passaram fome.», se pronuncia sobre o tema por imperativo de consciência, sem ceder à complacência de tratar os pobres como coitadinhos, mesmo quando factualmente o são e se comportam em conformidade. E mostra, documentalmente, que o seu sentir e pensar são assim desde adolescente, quando - só então, mas não por responsabilidade sua - descobriu que havia “pobres, miseráveis, a morrer de fome”, e escrevia «quando vou aos pobres tenho vergonha de ser rica».
Na sua abordagem, Maria Filomena não deixa nada de fora. Na página 28 refere mesmo «o facto de os meninos da casa [dos ricos, seus amigos] terem relações sexuais com as criadas». Neste ponto, a realidade descrita foi em muitos casos extensiva aos maridos das patroas e até ao pai e filhos (machos) da mesma família, em simultâneo. Ouvi-o da boca de colegas, que o referiram descontraidamente, entre 1980-85, quando frequentava a Universidade de Coimbra. De resto, um candidato presidencial, Manuel Alegre, também referiu o facto, enquanto sujeito da acção, não recordo agora se em resposta a pergunta mais indiscreta ou se naqueles assomos de franqueza que tornam os homens se não melhores, pelo menos mais iguais a si próprios… O “bisturi” de Maria Filomena também não esquece os “meninos ricos entretidos a brincar às revoluções”, nos tempos seguintes ao 25 de Abril, motivos por que se fartou, tendo deixado a faculdade. Em Setembro desse ano, notava «mais uma vez que, na oratória revolucionária, nunca se falava de pobres», mesmo quando se prometia a todos «pão, paz, saúde e educação, sem que alguém entendesse como isto poderia acontecer». No estrangeiro, designadamente nos EUA, onde foi em 1978, viu que «em pleno dia, os transeuntes passavam por cima dos sem-abrigo, sem notar que estavam ali pessoas», percebendo que no país do sonho americano, «a pobreza era vista, não como uma desgraça, mas como um falhanço moral». E refere que, em 1962, a obra de Michel Harrington, intitulada The Other America revelava «que existiam nos EUA entre 40 a 50 milhões de pobres», o que «chocou o Presidente J. F. Kennedy». Mais adiante, torna ao Portugal pós-25 de Abril, e escreve, resoluta: «Quem ideologicamente nunca deixou o século XVIII é natural que defenda que os pobres não sofrem» (pág. 45).
No capítulo 3, é tratado «O caso inglês». Aí se diz que «a pobreza só foi ‘descoberta’ no século XIX, quando alguns reformadores ingleses (…) publicaram obras sobre o assunto» (pág. 51). Logo adiante escreve: «o problema deixou de ser visto como o era no princípio do século, com Malthus, que se referia aos pobres como o excesso da população que vivia da ‘miséria e do vício’»… e outros que falavam «dos mendigos (…) que não querem trabalhar». Por volta de 1900, para Churchill, entre outros, a pobreza passou a ser vista como «um problema da sociedade e não dos pobres» (pág. 56).
No capítulo 4, busca-se informação sobre “artesãos, operários e proletários” portugueses, tarefa difícil pela escassez de documentação escrita rigorosa. Mas com elementos de sobra para referir, relativamente aos trabalhadores do Norte do país que, «se a alimentação era má, o alojamento era pior» (pág. 72), e que «a taxa de mortalidade infantil (…), entre 1887 e 1896, no Porto, «nunca desceu abaixo dos 226 por mil por ano» (pág. 73). A violência da fome e da miséria levou a várias greves que, nalguns casos, motivaram a intervenção da polícia e da tropa, que disparou sobre os trabalhadores, causando mortos (pág. 78). «Em 1903, ocorreu a maior greve que o país conhecera». Aconteceu quando tecelões e fiandeiros se uniram e desceram até ao centro da cidade, e então «o Porto olhou mulheres a pedir pão de joelhos. Mais do que medo, os grevistas causavam dó.» A imprensa da época fazia «relatos minuciosos dos sofrimentos dos grevistas» que «não eram tratados como trabalhadores fazendo valer os seus direitos, mas como pobres a suplicar o pão.» Por volta de 1910, a vida dos operários, especialmente das mulheres, era particularmente difícil: «Levantavam-se antes do nascer do sol: às sete horas tinham de estar na fábrica. À pressa, arrumavam a casa e tratavam do pequeno-almoço do marido e dos filhos. Quando eram mães, carregavam os recém-nascidos (…) para as oficinas. Andavam quilómetros a pé, descalças, à chuva. Tinham que se despachar, se não queriam que (…) lhes descontasse[m] (…) no salário. No trabalho, durante 12 horas, numa tarefa monótona, «se se enganavam, o erro era-lhes descontado. Se se distraiam podiam perder os dedos ou a mão. (…) No Inverno, o ambiente era gélido; no Verão, um forno. Tinham de respeitar a insolência dos mestres. Ninguém as respeitava. Ao meio-dia comiam, na rua ou no pátio, o almoço que tinham trazido de casa», sempre o mesmo: «um bocado de pão de milho, banha e peixe seco. Amamentavam a correr ou às escondidas. Chegavam a casa exaustas. Aos trinta anos estavam velhas», etc., etc. (pág. 88).
A meio do livro, no capítulo 5, com o título «De quem são os pobres?» é-nos dada uma perspectiva histórica desde meados do século XIX, em Portugal, sobre o tema do auxílio aos pobres, sempre sem benefício para os próprios, ressaltando os conflitos entre os governos da monarquia constitucional e as freiras (Irmãs da Caridade, da Ordem S. Vicente de Paula), provindas de França, a convite de «algumas aristocratas» (pág. 95). Não obstante, havia quem se preocupasse realmente com os pobres, como aconteceu com um fidalgo açoriano, de nome José do Canto. Segundo ele, a «miséria dos camponeses (…) derivava do analfabetismo» (pág. 104). E «um dos mais lúcidos escritores da época, António Pedro Lopes de Mendonça, destacava a diferença entre países católicos e (…) protestantes», acentuando que «a liturgia do protestantismo (…) vive mais da leitura da Escritura do que (…) das predicações» (ibidem), defendendo que «a matéria de ensino é uma dívida [d]o Estado (…) ao cidadão (…) e uma das garantias mais poderosas para a  manutenção da liberdade» (pág. 105). Infelizmente, «as ideias de José do Canto não resistiram ao confronto com a realidade» (pág. 107).
Os capítulos seguintes (6 e 7) abordam a relação da República e do Estado Novo (respectivamente) com os pobres, e mostram-nos - vale a pena ler! - como os pobres não melhoraram a sua condição durante a vigência de ambos. «O melhor exemplo da forma como o Estado Novo encarava os pobres é a polémica sobre a ‘Campanha contra o Pé Descalço’, lançada em 1928» (pág. 132), primeiro no Porto e depois em Lisboa. Essa campanha começou com a proibição do «hábito do pé descalço e instituía multas para os refractários. Logo se gerou uma polémica sobre se o pé descalço era motivo de vergonha ou de orgulho.» (ibidem). A autora esclarece: «Previsivelmente tudo isto deu em nada: nem os pobres tinham dinheiro para comprar sapatos nem as autoridades policiais eram em número suficiente para multar os infractores.» (ibidem). Para Salazar, «a mendicidade não é um índice da miséria porque é antes um vício» (pág. 133). (…) Acerca dele mesmo afirmaria, em 1949: «Devo à providência a graça de ser pobre» (pág. 134). De resto, em 1930, a taxa de analfabetismo em Portugal era de 70% (nota 22 da pág. 136) e essa condição foi mencionada como «característica positiva, (…) em 04 de Março de 1938 (…) no Parlamento» (pág. 137).
Pouco extensa, mas muito completa, esta obra não deixa de referir «Os pobres na literatura e nas artes» (capítulo 8), como se lê, saborosamente, apesar da crueza dos relatos, em excertos de diversos autores sobre o tema (Camilo, Eça, Raul Brandão, Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Torga, Ferreira de Castro, Cesário Verde, Rentes de Carvalho, para referir os mais significativos).
No capítulo final (9), Maria Filomena Mónica fala-nos sobre «A pobreza, hoje». O ritmo, a pertinência e o rigor são os mesmos. Leia quem puder. Veja-se só: «O que falha em Portugal não é apenas o Estado, mas a Igreja, as classes altas e até os pobres» (págs. 192-193); «não sou capaz de contemplar uma sociedade em que a protecção dos mais fracos e indefesos (…) fique a cargo da caridade privada.» (pág. 203); «Os jovens sem perspectivas de emprego, os homens e as mulheres em empregos precários, os imigrantes com direitos civis incompletos, o número crescente dos sem-abrigo não constituem um problema marginal: são a questão crucial dos nossos dias.» (pág. 205); …«a única maneira de os filhos dos pobres conseguirem escapar ao casulo social onde nasceram é através de um mecanismo que dê oportunidade ao mérito e o premeie.» (pág. 208); «Os governantes que apenas acreditam no mercado, que afirmam que os pobres apenas existem porque não querem trabalhar, que exaltam a ganância como valor supremo estão a minar a coesão das sociedades. Isto é um crime.» (pág. 209).
Esta súmula opinativa, embora extensa, é pálida e curta face à riqueza do livro. Mas eu precisava de a escrever e foi isto que consegui.
A Maria Filomena Mónica um «Obrigado!» muito sentido.

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Natal de plástico

Que chegue o Natal. Reconforta a ideia de estar próximo dos familiares e amigos, de trocar abraços, do sentimento de pertença a uma rede de amizade envolvente e forte. Mas podem ser incomodativos os dias que o antecedem, tanta é a correria à procura de prendas, a publicidade que apela às compras, muitas compras, e a saturação de luzinhas e estrelinhas e bolinhas e fitinhas e lacinhos. E doces, muitos doces. Falo das casas e das mesas fartas, algumas excessivamente fartas. Mas, incómoda, incómoda, é a falta de abrigo e de pão e de trabalho e de saúde e de segurança de tantos e tantos que, à margem da sociedade, sentem mais forte a solidão nestes dias. E a situação daqueles que, de mãos vazias, fogem da guerra e da devastação e se lançam, por mar ou por terra, em busca desesperada da paz que lhes roubaram, tantas vezes deixando para trás os familiares mortos. Sendo que muitos dos que morreram e dos que fogem são crianças…
É a marcha da humanidade, tão característica. E esta fase, mundialmente inspirada pelo nascimento despojado de um Menino, com que o papa Francisco tenta acalentar sobretudo os pobres e humildes, vem, passa, torna a vir e torna a passar, em renovos de esperança que não encontram terreno fértil no coração de todos…
Não temos feito bem a sementeira.

José Batista d’Ascenção

sábado, 17 de dezembro de 2016

“Histórias” de Portugal

A saborosa leitura do livro “Episódios da História de Portugal, que não aconteceram bem assim…”, de Ricardo Raimundo, da editora Manuscrito, trouxe-me à memória a ironia e o sarcasmo com que um meu tio materno – o meu tio João que Deus haja, como (ainda) se diz na aldeia em que nasci – se referia à narração (salazarista) dos feitos heroicos da nossa História, que tanto me empolgavam, era eu aluno da “escola primária” e estava ele mobilizado para a guerra colonial, que cumpriu, e em que já tinha estado um outro seu irmão mais velho. Segundo dizia, “a história tem o nome com ela – é como a escrevem - e devia dizer-se «histórias» para poder corresponder às ideias das diferentes pessoas que a(s) podem escrever e contar”. De caminho, para animar a minha mãe, dizia-lhe que, pelo menos, quando eu crescesse (eu era o rapaz mais velho dos netos dos meus avós maternos) já não devia haver obrigatoriedade de seguir para África. Aconteceu como ele previu, embora não tivesse mais que a instrução primária e vivesse numa aldeia remota do interior isolado do país.
Voltando ao livro.
Começa ele por referir alguns “milagres” que a nossa “História” tornou “verdadeiros”, às vezes não passando da “invenção de um cronista” (pág. 32); e em todos os casos a posteriori por razões ou com intuitos determinados, fosse o “milagre de Ourique”, o “milagre das rosas” ou o “milagre que levou ao falhanço do atentado a D. João IV”.
De seguida revela factos que nunca aconteceram. Salva-se a honra filial de Afonso Henriques que, embora tendo combatido e vencido D. Teresa num “confronto militar e ideológico” (pág. 35), não confirma o dito do “filho que bate[u] na mãe”, agredindo-a e amaldiçoando-a, “uma invenção dos cónegos regrantes de Santa Cruz de Coimbra” (ibidem). E revela-se que Egas Moniz, enquanto aio de Afonso Henriques terá sido uma criação de um trovador da corte de D. Afonso III, trineto do próprio Egas Moniz por linha bastarda, desejoso de honrar o seu antepassado e de conseguir dessa forma projecção social, criando um cantar épico, a Gesta de Egas Moniz (pág. 40). A lenda pegou, e ficou. Também se demonstra que “o modo como Lisboa foi conquistada inviabiliza a acção decisiva que se atribui a Martim Moniz” (pág. 46), o qual não morreu entalado na porta do castelo durante o assalto decisivo… Do mesmo modo, a “história da coroação e do beija-mão do cadáver da rainha”, a que D. Pedro I teria obrigado os poderosos fidalgos de Portugal, no Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra, “não passa de um mito” (pág. 50), uma fantasia que só apareceu mais tarde, em 1557, pela mão de um escritor castelhano, que “deu largas à imaginação para a exposição de cenas tétricas” (pág. 51). Também a história de Brites de Almeida, a padeira de Aljubarrota, pessoa real, cujos dados biográficos são interessantes, “é um mito” (pág. 55), não o sendo “o povo da região, que se insurgiu contra os castelhanos e os combateu” (ibidem). Outro mito é o da “Escola de Sagres”, uma vez que se sabe hoje que quer a dita escola quer “o objectivo do infante [D. Henrique] em formar homens capazes de sulcar os mares nunca existiram” (pág. 57). (…) “jamais o infante (…) pensaria em fundar uma academia, escola ou curso sobre a arte de navegar, uma vez que, (…) esta aprendia-se no convívio do mar, na prática do dia-a-dia, enriquecida durante as viagens.” (pág. 59) (…) nunca a matemática, se acaso chegou a ser ensinada na universidade, recebeu qualquer impulso da marinha” (…) (ibidem). Outra história nada verdadeira é a que quis fazer de D. Fernando o Infante Santo, "que nunca o foi nem o quis ser” (pág. 61), ele que várias vezes solicitou ao irmão a entrega de Ceuta e a sua consequente devolução à liberdade. (…) Não lhe passava pela cabeça que os irmãos preferissem Ceuta à sua vida” (pág. 62). No mesmo capítulo, na página 64, se demonstra como D. Henrique foi afinal um traidor indigno e interesseiro. Na última carta de D. Fernando (de 25 de Julho de 1442) nota-se “um misto de desilusão pelo comportamento de traição dos irmãos e a certeza de que a morte estava para breve: «sempre pensei ca antes da morte vos veria»” (pág. 65). Igualmente falsa é a “criação», no século XVI, das Cortes de Lamego de 1143. “A verdade é que as Cortes de Lamego de 1143 nunca existiram e o documento exarado com as suas deliberações era falso. Fora forjado no cartório de Alcobaça, com o intuito de demonstrar a ilegitimidade da soberania espanhola em Portugal e legitimar as pretensões ao trono dos Braganças” (pág. 74).
O capítulo III refere-se a frases que não existiram, que foram mal citadas ou que não foram ditas por quem se pensa. A título de exemplo, a frase “morro com a pátria”, atribuída a Camões é impossível que ele a tenha pronunciado na hora da morte, porquanto morreu de peste bubónica, doença que, nos seus últimos estádios, deixa o doente “prostrado, com febres altas, semi-inconsciente (…) e com tendência para afirmar coisas sem nexo” (pág. 82). Por outro lado, tendo morrido na miséria e “pestífero, não é plausível que mais alguém, a não ser entes queridos, estivesse à sua beira na agonia final” (pág. 83) para escutar e registar a frase. Com outras frases sonantes, atribuídas a personalidades históricas, passa-se outro tanto, mas não devo abusar das transcrições para não diminuir o interesse pelo livro, que o tem, realmente. Leia-o quem quiser saber mais…
O capítulo IV, o mais extenso, incide sobre factos mal contados, e começa com Viriato, que não foi quem se pensa e cuja história e ligação aos portugueses é, desde o seculo XIX, definida como mítica (pág. 115); passa por coisas tão diversas como a má interpretação da frase “Aqui nasceu Portugal” afixada na muralha de Guimarães ou pelo pinhal de Leiria de que D. Dinis não terá sido o semeador; ou pela bissexualidade de D. Pedro I, o apaixonado de D. Inês; ou pela ameaça do condestável Nuno Álvares Pereira em passar-se para a Espanha; e desmente que Portugal tenha sido o primeiro país a abolir a pena de morte; desmente também que Salazar tenha sido misógino e termina com a demonstração cabal de que a História de Portugal, desde Afonso I até meados do século XX é, em grande medida, um cortejo de horrores que contraria abundante e convincentemente a ideologia salazarista que apresentava Portugal como um país de brandos costumes. Pelo meio, neste e nos outros capítulos, há muito mais, tudo muito bem explicadinho, muito interessante, de tal modo que começando a ler o livro é difícil parar antes de o acabar.
Vale a pena. E, em minha opinião, Portugal e os portugueses não saem a perder.  

José Batista d’Ascenção

domingo, 11 de dezembro de 2016

Texto comovente, muito apropriado para a quadra que vivemos, gentilmente cedido pelo Professor Galopim de Carvalho e que gostosamente aqui se publica, com o devido agradecimento.

MAIS DO QUE A MORTE,  ASSUSTA-ME A SOLIDÃO DOS VELHOS



Este flash de  fim de vida, intensamente estampado nesta fotografia de Jorge Vieira, cala bem no fundo da nossa sensibilidade, não pela sombra do companheiro que partiu, já liberto e descansado das dores do corpo e da alma, mas pela irreversível solidão da que ainda espera pelo começo dessa viagem.
Tudo dói na crueza desta imagem. É a expressão no rosto da velha senhora, é o seu cabelinho ralo e desalinhado e o seu corpo, que se adivinha ressequido, escondido numa roupa que, por isso, ficou vários números acima. São os sapatos e as meias, de quem não tenciona sair à rua. É aquela mão agarrada ao canto da mesa e é ainda a toalha, grande demais para a pequena mesa a dois, agora dobrada e a dizer que, estendida, serviu uma família inteira que se esfumou. Pelos vincos bem marcados, esta toalha, talvez de linho, que ela própria bordou em tempos de jovem casadoira, a juntar ao enxoval, mostra que acabou de sair de um velho baú, com anos e anos de dobrada e adormecida ao lado de um saquinho de alfazema.

A. M. Galopim de Carvalho

sábado, 3 de dezembro de 2016

Portugueses de coração grande

Esta tarde participei numa acção a que me propus como voluntário, depois de muitos meses a pensar num modo prático e simples de fazer alguma coisa (mais) efectiva pelos outros. Estive com mais uma colega e uma equipa de alunos num supermercado a recolher mantimentos para o “Banco Alimentar”. Cheguei receoso, na dúvida sobre se teria competência para a função. Os alunos facilitaram, recebendo-me com simpatia. Espantei-me com a (tão grande!) generosidade de tantas pessoas. E comovi-me com alguém que se desculpava por dar “muito pouco”, esforçando-me por lhe deixar um “obrigado” expressivo (em voz que me saiu quase embargada…). Outra pessoa “respondeu” ao meu “obrigado”, com um “de nada, amanhã posso ser eu”, que me tocou particularmente. E os contentores enchiam-se, e mais pessoas davam e o meu nervosismo tinha desaparecido. Findo o meu tempo de participação, despedi-me carinhosamente dos alunos, que não conhecia pessoalmente e que gostei de conhecer, e da colega que orientou a minha humilde colaboração.
Se o mundo fosse melhor, estas acções não deviam ser necessárias. Mas são, porque há pessoas que precisam de comer, no mínimo…
Agradeço às pessoas, todas as pessoas, que contribuíram, em qualquer ponto do país.
Agradeço às pessoas que aceitaram o meu pedido de colaboração.
Agradeço aos jovens disponíveis e de coração sensível, especialmente àqueles com quem passei o tempo desde o meio da tarde de hoje até à hora de jantar.
Um “bem haja” ainda para todos os que tornam possível a recolha de alimentos de hoje e de amanhã.

José Batista d'Ascenção