sábado, 20 de janeiro de 2018

Conhecimento básico e qualidade de vida

Imagem colhida neste sítio
A formação dos indivíduos e a sua preparação em domínios básicos do conhecimento científico alteram para muito melhor a qualidade de vida das sociedades, seja em termos de satisfação pessoal no dia-a-dia, seja em poupança económica, seja na saúde e na prevenção de acidentes, não raro mortais. Por isso reputo de fundamental a aprendizagem escolar, entendida no sentido (mais clássico) da aquisição de conhecimentos teóricos e da sua (conveniente e necessária) aplicabilidade prática concreta.
Lembro-me do cuidado de um colega estudante universitário, já quase licenciado em matemática, para que tinha uma inclinação notória e um gosto especial, que conheci quando fui morar para uma residência de estudantes, ao tempo em que também eu andava na universidade, sempre que o frio o obrigava a ligar à tomada eléctrica um irradiador de resistências: o seu medo era que o aparelho ligado lhe consumisse o oxigénio do quarto, motivo por que abria a porta ou uma fresta da janela. Espantado, disfarcei como pude e tentei explicar-lhe que o calor proveniente das resistências ao rubro não correspondia a uma combustão e que, por isso, era infundado o seu receio. Não me adiantei no esclarecimento do que é uma combustão e da propriedade comburente do oxigénio. E pareceu-me que não o convenci…
Imagem retirada daqui
De outra colega com quem partilhei a cozinha de uma casa, quando ambos iniciávamos a vida de professores, recordo a sua preocupação de que a panela ao lume do fogão (a gás) fervesse sempre a bom ferver, para o que mantinha a boca no máximo, o que exigia que estivesse sempre alerta para que a água em alta ebulição não saltasse da panela e apagasse a própria chama. Um dia tentei dizer-lhe que, estando o cozido em franca fervura, fenómeno que ocorria a uma dada temperatura, não valia a pena gastar mais gás, com a boca no máximo, porquanto aumentava o consumo, sem aumentar a temperatura de cozedura, e aumentava também o (meu) trabalho a arrumar a cozinha no final (erro meu, porque, nabo em culinária, já nessa altura me remetia às tarefas de limpeza e arrumo após as refeições, condição que não contribuía para valorizar o meu «estatuto» e, por consequência, a minha opinião…).
A algumas pessoas de família procurei (com diplomacia…) convencer de que o zelo em lavarem a boca e escovarem os dentes antes de tomar o pequeno-almoço, não o fazendo a seguir, era um trabalho incompleto e mal feito, tal como se lavássemos as mãos antes de ir à casa de banho e não depois. Se «sujamos» os dentes ao comer é imediatamente depois disso que os devemos lavar, para que não fiquem «sujos» e para evitar que a fermentação dos restos produza ácidos que os vão corroer. E aqui tive sucesso. Também os meus filhos entenderam, aceitaram e praticaram isso desde sempre, com a mesma receptividade e concordância que sinto nos alunos quando tenho oportunidade de lhes falar nisso.
Imagem obtida aqui
Um fenómeno que me impressiona, especialmente quando vem de pessoas cultas com formação universitária é a convicção de que, tendo bebido às refeições, é possível escapar à eficácia dos balões das polícias na estrada. Com uma crença inabalável, referem mais do que um modo de escapar à detecção, por exemplo mediante a prévia ingestão de café sem açúcar, que «corta o álcool», dizem! Acabrunhado, discordo com suavidade, referindo, quando me é dada a oportunidade, que o álcool absorvido para a corrente sanguínea é eliminado fundamentalmente por  metabolização no fígado, que é a via principal (90%), e pela contínua evaporação nos pulmões (motivo por que as pessoas embriagadas cheiram a etanol) e alguma excreção renal e pelo suor, donde não haver maneira de iludir a sua presença no organismo… Mas é desconfortável desdizer as “certezas” das pessoas, tanto quanto é gratificante a receptividade com que os alunos recebem esclarecimentos deste tipo.
E há mesmo situações que, de tão comumente esclarecidas, como em tempos foi feito com certos anúncios publicitários de prevenção em organismos públicos de comunicação social, espanta que continuem a verificar-se: é o caso daqueles que, tomando bebidas como o uísque, estão convencidos ou insistem em convencer-se de que, se lhe juntarem uma água mineral ou várias pedras de gelo, diluem o álcool e por isso lhes faz menos mal. Ora, como o álcool é muito eficazmente absorvido no intestino, todo ele passa para o sangue, quer tenha sido bebido mais concentrado ou mais diluído…
E há muitos, muitos casos parecidos, como a ideia de que um café «comprido» tem menos cafeína, ou que um acrescento de água na panela da sopa faz diminuir o sal em excesso que se lhe juntou, etc.
Infelizmente, erros como estes e outros, repetidos ao longo de vidas têm consequências severas na saúde, na carteira das pessoas, na economia do país e, tantas vezes, na própria vida. A prevenção de acidentes em casa ou nas estradas, e dos incêndios (na floresta, em espaços abertos como aconteceu num festival de Verão no início de Agosto de 2016, em edifícios onde funcionam associações, etc.) ou o cumprimento de certas normas de higiene pública e de ecologia, também passam por aqui, porque diminuem a ignorância e a inconsciência, vulgo irresponsabilidade, das pessoas, melhorando a percepção do perigo e do risco inerentes a certos actos e procedimentos.
Por isso, o papel da escola é tão importante, sendo erro indesculpável desvalorizá-la ou prejudicar a sua função.

José Batista d’Ascenção

domingo, 14 de janeiro de 2018

A prevenção de incêndios que (não) fazemos

No dia 07 deste mês, no jornal «Público», Frei Bento Domingues faz incidir o seu artigo habitual de domingo sobre a tragédia dos incêndios em Portugal. E fá-lo com muita clareza e pertinência, segundo julgo. Nesse artigo Frei Bento Domingues diz «voltarei ao assunto», motivo por que esperei pelo jornal de hoje, curioso sobre o tema. Mas aquele «voltarei» não indica quando, e o tema de que se ocupa nesta data é outro. Aguardarei.
Não deixo, no entanto, de registar o que, nesta matéria, propõe aquele membro do clero, tão sensível e preocupado quanto lúcido e prático. Depois de apelar a um envolvimento da igreja, de toda a igreja, a exemplo do Papa Francisco, nesse documento ecológico que é a encíclica Laudato Si (livro de leitura obrigatória para todos os professores de ciências naturais, em minha opinião), em que se acentua «a responsabilidade de todos no cuidado da Casa comum», Frei Bento Domingues pergunta, relativamente ao tema, que acções ou iniciativas desenvolve(ra)m os bispos nas suas dioceses, os párocos nas suas  paróquias e que fizeram os responsáveis pela orientação ecológica da catequese e quais são os programas dos colégios católicos, da Universidade Católica, dos movimentos diocesanos, da Rádio Renascença e das congregações religiosas, finalizando do seguinte modo:
«Aqui vai uma sugestão que precisa de diferentes desenvolvimentos. Começaria por desenhar, com alertas bem visíveis, em cada lugar, um mapa que assinalasse o que é urgente e possível fazer já, ao nível da prevenção, pelas próprias populações, com a ajuda do poder local, regional ou nacional, se for o caso. Nesta sugestão, ao referir em cada local, é para se ter, de norte a sul do país, todo o território marcado de tal forma que não se continue com a conversa fiada sobre o nosso crónico défice democrático. Como fazer? Voltarei ao assunto, mas a prática para que este texto aponta não precisa de esperar.»
A meio da semana, quarta-feira, dia 10, no telejornal do Canal 1 da RTP, pude ver e ouvir, de fugida, vários autarcas queixando-se do que entendem ser a transferência de responsabilidades do governo para si próprios, quando lhes falta dinheiro (sempre a mesma ideia, a de atirar dinheiro para cima dos problemas, que não é mais nem diferente do que o que inutilmente se tem feito até agora) e tempo. Acontece que os autarcas têm precisamente nesta matéria uma enorme responsabilidade que nunca vi nenhum assumir. E têm-na na sua condição de autarcas e na de membros formais dos organismos da «protecção civil» que, nas zonas do interior florestal, têm sido praticamente inúteis. Por outro lado, gastam-se enormes quantias em rotundas, não raras vezes enfeitadas com «obras de arte» de gosto questionável e dispendiosas, em festas mais ou menos comicieiras e excursões (gratuitas!) com os mesmos objectivos, mas não se limpam os matos que quase cobrem as habitações de velhinhos solitários e desprotegidos ou fazem de estradas e caminhos túneis de vegetação meia seca meia verde, à espera de uma chispa de lume… O papel destes autarcas deve (também) incidir no envolvimento e responsabilização das pessoas, designadamente os proprietários de fracções florestais ou de terrenos incultos próximos de habitações, nas acções de limpeza e no ordenamento que é preciso executar.
Na sexta-feira, 12, à noite, ouvi palavras do ministro da administração, na rádio Antena 1, referindo a necessidade de tempo (creio que falou em dois anos) para se fazer toda a prevenção desejável.
Nesta matéria convém que as populações sejam chamadas à sua imprescindível participação e que os autarcas, a «protecção civil» e o governo não se especializem em empurrar responsabilidades uns para os outros e que todos façam(os) alguma coisa mais efectiva. E não vejo nada de mais necessário do que proceder, primeiro, a acções de limpeza nos sítios identificados como mais perigosos e prioritários, ao uso de fogo controlado (que os bombeiros devem estar capacitados e autorizados a realizar), nos casos necessários, e depois, à actualização dos cadastros dos terrenos e ao ordenamento florestal.
Desgraçadamente, no próximo Verão o que ardeu no Verão passado não oferece perigo. Mas não podemos viver irresponsavelmente como o temos feito nas últimas quatro décadas. Tudo o que gastámos a tentar combater incêndios creio que daria para termos as nossas aldeias e cidades protegidas e tínhamos ainda a riqueza dos produtos florestais e da qualidade do ar e da paisagem.
Ainda vamos a tempo de fazer muito antes do Verão. Há muito que devíamos ter começado, mas cada dia que passa é menos um dia que temos para cuidarmos de nós e dos que hão-de vir.
Não nos resta outro caminho.

José Batista d’Ascenção

domingo, 7 de janeiro de 2018

Aqueles que partindo permanecem no íntimo de nós mesmos

Felizes os que na vida encontram quem lhes queira e faça bem sem que se descortine algum motivo especial para que isso aconteça. Eu também tive essa sorte: quando, no início da década de 80 do século passado chegava à universidade, em Coimbra, oriundo do interior profundo, metido comigo, e olhando à volta sem deslumbramentos, tão reconfortante como a amizade de uns quantos colegas de curso foi o carinho e protecção que logo senti em casa dos pais de uma querida amiga desde esses tempos, daquelas que o são para sempre. Refiro-me ao Senhor Hilário Figueiredo e à D. Elisa Rocha Assis, Figueiredo pelo lado do marido, que logo me «adoptaram», como fizeram com outros, ali vizinhos ou vindos de longe como eu.
O Senhor Hilário era um alentejano bem-disposto, de sorriso aberto, coração grande e gesto largo, incapaz de alimentar conversas sobre os defeitos de quem quer que fosse, na razão inversa das qualidades que sentia prazer em destacar. O gosto de sentar alguém à sua mesa, a amizade franca e a facilidade de conversar sobre quaisquer temas eram tão autênticos, envolventes e transbordantes que os convivas sentiam um à-vontade sereno e agradável e reconfortante a partilhar uma espécie de doce camaradagem. Para isso contribuía igualmente a D. Elisa, cozinheira de gabarito, muito atenta à mesa e ao prato dos comensais, que fartamente servia, acentuando sempre a frugalidade de cada um, mesmo quando já haviam sido servidos por ela segunda e terceira vez, como se adivinhasse quanto alimento pode caber na barriga de crianças em crescimento ou jovens de muita sustância. Então, quando chegavam as sobremesas, não havia glutão que não se desse por saciado.
Ao longo do curso, um grupo de seis colegas, três rapazes e três raparigas (a Cristina, a Teresinha, a Teresita, que o cancro nos roubou pouco depois da licenciatura, o Aires, o Licínio e eu – que saudades, queridos Amigos!) passámos a dar-nos bem e, aquando das provas de frequência e exames, combinávamos umas sabatinas, depois de cada um ter estudado sozinho as matérias, sendo que boa parte das sessões foram em cada da Cristina, ou seja, da D. Elisa e do Sr Hilário. Após horas de discussão das dúvidas de cada um, a maior parte das quais não eram comuns e por isso eram esclarecidas logo ali, por quem soubesse, para além do proveito do estudo e do prazer de estar juntos, nunca faltava a D. Elisa com os seus cuidados, fazendo-nos chegar tabuleiros bem recheados, à maneira de merenda ou ceia, se não descíamos nós, por insistência dela e do Sr Hilário, à mesa posta.
Por essas e por outras, muitas vezes me sentei à mesa destes meus amigos. Mas ali, o bom não era restrito às refeições. Eu era capaz de falar gratamente com aquele casal sobre qualquer assunto, de uma forma muito fluida e gratificante. E também podia ficar em silêncio sentindo o mesmo bem-estar, sem nenhuma contrariedade. Isso acontecia, por exemplo, quando ficava a ler os jornais, que, por sinal, eram exactamente os que eu gostava de ler, inteirando-me de notícias e reflexões pelo menor dispêndio.
Esses jornais morreram. Há anos morreu também o Sr Hilário, o que foi para mim uma perda imensa. Como precisava muito dele, esforcei-me por esquecer em que ano, mês e dia partiu e, quando voltei à sua casa, nunca referi a sua ausência, nem me demorei a senti-la, porque a D. Elisa, a Cristina, a minha querida amiga, sua filha, o marido dela, mais um amigo do peito que ganhei, e a filha destes, a Ana Rita, menina da idade do meu filho mais novo, fizeram sempre uma festa de cada uma das minhas visitas e estadias (não escrevo estadas…), sozinho ou com a minha mulher ou com a minha mulher e com os meus filhos. Naquela casa, em Santo António dos Olivais, em Coimbra, senti-me sempre invariavelmente muito bem, não sei se por ali poder ser profundamente igual a mim próprio e por me sentir tão estimado e acarinhado. A D. Elisa, então, tratava-me com uma veneração que, a meus olhos, nunca, em tempo algum, mereci. Com sinceridade, disse-lhe, mais que uma vez, que ela via em mim as qualidades que não tenho. E ela ignorava, simplesmente. Por via da sua casa, a minha estima alargara-se aos vizinhos próximos (à D. Fernanda e família, à D. Maria José e ao marido, o Sr Joaquim, à D. Rosa e ao seu marido, o Sr Manuel), pessoas bondosas que, penosamente, deixei de visitar. E ainda havia as crianças e jovens das suas casas, como o Huguito e a Raquel, a Belita e a Fernanda e a Manelinha, entre outros, que eram uma doçura e uma alegria, entrando e saindo respeitosamente mas sem cerimónia pela porta daqueles amigos, ora uns ora outros e por vezes todos.
Foram tempos. Agora, foi a vez de a D. Elisa partir. Sinto-me mais só. Tive sensação idêntica quando a minha avó materna morreu. A minha avó, como se dizia lá na aldeia, era minha mãe duas vezes e eu creio que era mais do que isso. A D. Elisa foi outra mãe que tive, já crescido.
Mas sou pessoa de sorte: pela insubstituível mãe que tenho e pelas outras mães que tive e que ninguém substituirá.
Guardo-as estremecidamente.
Obrigado. Para sempre.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O Bebedor de Horizontes

Livro três de «As Areias do Imperador», uma trilogia moçambicana, de Mia Couto

Na sequência do livro um, «Mulheres de Cinza», e do livro dois, «A Espada e a Azagaia», o livro três, «O Bebedor de Horizontes» completa a mais recente obra literária de Mia Couto.
O conteúdo geral versa sobre o fim do chamado Estado de Gaza, dirigido por Gungunhana, imperador dos territórios da metade Sul de Moçambique, às mãos de Mouzinho de Albuquerque, nos finais do século XIX (1895).
Este terceiro livro incide sobre a viagem de deportação de Gungunhana, com o filho, um tio e conselheiro, mais o cozinheiro e sete das suas (mais de trezentas!) esposas. Noutro local da margem do rio Limpopo foi preso outro chefe tribal, de nome Zixaxa, que é igualmente deportado com três das suas mulheres. A narradora é uma jovem negra, muito inteligente e belíssima, chamada Imani Nsambe, que havia estudado numa missão católica e que fala e escreve perfeitamente a língua portuguesa, tão bem ou melhor que qualquer distinto português. Por isso serve como tradutora das autoridades portuguesas, desde Mouzinho de Albuquerque aos comandantes dos navios da viagem de exílio. Esta viagem tinha por motivo exibir os prisioneiros, mostrando ao mundo que Portugal dominava efectivamente os territórios africanos, em tempos do ultimato de Inglaterra.
Imani Nsambe viaja grávida de um sargento português que fica em África. Tem apenas 15 anos. Nascido o filho, perde-o para a própria sogra, que lho tira como se fora seu por ser filho do seu filho (ainda por cima «clarinho!») e a mãe preta não ter quaisquer direitos sobre ele. Imani, mesmo grávida, é alvo e objecto dos apetites sexuais dos homens com quem viaja, que incluem o permanentemente embriagado, enlouquecido e impotente (!) Gungunhana (com intervalos de lucidez: «as batalhas ganham-se com armas. Mas as guerras ganham-se com mentiras» pág. 97) e um odioso sargento com poder e instintos cruéis. Mas também é admirada e respeitada, quer pelo capitão rival de Mouzinho de Albuquerque, quer pelo comandante do navio África, que faz a viagem de Lourenço Marques para Lisboa, que a estima com profundo carinho e amizade (escreve, este: «se não há futuro tornamo-nos iguais aos bichos. E não há melhor para as guerras que um bicho fardado de soldado.» (pág. 248). Imani terá uma vida longa, mas afastada do filho, e nunca mais vê Germano de Melo, que é o pai dele. Germano fez questão de ficar em Lourenço Marques, afastado da sua terra, da mãe, de Imani, e do filho de ambos e com as mãos decepadas por um tiro disparado pela própria Imani. Isso havia acontecido num gesto de desespero, para defender o seu irmão, um diminuído mental que seguia à frente de uma turba que marchava sobre o posto militar de Germano. Um acidente de tal monta não impediu a paixão de Germano por Imani e de Imani por ele. Imani regressa a África, primeiro deportada para S. Tomé, onde é posta a servir num bordel para o exército, seguindo, após 15 anos, para a sua aldeia natal. Decorrem mais 63 anos. Aos 95 está enlouquecida e irreal, tão irreal quanto o imaginário surpreendente das tribos africanas, seja na visão da natureza, no íntimo das pessoas ou na convivência entre elas e até no modo de encarar a crueldade e humilhação, para além da mera sobranceria comum nos seres humanos em posição dominante [numa carta, escreve Germano de Melo, sensível à africanidade …«os ingleses pensam de nós (refere-se a portugueses e italianos) aquilo que nós pensamos dos africanos.», pág. 125. Noutra passagem, é Imani que reflecte: «Sucede sempre assim, os humilhados acabam por ficar iguais aos opressores.», pág. 174].
A narrativa é toda ela incisiva e clara e fantástica e maravilhosa, até nas partes mais cruéis. E há valor histórico e factual, imerso no romance. E particularidades objectivas interessantíssimas, por exemplo: “No tempo das caravelas, não eram as tempestades mas as calmarias o que os marinheiros mais temiam. A região do Equador era rica em sol, mas pobre em ventos. Sempre que um navio se imobilizava, não eram apenas os alimentos que se deterioravam: a disciplina e o sentido de hierarquia também se degradavam. Havia que criar uma válvula de escape, uma espécie de carnaval em que todos podiam ser todos. Foi assim que nasceu o ritual da travessia do «espinhaço do Mundo».”, pág. 238.
Notável, a pena de Mia Couto, disseca e expõe a fundura da natureza humana, sem contemplações, nas suas grandezas e misérias, alargando e reinventando a língua portuguesa como mais ninguém nunca o terá feito [Diz uma das mulheres de Gungunhana: … “o vento canta. Porque já foi um pássaro. Em menina eu dizia que o vento «assopiava»”, (pág. 81). Noutra passagem refere-se: “Deve haver um sol dentro deste rio [o Tejo]. Só assim se explica a luz de Lisboa. (…) a cidade deveria chamar-se «Luzboa».” (pág. 261). Ou ainda, em fala de Imani no fim da vida: «Este meu corpo é feito de despedaços», pág. 363].
Ao lê-lo, sinto que se eu tivesse um prémio Nobel da literatura corria a entregar-lho e a agradecer-lhe por, a meus olhos, há muito o merecer. É claro que este meu sentimento pode ser criticável tendo em conta que há muitos bons autores de língua portuguesa que nem sequer li, outros que dificilmente vou ler e também outros que deixei de ler. Mas estou à vontade, por não vir daqui nenhum mal ao mundo – é apenas um sentimento meu e ponto. Mas não digo ponto final, acalentando a esperança de que lho atribuam, algum dia.

José Batista d’Ascenção

Adenda: Este resumo é nada comparado com o livro. Por isso me alarguei um tanto, sem receio de que a alguém bastasse para economia de esforço: o que seria um erro estúpido, felizmente improvável, tão pequeno é o número dos que o hão-de ler.