domingo, 26 de março de 2017

Revisitação de livros marcantes: “A Vida e Opiniões de Tristram Shandy”, de Laurence Sterne, Parte Primeira, Antígona

Foi no final do ano de 1997, depois de uma crítica de Eduardo Prado Coelho, que li a obra em epígrafe, constituída por dois livros: a parte primeira e a parte segunda. A sua escrita foi iniciada em 1759 e os dois primeiros volumes seriam publicados em Janeiro de 1760, depois da recusa de vários editores de Iorque e de Londres. Foi um escândalo e um sucesso, traduzido em quatro edições (alguns milhares de exemplares) só até ao final daquele ano.
Senhor de uma cultura imensa, muito inspirado em obras de grandes nomes, especialmente no D. Quixote, e referindo humoristicamente, a todo o (des)propósito, uma infinidade de autores desde a Antiguidade (alguns jocosamente fictícios), Sterne revoluciona a escrita de forma muito original, em grande parte porque faz a dissecação da alma e do comportamento humano através da comédia permanente em que faz imergir a vida humana, num estilo delicado e fluente e de múltiplos significados, envolvendo o próprio leitor (ou leitora, a quem chama “minha Senhora”) nas suas divagações e peripécias múltiplas e encaixadas umas nas outras, num enredo “sem fim”, que, para os leitores da língua original, deve ser particularmente divertido. De caminho “escangalha” a organização de um livro certinho, com os conteúdos em sequência de capítulos agrupados em volumes, mas com uma tal perícia que o leitor nunca está perdido, nem saturado. Assim, por exemplo, no capítulo XX, na página 284, depois de “ocupar” as personagens em tarefas diversas, duas delas a dormir, diz ao leitor: «é a primeira vez que consigo arranjar um bocadinho, - e vou aproveitá-lo para escrever o meu prefácio», seguindo-se então uma dúzia de páginas com «o prefácio do autor». E aí começa por referir um rol de personalidades inventadas como Agelastes (o que nunca ri) Phutatorius (o copulador), Didius (alusão a Titus Didius, legislador romano, mas baseado em certo advogado iorquino), este como «grande jurista eclesiástico, autor do «código De fartandi et illustrandi fallaciis» (Acerca das ilusões do “traquejar” e do explicar), Kysarcius (beija-cu), Gastripheres (barrigudo), Somnolentius (sonolento), etc. Bastante antes, no capítulo VII, página 69, em alusão provável a um médico londrino, aproveita-lhe a alcunha e chama-o «Dr kunastrokius» (termo formado pela palavra latina “cunnus”, referente à designação latina da genitália feminina, em calão, e pela palavra inglesa “stroke”, com o significado de acariciar), caracterizando-o como «esse grande homem [que], nos seus tempos livres, [tinha] o maior prazer imaginável a escovar caudas de burros e arrancar-lhes os pêlos mortos com os próprios dentes»…
O livro estende-se por 461 páginas, mas a acção resume-se às peripécias da concepção e do parto da personagem principal, que é o próprio narrador. Um dos problemas com que o pai da criança prestes a nascer se debate é se não seria melhor o nascituro vir ao mundo com os pés para diante (ver ilustração da capa), evitando um suposto perigo resultante de nascer na posição oposta, mais habitual, caso em que o cérebro poderia ser espremido e empurrado contra o cerebelo – «a sede imediata do entendimento!». Outro problema, esse resultante do acto do nascimento, foi o nariz da criança ter ficado espalmado como «uma panqueca», razão por que o pai invoca tratados sobre narizes e a influência do nariz na vida de quem o tem assim ou assado (por exemplo, a ausência de nariz era geralmente atribuída à sífilis), dando particular importância «a uma instituta de regras sobre narizes» do «grande e douto Hafen Slawkenbergius» (autoridade forjada por Sterne: sendo “Hafen” a palavra alemã para “penico” e “Schlackenberg” significando “monte de esterco”). No encadeamento de problemas de cariz filosófico pessoal, em que aquele pai - «um filósofo chapado, especulativo e sistemático» - se embrenha sucessivamente, outra dificuldade, não menor, é a influência do nome de baptismo nos sucessos ou insucessos de cada pessoa. Por isso a criança a nascer devia chamar-se, por vontade paterna, Trimegistus (que significa, em grego, “três vezes máximo”), sendo que, por uma série de erros, acaba por ser baptizada com o nome odiado pelo pai: “Tristram” (significando “o triste”…) seguido do nome de família “Shandy” (podendo significar qualquer coisa como “amalucado”).
Como personagens principais figuram ainda o tio Toby, e o seu criado, o cabo Trim, ambos apaixonados tão infantil como comicamente pela arte da guerra e fortificações da época.
A obra é delirante e riquíssima, mas de difícil leitura, essencialmente por dois motivos: por ter como base o ambiente e condições sócio-históricas (termos, conceitos, ideias, cultura, objectos do real…) do século dezoito inglês, remotos e desconhecidos aos olhos dos leitores de hoje, e por ser uma tradução com exigências particulares. É bem sabido que traduzir um livro é escrever outro livro com base nesse numa língua e cultura diferentes: ora, duas coisas podem acontecer, dependendo do génio do tradutor: ou resulta um bom livro, capaz de agradar ou não ao público, ou não resulta livro que mereça o nome. Neste caso resultou um bom livro, tão agradável quanto difícil de abarcar em toda a sua riqueza de significação, dada a tarefa hercúlea que saiu ao tradutor, Manuel Portela.
Seguirei para a parte segunda da obra, e sobre ela talvez escreva mais alguma coisa…

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 21 de março de 2017

Prevenção de incêndios florestais – muita parra e pouca uva?

Segundo as notícias, o conselho de ministros de hoje terá aprovado uma dúzia de diplomas visando a
Imagem obtida aqui
prevenção de incêndios florestais, a somar a outras medidas já tomadas no mesmo sentido. Não é possível deixar de concordar e apoiar, genericamente… Mas, é erro (de percepção) meu ou, na prática (e no espírito das pessoas), tudo continua como dantes?
Como eu gostaria de ver os serviços de bombeiros a assinalar locais sensíveis e a proceder, agora, enquanto é (seria…) tempo, a fogo preventivo controlado…
Como eu gostaria que os populares tivessem cobertura legal para, nos casos em que as suas casas estão (proximamente) circundadas (no todo ou em parte) de matos e/ou floresta que não lhes pertencem, poderem tomar a iniciativa de cortar o mato e abater as árvores (pinheiros e eucaliptos), em perímetros alargados mas bem definidos, e ficarem com as árvores (ou vendê-las, por exemplo), e com direito a indemnização pelo trabalho realizado, atribuída automaticamente e à custa dos proprietários negligentes sempre que houvesse queixa judicial de qualquer das partes…
Como eu gostaria que o governo destinasse meios financeiros significativos (no quadro das possibilidades do país…) à investigação científica sobre prevenção e combate de incêndios florestais. Igualmente, gostaria de ver criados prémios valiosos a atribuir a investigadores nacionais (como há no estrangeiro) que fossem capazes de inventar algum antídoto imediato e eficaz de supressão de fogo, caso em que o Estado assumiria as diligências formais e o dispêndio com o registo da patente de um tal invento, de que ficaria proprietário.
Como eu gostaria de ver as autarquias envolvidas na limpeza de faixas florestais nas bermas de estradas e zonas limítrofes das povoações, a realizar durante a Primavera, sobretudo no interior, onde as populações estão muito envelhecidas.
Também gostaria de imaginar grandes rebanhos de ovinos e caprinos a espontarem o mato nas regiões serranas, retardando o seu crescimento, mas quem pode acalentar essa ilusão?
Gostaria imenso, ainda, de imaginar as aldeias do interior do meu país repletas de juventude cheia de energia e vontade de gerir e limpar a floresta, rentabilizando os seus recursos. Mas como seria isso possível?
Como eu gostaria de arder na esperança de que vamos minorar o problema. Gostaria, sim.

José Batista d’Ascenção

domingo, 19 de março de 2017

Sobre o que chamam «o dia do pai»

Desde muito cedo procurei transmitir aos meus filhos a ideia de que todos os dias são dias do pai, dias da mãe, dias dos avós, etc. Quando, criancinhas, chegavam do jardim-escola ou mesmo da que, no meu tempo, chamávamos «escola primária» (um nome bonito, no sentido de: base, alicerce, fundamento…), muito contentes com uma qualquer quinquilharia, que haviam feito por indução dos professores, abraçava-os e beijava-os com todo o carinho e guardava o presente. Ainda hoje tenho alguns. Mas, quando achei que já entendiam, logo os fui alertando para a conveniência de protagonizarmos o amor em família, de uns pelos outros, e a amizade com os nossos amigos, sem a preocupação de dar ou receber prendas. Lá lhes fui dizendo que as melhores prendas somos nós mesmo quando nos sentimos bem junto uns dos outros, familiares e amigos, e procuramos estar atentos e disponíveis para, em todas as situações propícias, fazermos o bem sem olhar a quem.
A sociedade actual evoluiu para um consumismo desenfreado que usa as pessoas e é muito eficaz em transformá-las em motivo de mais e mais consumo, dando e recebendo tralha, a maior parte das vezes de fraco préstimo, a qual se acumula sem beleza nem função e acaba, em tantos casos, no lixo.
Tudo serve como pretexto para comprar coisas. O comércio é muito hábil e por isso se sucedem os dias mundiais para tudo e mais alguma coisa, a que se somam aqueles dias comemorativos de outras culturas que zelosamente copiamos e em que as escolas se empenham eficazmente como talvez não devessem: veja-se o caso do “halloween”!
Quanto aos dias mundiais de qualquer coisa, e exceptuando aqueles que justificadamente ganharam significado cívico ou político, ao ritmo a que as coisas levam, já tenho gracejado que, dentro em pouco, não vão chegar os dias do ano para todos os motivos fúteis que se querem comemorar. E, nessas alturas, sugiro mesmo que se passem a utilizar meios-dias comemorativos, que é uma boa forma de, por saturação, fazer com que as pessoas deixem de lhes ligar, como, de resto, já vai sucedendo com certos dias disto e daquilo, e ainda bem.
Hoje, adultos, os meus filhos sabem como sou e respeitam-me assim. E isso agrada-me, tanto quanto me agrada pensar que quanto menos bugigangas sem préstimo receber menos contribuo para a saturação de resíduos do planeta e para a exaustão dos seus recursos.
Aos meus alunos (também) procuro transmitir a mesma ideia, e não posso dizer que boa parte deles não seja receptiva.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 15 de março de 2017

“ARRIBA” versus “FALÉSIA” e outras considerações a propósito

Para o geógrafo ou para o geólogo o termo “arriba” designa os escarpados menos ou mais elevados,
Arriba Fóssil da Costa de Caparica
próprios de margens de rios muito encaixados (por exemplo no vale do Douro Internacional) ou de litorais catamórficos (forma erudita de dizer que estão expostos à erosão das vagas), observáveis em grandes extensões da Costa Vicentina ou nos Cabos Espichel, da Roca e do Mondego. 
Podemos encontrar este mesmo conceito referido pelo termo “falésia”. Acontece que ambos os termos podem ser lidos tanto em textos científicos como em outros pedagógicos, de divulgação ou de ficção.
Arriba e falésia são duas maneiras de dizer a mesma coisa. Arriba é uma palavra antiga que fomos buscar ao latim “ripa”. Falésia é um aportuguesamento relativamente recente da palavra francesa “falaise”. Autores há que, numa atitude purista da língua, repudiam este último termo, apodando-o de francesismo desnecessário.
O meu professor Carlos Teixeira (1910-1982), grande referência no engrandecimento e valorização da Geologia em Portugal, senhor de uma linguagem escrita sem intenções ou preocupações de estilo literário, mas impecavelmente correcta, repudiava liminarmente o vocábulo “falésia” e riscava-o, nos muitos textos dos seus alunos e colaboradores, entre os quais me contei, que pacientemente lia e corrigia, ensinando-nos a escrever em bom português.
Também o Prof. Orlando Ribeiro, geógrafo e humanista de craveira internacional, senhor de muitos saberes, que expunha numa linguagem falada e escrita de invulgar correcção e beleza, não raras vezes poética, que marcou a minha maneira de encarar as ciências da Terra, a um tempo, naturalista e cultural, rejeitava, igualmente, o termo “falésia”.
Acontece, porém, que na toponímia oficial, a par de designações como “Arribas do Douro”, no Parque Natural do mesmo nome, no distrito de Bragança, e “Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa de Caparica”, conhecemos as de “Aldeia da Falésia” e “Praia da Falésia”, no Algarve.
Praia da Falésia
Uma atitude idêntica destes mestres tinha lugar face aos vocábulos “barranco” e “ravina”, duas formas de referir os sulcos menos ou mais profundos escavados pela enxurradas pluviais nas cabeceiras dos cursos de água. O mesmo se passando com os termos derivados “abarrancado” e “ravinado” e “abarrancamento” e “ravinamento”.
De origem pré-romana, barranco (ou barroca) é palavra popular autóctone adoptada no vocabulário geográfico e geológico. À semelhança de falésia, ravina entrou-nos por aportuguesamento do francês “ravine”, num testemunho da francofonia que foi tónica no nosso meio académico nos anos que antecederam o último quartel do século XX.
Neste período áureo da penetração da inteligência gaulesa na nossa vida cultural e científica, em particular no ensino superior e na investigação científica, a língua de Molière dominava nos compêndios e manuais de estudo. Porém, os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) deram hegemonia ao inglês, situação que se tem vindo a acentuar com a globalização de múltiplos sectores da actividade dos povos deste planeta já referido por alguns por “aldeia global”. No léxico geológico assisti à invasão de vocábulos como riple, rifte, silte, gnaisse, grauvaque, loess, intertidal, e muitos outros, por aportuguesamento de termos anglo-saxónicos e, por falta de termos nacionais, à adopção pura e simples de termos estrangeiros, como “horst”, “graben”, “iceberg”, tsunami”, “terra rossa”, “raña”, “palygorskite”, entre muitos outros.
Praticamente, todos os dias a nossa língua vê o seu léxico aumentado por via dos progressos científicos e tecnológicos. Eu próprio criei, em 1988, o neologismo “exomuseu” incluído na expressão “Exomuseu da Natureza”, designação ainda não oficial de uma estrutura museológica dispersa no território nacional, constituída por vários pólos situados onde quer que ocorram elementos considerados de interesse em termos de património natural, fazendo parte de um conjunto coordenado a partir de um ou mais centros com competências científica e pedagógica adequadas. Não constando ainda dos dicionários, o termo “exomuseu” existe nos protocolos assinados entre o Museu Nacional de História Natural e diversas Autarquias.
A miscigenação cultural decorrente da facilidade e rapidez das comunicações na sociedade cada vez mais mundializada é outra via para o dito aumento.
Não prescindimos hoje de palavras da nossa vida corrente como, por exemplo, “evoluir” “implementar” e “controlar”. E que dizer de “clicar” e de outros termos hoje habituais na sociedade das novíssimas tecnologias e da informática? 
A história ensinou-nos que quem faz a língua é quem a fala e escreve e estou em crer que todos estes e muitos outros termos, goste-se ou não, vieram para ficar.

Lisboa, 15 de Março de 2017

A. M. Galopim de Carvalho

domingo, 12 de março de 2017

A dependência de aplicações e instrumentos tecnológicos – telemóvel ou «telemodel»?

Imagem retirada daqui
As crianças e os jovens de hoje ficariam chocados se a sociedade retrocedesse à infância e juventude das pessoas com idade superior a cinquenta anos. Em termos cronológicos, não foi há muito tempo. No entanto, na rua ou em casa, na escola, no trabalho, nos espaços públicos ou comerciais, nos transportes, públicos ou privados, nos recintos desportivos ou nos templos religiosos, nas cidades e no campo, pessoa alguma há que (praticamente) não tenha sempre uma das mãos ocupada com um telemóvel. Pode admitir-se que há pessoas não largam aquele instrumento, excepto para dormir, mas mesmo aí esta asserção carece de certeza indubitável.
Nas escolas, em Portugal, foram notícia, por diversas vezes, agressões de alunos ou de encarregados de educação (ou de ambos) a professores que tentaram retirar telemóveis a alunos por uso indevido durante as aulas (brincando, recolhendo som, fotografando ou filmando para partilha em tempo real ou posterior, etc.). Nessas situações, perante o confisco do apetrecho, os jovens e os seus pais, quase instintivamente, reagiam de modo furioso e violento como em tempo algum se viu. Professores houve que, impressionados com as reacções que poderiam advir, cedo puseram de parte a possibilidade de tocar em qualquer instrumento tecnológico dos alunos. Mesmo quando alertados para o facto de certos jovens, até com o telemóvel no bolso, serem capazes de digitar mensagens, adoptaram a posição de, em caso algum, exigirem a sua entrega, até por também saberem que há meninos que trazem consigo mais do que um. Mais comum passou a ser a exigência de que, durante as aulas, o telemóvel esteja recolhido, e que, nos dias de teste, cada aluno coloque o seu junto dos demais sobre uma mesa, próxima da secretária. Esta medida não previne tudo, mas não oferece resistência violenta e não dá azo a resultados que suscitem batota em escala detectável.
Claro que houve professores que desenvolveram estratégias para o uso do telemóvel durante as aulas, mas não é fácil adaptar todas ou a maioria das lições a metodologias desse tipo. Por demonstrar está também que estas práticas tenham vantagem sobre outras, menos tecnológicas, na aprendizagem.
Refira-se que o telemóvel passou a ser um instrumento que dá para milhentas coisas, até telefonar. Nas redes sociais, em jogos, em consultas e pesquisas diversas, na obtenção e troca de imagens (fotografias ou outras), na leitura de jornais e de notícias avulso, no envio de «mails» e de mensagens curtas, só com abreviaturas, os dispositivos electrónicos de comunicação tornaram-se apêndices do corpo e da personalidade, transformando cada humano num ser biónico, que só se sente existir se «ligado à máquina». E, quando «ligado à máquina», desliga-se quase automaticamente até dos que tem ao lado.
É tanto assim que é vulgar ver famílias à hora das refeições em que cada um come enquanto olha e interage com o «gadget» que tem numa das mãos ou sobre a mesa. Como se estivesse, e está, sozinho.
Porém, não (me) parece uma questão de moda. Será talvez um meio de fugir ao contacto e ao confronto ou pelo menos ao convívio real com o próximo, mesmo quando fisicamente ao lado, o que pode exponenciar enormemente o isolamento e a solidão de cada um.
Como será dentro de duas ou três décadas? 

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 3 de março de 2017

As pedras

Extracto de um texto intitulado «As pedras e as palavras», amavelmente cedido pelo Professor Galopim de Carvalho. Por motivos de extensão, fragmentou-se o texto, optando-se por publicar primeiro a segunda parte - «as palavras» (em 22 de Fevereiro), e (só) agora a primeira parte, relativa «às pedras»  (como se comprova, a ordem de publicação dos extractos não perturba nem a harmonia nem a pertinência do seu conteúdo)

As pedras, modo mais popular de dizer as rochas, com as quais convivi profissionalmente durante mais de meio século, contam-nos a história do nosso planeta. Através dos seus minerais, da textura e de outros atributos falam das causas que lhes deram origem, das condições ambientais (pressão, temperatura, quimismo) em que foram geradas ou transformadas e muitas delas, ainda, da data do seu nascimento. São elas que conservam no seu seio os fósseis, testemunhos preciosos que nos permitem contar a história da Vida. 
Sem que muitos deem por isso, as pedras ocuparam, desde sempre, um espaço importante no nosso quotidiano. Nas suas cavernas, os nossos antepassados da Idade da Pedra encontraram abrigo e segurança e foram pedras as suas primeiras e as mais importantes matérias-primas. As pedras fortificaram os castros da Idade do Ferro e ergueram castelos e palácios ao longo da História. Estão nas choças dos primeiros povoados e fizeram a monumentalidade de assírios, egípcios, gregos e romanos, bem como a do Renascimento e do Barroco. Estão nas calçadas e pavimentos que pisamos e na estatuária de todos os tempos. Estão no ferro, no cimento, na brita e na areia do betão e, ainda, na cal que alveja o casario alentejano e algarvio. Estão nas amplas vidraças e nos caixilhos de alumínio da moderna arquitectura urbana. Fornecem todos os metais com que se constroem navios, comboios, aviões, automóveis e naves espaciais e estão na base de todos os electrodomésticos. Estão na televisão, no computador e no telemóvel. Estão nas baixelas e nas loiças de cozinha, nas jóias, nas fibras sintéticas, que tomaram o lugar do linho, do algodão, da seda ou da lã, e no silicone dos implantes em medicina reconstrutiva. Do sílex e do bronze dos primeiros machados à pechblenda (o mineral de onde se extrai o urânio e suporta a terrível ameaça nuclear), passando pela pederneira de mosquetes e bacamartes e pelos pelouros de catapultas e bombardas, as pedras foram e são uma constante na tenebrosa e altamente proveitosa (para os chamados “senhores da guerra”) indústria bélica, um flagelo que, numa caminhada de centenas de milhares de anos, sempre acompanhou a humanidade. No seu inesgotável engenho, o homem retirou das pedras todas as matérias-primas com que fez o progresso em paz, mas também, desgraçadamente, a guerra.

A. M. Galopim de Carvalho