quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Pessoas que não contam

Nascido no interior da “zona do pinhal”, na Beira Baixa, as minhas idiossincrasias têm âncoras na vida dura daquelas serras e vales, desde menino, na década de 60 do século passado, até hoje. Certo que, pré-adolescente, saí de lá, mas foi ali que sempre tive o coração, mesmo quando admiti que a ligação podia estar algo atenuada. Esse vínculo parece fortalecer-se agora, ante o peso da idade e a nostalgia das memórias que o tempo não apagou, particularmente quando, retornado às origens, dou largas ao impulso irreprimível e correspondido de abraçar sentidamente os da minha idade ou mais velhos com quem convivi.

Naquelas terras, leis e governos, em geral, não são tidos como factores ou agentes de protecção de quem muito trabalha e sofre e tem de seu apenas o magro fruto de labor porfiado em anos sucessivos, incluídos os que emigraram e tiveram (algum) sucesso ou nem tanto.

O pasmo ante e após o inferno das chamas seca lágrimas e protestos e interioriza um sofrimento indizível de quem sabe que está só, à mercê de um Deus nunca renegado, mas que parece indiferente às suas preces.

Pessoas curvadas ao peso da vida, isoladas, com os descendentes longe, presas às casas e às terras em que progridem silvas e mato, que só o fogo ceifa, lutando até ao limite das capacidades no amanho de porções de terra cada vez mais diminutas e próximas da porta, resistem a partir para os lares onde sabem que vão esperar a morte breve. Enquanto se mantêm nas suas casas, muitas com carências de toda a espécie, continuam a poupar tanto quanto podem, porque sempre procederam assim, na ideia de fazer face a alguma despesa inesperada no futuro. As rugas sulcaram-lhes a face e o corpo, perderam os dentes, têm pretas as margens das unhas e vestem trapos humildes, mas há nelas (nelas, realce-se, porque são na maioria viúvas de idade avançada) a dignidade de não reclamarem contra a vida que vive(ra)m.

Poucas e silenciosas, o seu voto não tem qualquer peso, pelo que as políticas são ausentes ou negligentes, e a solidariedade entre umas e outras não lhes apaga as dores da alma. 

Impotente, como as gentes da minha terra, dedico-lhes estas linhas, em jeito de pequenina homenagem.

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Um país para queimar

A floresta do nosso país parece não ter futuro. Há dias, na rádio, ouvi alguém dizer que as nossas reflorestações são plantações de paus de fósforo. Assim parece, há décadas, com o advento da democracia (que não temos dignificado) e o êxodo do “interior” para o litoral. O nosso interior é um conceito curioso, porque fica, todo ele, a menos de 200 km em linha recta do mar. Multiplicaram-se estradas que haviam de ajudar a fixar pessoas no bucolismo rural e o efeito foi um acréscimo de abandono de courelas, rebanhos e hortas. Ao mesmo tempo fechavam-se centros de saúde, postos de correios e agências do banco público. Matérias-primas e produtos que chegam a essas zonas são pagos a preços acrescidos das despesas para os fazer chegar lá. Ou seja, não só deixou de haver condições como se paga mais para viver nos montes, sejam os mais agrestes do Centro e Norte ou as aplanações do Alentejo.

Os nossos deputados, governantes e líderes partidários, na imensa maioria, não estiveram nem estão à altura. Muito dificilmente se pode aceitar que sejam os melhores de nós.

Recentemente li que os aviões que combatem os incêndios cobram 35 mil euros à hora. Seja o número mais ou menos exacto, dá a ideia de que nem todos perdem com a tragédia ígnea de todos os Verões.

Os nossos cumes topográficos vão-se tornando nus e rochosos, despidos de quaisquer árvores. E isso significa menos consumo de dióxido de carbono (CO2), menos produção de oxigénio (O2), menor biodiversidade, menor libertação de vapor de água para a atmosfera, mais elevação das temperaturas médias e… mais incêndios. Em lugar da floresta restará o "verde-eucalipto", empobrecedor de solos e pessoas e enriquecedor das empresas de celulose.

E se em vez de empréstimos de fundos fôssemos pelo estrangeiro pedir que nos governassem?

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Géneros masculino e feminino e o que não cabe num nem noutro

Pescoço "alado", característica de
pessoas com síndrome de Turner

Os meus avós maternos tinham uma horta primorosa, onde também havia uma capoeira com algumas galinhas. Lembro-me de, criança, me deter frente à rede a reparar num exemplar que não era fêmea nem macho. A ave cresceu com as outras, mas ficou sempre diferente: nem pôs ovos nem cantou de galo. Os meus avós chamavam-lhe “galela”. Vim a saber que o termo não era deles. A “galela” foi uma curiosidade que acabou numa caçarola, dado que, para esse fim, tanto fazia. Mais tarde fiquei a saber que fenómenos dessa natureza também afectavam ovelhas e cabras, e que, para as pessoas rurais, isso não era uma realidade estranha.

Aquilo ficou-me. Entre 1980-85, na Universidade de Coimbra (UC), o meu professor de genética clássica, Montezuma de Carvalho, havia de elucidar nas suas aulas várias anomalias cromossómicas do par sexual nos humanos, comummente XX nas mulheres e XY nos homens: a monossomia X (X0), causadora da síndrome de Turner; a trissomia XXY, que origina a síndrome de Klinefelter; a trissomia XXX; a trissomia YYX; etc.

Aquele professor, que era uma personagem curiosa, acabou por nunca mostrar no meu núcleo de estágio pedagógico a carta com a cunha para Oliveira Salazar ser admitido na UC, que um dia (nos) “prometera”. Em compensação, certa vez, trouxe-nos um gato bebé só com um olho no centro da testa – um ciclope – que, havia décadas, conservava em formol.

Nesses anos, por mais do que uma vez me referiram que determinada pessoa, também estudante, a que chamavam «Paulinha», não era o que parecia em matéria de sexo. Nunca troquei com ela qualquer palavra nem lhe percebi qualquer gesto ou atitude que denunciasse algo fora de comum. Duvidei até, admitindo que fosse boato, e nunca teci comentário algum com ninguém, apenas me interroguei sobre a concretização da matéria das aulas do Prof. Montezuma.

No campo desportivo, o caso da atleta sul-africana, Caster Semenya, recordista de velocidade, não me deixou surpreso, vi-o como confirmação da complexidade da Natureza e da ignorância humana.

Enquanto professor (do ensino secundário), ao longo de quase quatro décadas, tive conhecimento de dois casos de alunos(as) intrinsecamente desconfortáveis com a sua identidade sexual, e num deles, fosse como fosse, era recorrente a fuga das aulas de educação física, particularmente dos balneários. Nunca soube se, no que sentia, pesaria mais a insatisfação pessoal ou o medo da reacção dos colegas.

Nas aulas de biologia, sempre que a matéria fazia parte dos programas, fiz esclarecimento de casos típicos, discuti-os seriamente com os alunos e nunca foi difícil mostrar-lhes que a lotaria hereditária poderia ter conferido, com maior ou menor probabilidade, a qualquer um deles ou aos seus familiares, havidos ou a haver, amigos ou conhecidos alguma das situações analisadas. O objectivo foi sempre o de focar a importância de reconhecer que o património genético de cada qual não foi escolhido pelo próprio, donde é preciso sensibilidade e um profundo respeito por todas as situações, mormente as que, de há muito, estão tipificadas. Respeito, repito, que é mais fácil quando a escola ensina, como devia.

Já as tentativas de forçar gramáticas que contemplem a panóplia imensa de casos, traduzida em siglas e palavras supostamente inclusivas, deviam ceder prioridade ao estudo, ao conhecimento e à ponderação, tornando claros e comuns os conceitos da ciência, como factores de prevenção de eventuais catalogações espúrias, segregacionismo e intolerância.

José Batista d’Ascenção