sexta-feira, 10 de junho de 2022

A generosidade dos simples

 

Por várias vezes ali passo, à hora de almoço. Outras tantas fico uns minutos a olhar aquela humilde vitrina, imediatamente ao lado esquerdo do nº 101 da rua de S. Vítor (Braga). A essa hora, aquela porta, de uma limitada loja de sapateiro, está fechada. Então digo de mim para comigo que devia ir lá de propósito, um dia, para enaltecer a ideia e encorajar a prática de uma generosidade que não apouca ninguém e poderá resolver problemas a muitos. Eventualmente cada vez mais, já que os preços não param de subir, ao que dizem por causa da guerra de invasão da Ucrânia, o que parece explicação curta para os aumentos semanais desproporcionados dos combustíveis e o noticiado aumento chocante dos lucros das petrolíferas.

Ora, num país em que um quinto da população é pobre, e em que os governos, sejam quais forem, não conseguem alterar essa estatística vergonhosa (não sei se por incapacidade se por falta de vontade, que - diz-se - com a pobreza do povo podem os governantes bem), poder comprar calçado por 3, 5 ou 10 euros, é capaz de evitar que algumas pessoas andem descalças ou com sapatos esgaçados ou rotos.

Suponho que aquele sapateiro procede assim: recebe calçado que mereça arranjo, de quem o queira oferecer, compõe sandálias, sapatos ou botas e coloca-os à venda por um preço acessível a pessoas de fracas posses e que lhe permite a ele não trabalhar de graça.

Sou tão aproveitador dos meus velhos sapatos, que seria vergonha levar-lhos para os compor condignamente para alguém. Mas nada me impede de chegar à fala com senhor, só para lhe dizer do meu apreço e da minha gratidão. Eu, que ainda posso comprar sapatos.

 José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Maiorias esmagadoras

Há em mim o fascínio das palavras. Das suas raízes, da sua grafia, da sua sonoridade e das relações com outras palavras. Há-as que se me afiguram elegantes, bem casadas com o seu significado “objectivo” ou sugerido ou hipotético. A essas, sinto-as em si mesmas como palavras felizes, mesmo que refiram ou traduzam sentimentos dramáticos. Outras há que não me parecem do mesmo modo. Umas e outras, porém, cumprem a sua função e eu chego a pensar que um escritor ou falante perfeito, para além da boa gramática, nunca usaria ao acaso qualquer sinónimo, porquanto cada palavra tem no discurso uma pertinência que não caberia com a mesma adequação em qualquer outra que a substituísse.

Vem isto a propósito de uma expressão muito usada em política, e não apenas, que sempre me causou reticências – a de “maioria esmagadora”. Ou, como também se diz e escreve: “esmagadora maioria”. Para mim é uma qualificação negativa em discursos que se têm por democráticos. Maioria é maioria. Tão só, o que vale por si. Bem gostaria eu que qualquer maioria política, partidária ou outra, dotada e cumpridora de princípios sãos, fosse respeitadora, disponível, acolhedora, serena, magnânima e generosa, o que a tornaria uma maioria ideal.

Agora “esmagadora”! De quê ou de quem e porquê?

José Batista d’Ascenção