sexta-feira, 28 de junho de 2019

Quando a lei não cumpre a lei

Fonte da imagem: aqui.
«Uma portaria [é um] meio pelo qual se faz em Portugal tudo [o] que é contra a lei expressa» (1).

À parte a lei fundamental, obra de constitucionalistas dignos do nome, é legítimo que nos interroguemos sobre quem são verdadeiramente os autores de muitos normativos legais em vigor, tal é a protecção que conferem a grupos interessados e a conveniência/versatillidade de interpretações a que os causídicos os podem sujeitar, normalmente em benefício dos poderosos. Até parece que a redacção foi entretecida por aqueles a quem as ditas leis deviam impor limites e cumprimento escrupuloso.
Além do mais, as disposições de muitos diplomas legais, no nosso país, vão sofrendo modificações e acrescentos tais, em entorses sucessivas, de tal sorte que as pessoas comuns não lhes podem perceber o rigor de sentido e de justiça. Acresce o palavreado, naturalmente juncado de termos legalistas específicos, supostamente cultos, cujo objectivo (mais) parece ser a opacidade da letra da lei.
Emanadas (há quem sugira «em manadas») as leis das instâncias próprias, não basta a sua extensão e número, há que acrescentar-lhes o carácter (deliberadamente) impenetrável e mesmo (intencionalmente) obscuro (diz-se que havia um ministro de um qualquer governo, de um qualquer país que, antes de publicar qualquer decreto, mandava chamar a sua «eminência parda» e perguntava-lhe se o documento já estava suficientemente confuso para ser publicado). É (ou parece ser) num mundo deste tipo que muitos dos fazedores de leis e dos seus aplicadores fundam o seu (elevado) estatuto e acautelam as suas fontes de rendimento. Faça-se aqui um parêntesis, para ressalvar aqueles que põem a ética acima das conveniências pessoais, que sempre os há, embora nem sempre se dê por eles.
Há ainda aquelas leis que são de aplicação impossível. Existem mas não são levadas a sério, nem pelos cidadãos nem pelas autoridades nem pelos… legisladores.
E temos também os representantes políticos do povo, que podem dedicar muitas horas a interrogar poderosos eventualmente prevaricadores, em sessões desprestigiantes, porquanto os deputados deviam dedicar-se mais à feitura de leis claras e aplicáveis, tratando do poder legislativo, como lhes foi confiado, em vez de se ocuparem em longas sessões «tribunalícias» para o que lhes falta(rá) preparação, com as consequências de desautorização e desprestígio dos poderes formais, deles e dos agentes de justiça, e de irresponsabilização e impunidade de grandes criminosos, alguns no desempenho (ou pós-desempenho) de gradas funções políticas.
Ora, a política e a justiça deviam ser entre nós, e cada uma por si, um bocadinho mais sãs. Distintamente mais.

José Batista d’Ascenção

(1) In: Júlio Dinis. «A Morgadinha dos Canaviais». Livraria Civilização Editora. Porto. 1999. Pg 79.
[Romance publicado pela primeira vez em 1868, sob a forma de «crónica da aldeia»]

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Carta breve e piegas ao filho de um jovem casal de emigrantes portugueses, e meu neto

Nosso menino:
Vemos os teus olhos curiosos no visor de um telemóvel e comovêmo-nos com a tua perplexidade momentânea aos «olás» e «adeuses» que não podemos reprimir. A avó é a que mais se esforça e persiste, ao contrário de mim que, tal como tu (suponho), logo me canso da insuficiência da coisa. É melhor que nada, mas não deixa de ser quase nada…
A distância conta, isso é lá muito longe - que largo é o Atlântico! -, num país que tem um chefe que é um mentiroso compulsivo e sem escrúpulos, que não inspira qualquer confiança, e que, por mandar no mundo, faz com que apareçam (ou se manifestem abundantemente) outros como ele, por esses continentes fora… A democracia, que tu aprenderás o que é (e praticarás, espero eu), é muito frágil (como as crianças da tua idade…), e é preciso grande cuidado para que não fique (excessivamente) doente. Mas isto não são conversas para aqui e agora. Tanto mais que os seres humanos nunca foram melhores do que são hoje (ora essa, além do mais existes tu e outros meninos como tu, pelo que a esperança é funda, hás-de percebê-lo e, sobretudo, senti-lo…), nem a actualidade é pior do que qualquer época anterior (antes pelo contrário, e com pedido de desculpas aos meninos que não podem ser meninos e aos pais que não têm a felicidade de os fazer crescer e viver com pão e em paz como é direito deles e dos seus meninos…). Nós os adultos, meu filho, somos frequentemente umas desgraças, mas também não faltam exemplos nobres e belos e inspiradores. A sério. Desculpa não poder fugir a isto, que não é o que eu queria pôr na carta.
Pois estás crescido e bonito. Começas a aprender o mundo e é um gosto ver-te: levantas-te e agarras-te ao sofá com as duas e depois com uma só das mãos e ficas de pé. Olhas e procuras com os olhos quem esteja por perto. Sorris. Agitas o corpo e parece que esperas algum aplauso ou estímulo. A mãe está lá e continuas confiante. Sim senhor, doze meses são já muitos dias de progressos notáveis. Os teus dois dentes de baixo dão-te enorme graça, quando ris, e os de cima não têm papel menor no enlevo com que te olhamos. Não falas ainda, mas o teu palrar e as tuas expressões são muito claras e algumas facilmente entendíveis. Não tardará havemos de ouvir-te. Mexido estás também. E atento. E curioso. E perscrutador (aquela de espreitares para o lado de trás do pianinho, como que a inspecionar de onde viria o som, é muito engraçada – vimo-la vezes repetidas, mais a avó do que eu (diga-se), mas, confesso, que me deve dar a mim tanta vontade de a (re)ver como a ela. Só que não tenho tanto jeito assim para estar sempre com o telemóvel na mão. Havias de ver…).
Mas estás muito longe. Longe. Faltam ainda umas semanas para vires até nós. Ando a dizer a mim próprio (não o disse a mais ninguém) que é preciso não te abraçar tanto e cobrir de beijos e de atenções e de palavras, que te fartes tu… (além de não ser conveniente). A mãe é cuidadosa nisso, sabe estar próxima, sem estar sempre «em cima» de ti, mas nós resistimos mal e não se sabe qual é o pior. Eu digo que é a avó, mas, no fundo, não tenho a certeza… E também é preciso não te empanturrar com comida, nem te dar coisas cheias de doce, etc. Havemos de portar-nos bem, creio. Se preferires, não me importo que comas sentado num dos meus joelhos ou nos dois. Também não me importo de ficar contigo enquanto todos forem para a praia apanhar banhos de sol e de mar. Tu ainda tens muito tempo para isso, e a mim já me basta. Vamo-nos entender e não te hás-de dar mal (também acompanhei o teu pai e o teu tio, assim pequeninos, e saímo-nos bem, eu e eles). Mas só se gostares. Eu gosto, só de pensar nisso.
Fico (ficamos) à tua espera. Até lá vou (vamos) olhando para o telemóvel. Não ligues à leveza desta conversa, que só existe porque me foi necessário.
Hoje, especialmente para ti: um grande beijinho e um abraço: dois: muitos.
Da avó e do avô.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 13 de junho de 2019

O amor que não temos pela língua portuguesa

Os portugueses em geral não consideram a sua língua um bem maior (o mais precioso dos instrumentos) do seu património sociocultural. O mal afecta quase todos, dos populares a alguns eruditos. Veja-se a facilidade com que as autoridades políticas interferem nas regras da ortografia: no século XX fizeram-no legalmente várias vezes: na reforma de 1911 (pelos vistos necessária…), alterada por portaria em 1920; surgiu polémica no Brasil; primeiro acordo ortográfico entre Portugal e Brasil em 1931; dúvidas na academia das ciências em Lisboa; alterações em Portugal, em 1940, com base nos trabalhos anteriores (de 1911, 1920 e 1931); discrepâncias também no Brasil; convenção em Lisboa em Dezembro de 1943 a confirmar o acordo de 1931; novo acordo em 1945, que o Brasil não aplicou; mais mexidas em Portugal em 1973; e «Novo Acordo Ortográfico» em 1990, ratificado na Assembleia da República em 2008 (dados colhidos no «Ciberdúvidas»). Com uma tal frequência, a próxima mexida não deve tardar e não será para melhor (que, em meu entender, seria voltar ao que estava antes da última alteração). Parece que um dos motivos fortes dos entusiastas que se lançaram no «Acordo Ortográfico de 1990» seria o esforço de uniformização da língua entre os países de expressão portuguesa, especialmente entre Portugal e o Brasil. Ora, no que respeita ao português de Portugal e ao português do Brasil, segundo «Maria Regina Rocha, havia 2691 palavras que se escreviam de forma diferente e que se mantêm diferentes (…), havia 569 palavras diferentes que se tornaram iguais (…) e havia 1235 palavras iguais que se tornam diferentes. Está a ler bem: com o Acordo Ortográfico, aumenta o número de palavras que se escrevem de forma diferente!» (1). E agora, para além de países como Angola e Moçambique, que não ratificaram o dito «acordo», é também o Brasil que pondera revogá-lo… Que se ganhou com isto?
Outra tendência nossa, que vejo como um complexo cultural, é a opção por palavras e expressões estrangeiras, sobretudo da língua inglesa, como se não houvesse termos equivalentes (e melhores) em português. A imagem, que copiei da página do «facebook» do Professor João Alveirinho Dias, é elucidativa. Mas, atenção, também há quem se esforce no sentido de aportuguesar os estrangeirismos que usamos de modo corriqueiro, não sei eu com que grau de sucesso. É o caso da escritora Luísa Costa Gomes, na (sua) obra «Olhos Verdes». Na edição que tenho entre mãos, da colecção «Mil Folhas» do jornal «Público», de 2002, tomei nota dos aportuguesamentos, por vezes curiosos, feitos pela autora. Seguem alguns exemplos: butique (p. 132); clouseape (p. 109); cofiteible (p. 92); crol [natação] (p. 103); disaine (p. 13, 45, 74, 76, 127); flache (p. 87,129); frilance (p. 72); kê-ó (p. 126); leiaute (p. 109, 119); luque (p. 71); marquetingue (p. 76, 88, 89, 99, 120); obi (pp 82); ol [de entrada] (p. 83, 133); paiete (p. 185); pedigri (p. 27); quiqueboxingue (p. 110); stendebai (p. 61); teicofe (p. 44); toquechô (p. 187); tualete (p. 114, 132); zepar (p. 188); zepingue (p. 110, 111).
E, francamente, gostei. Para além dela, serei o único?

José Batista d’Ascenção

(1) In: «Por Amor à Língua». Manuel Monteiro. Ed. Objectiva. Lisboa. 2018. Páginas 151 e 163.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Condicionantes da qualidade de vida dos portugueses

Índice de desenvolvimento humano (dados de 2017, publicados em 2018).
Portugal ocupa a 42ª posição. Fonte: Wikipédia
Para além dos excessos alimentares referidos em textos anteriores (aqui e aqui), há muitos outros factores - culturais, sociais e económicos - que prejudicam seriamente a qualidade de vida dos cidadãos portugueses, tais como:
- a fraca condição económica, o mau governo (da elaboração das leis à sua execução) e a injusta distribuição de rendimentos, que coloca grande parte da população em dificuldade para suprir as despesas inevitáveis com alimentação, vestuário e calçado, energia eléctrica, rendas ou prestações da habitação e, pior ainda, para despender com a fruição de tempo de descanso e de lazer ou de enriquecimento cultural proporcionado por viagens, espectáculos, aquisição de livros, etc;
- a ignorância e a indigência cultural, agravada pela frequência de uma escola indisciplinada, mistificadora e grandemente ineficaz, principalmente na capacitação dos meninos provenientes de meios (mais) pobres, que ficam arredados dos mecanismos que funcionam como «elevador social», reproduzindo, ao invés, muitos dos condicionalismos dos seus pais e avós;
- a insuficiência da prática de exercício físico, quando não o mais drástico sedentarismo, que acorrenta corpo e espírito de jovens e adultos aos quilogramas acumulados, baixando a autoestima, prejudicando a relação do próprio consigo mesmo e com os outros e desencadeando doenças que cedo poderão ser incapacitantes, além de consumirem, aos pacientes e/ou às suas famílias, recursos em medicação, acompanhamento e reabilitação, quando possível…;
- fraca resistência de um número significativo de crianças e jovens a hábitos prejudiciais e dispendiosos como os do tabaco ou do consumo de álcool, que as famílias, primeiro, e a escola, depois, não conseguem prevenir tanto quanto seria desejável;
- formas culturais e tradicionais de machismo e autoritarismo, nalguns casos sob um «verniz» de «boas maneiras» que não resiste à constatação de muita (da) violência doméstica (e dos seus efeitos visíveis…), da (tão escandalosa como frequente e tolerada) violência no namoro ou do que se vê nas chamadas «praxes» dos jovens que frequentam os estabelecimentos do ensino superior;
- a falta de confiança no «sistema de justiça», na equidade do «fisco» e no procedimento recto das «forças de segurança», a que se somam a burocracia e precariedade da «segurança social» e a falta de prontidão e eficácia da «protecção civil»;
- a falta de qualidade de alguns meios de comunicação públicos (como a RTP), pagos com o dinheiro dos contribuintes que difundem sobretudo o que o mau gosto dominante prefere e o que os interesses da publicidade ditam.
Neste estado de coisas, 45 anos após o 25 de Abril, uma grande responsabilidade recai sobre os actores políticos, passados e actuais, da democracia portuguesa. Que o mesmo é dizer, sobre os cidadãos que os elege(ra)m.

José Batista d’Ascenção

sábado, 1 de junho de 2019

Excessos alimentares dos portugueses

A roda dos alimentos (fonte da imagem: aqui)
Contrariando as possibilidades, os portugueses alimentam-se mal, sobretudo por excesso, com consequências directas na saúde e na qualidade de vida, no rendimento no trabalho, nas despesas pessoais e nos gastos avultados do sistema nacional de saúde. Pode-se dizer que exageramos em número e variedade de excessos, entre os quais se contam:
- o excesso de sal, que influencia a excreção (com retenção) de água no organismo (porque a função renal é afectada), de que resulta sobrecarga do aparelho circulatório e hipertensão;
- o excesso de açúcar, factor de obesidade e diabetes (de tipo II) e incremento de doenças cardiovasculares, de cáries dentárias, etc. Muitas pessoas (talvez mais as senhoras…) ingerem compulsivamente doces e chocolates, e muitas crianças iniciam-se (ou são iniciadas, no meio familiar…) no mesmo vício, sendo que, crianças e jovens, associam-lhe ainda, vezes demasiadas, altos consumos de bebidas refrigerantes, também elas riquíssimas em açúcar. O que significa que não (nos) basta o mal do presente, fomentamos também aquelas doenças nos adultos de amanhã…;
- o excesso de gorduras, que contribui igualmente para a obesidade e doenças do coração e da circulação. Mas as gorduras não são todas iguais: as menos saudáveis são as saturadas, quer as provenientes dos alimentos (carnes, leite e queijo gordos, salsicharia e charcutaria…) quer as que resultam de fritadas sucessivas ou sobreaquecimento de gorduras saudáveis (quimicamente insaturadas). As gorduras saudáveis podem provir de peixes como a sardinha ou o salmão, do azeite extra-virgem ou do óleo de soja ou de frutos como nozes ou avelãs. As gorduras saturadas incrementam o (mau) colesterol circulante e estão na origem de depósitos nas artérias responsáveis por doenças como aterosclerose, AVC e enfartes. Quando as gorduras comuns (triglicerídeos) são aquecidas a alta temperatura, durante as frituras, um seu componente (o glicerol) altera-se e forma-se acroleína, substância produzida em pequena quantidade, mas tóxica e potencialmente cancerígena;
- o excesso de proteínas, que, provindo fundamentalmente da carne, a qual contém outros nutrientes, como as gorduras, se associa às doenças vasculares e obesidade, mas está especificamente na origem de problemas metabólicos de resíduos azotados, como a «gota» (algumas especificações sobre o assunto, escrevi-as aqui). Um regime mais vegetariano (herbívoro, se usarmos o conceito ecológico), de acordo com a roda dos alimentos, traria não só mais saúde, como poupança económica para as famílias e era ambientalmente mais sustentável;
- o excesso de aditivos químicos como conservantes e/ou corantes, alguns deles propensos a desencadear alergias e podendo outros ser cancerígenos.
- e o consumo excessivo de álcool, a droga mais consumida no país (talvez mais pelos homens…), porque «bem aceite» social e legalmente, e que provoca incapacidade progressiva da saúde física e mental dos indivíduos dependentes, até à degradação total, causando também profundas disfunções familiares e sociais.
Temos muito a fazer, os serviços de prevenção primária e as escolas. Há trinta e cinco anos, o programa de Biologia do 9º Ano de Escolaridade dedicava várias horas à alimentação racional. De então para cá regredimos. E no interior das escolas, as máquinas de venda de água, contida em plástico, de sumos e de doces, assim como a permissão da instalação de lojas onde se vendem esses produtos à porta dos estabelecimentos de ensino não ajudam nada.
E não tinha que ser assim.

José Batista d’Ascenção