quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O ódio aos livros em regimes totalitários

Da leitura do livro «Fahrenheit 451», de Ray Bradbury, da «Colecção Mil Folhas», editado pelo jornal «Público», em 2003, em que se imagina uma civilização futura altamente tecnológica mas ditatorial, onde as casas são ignífugas (resistentes ao fogo), pelo que os bombeiros se dedicam a queimar livros em todas as habitações onde se suspeite que possam existir, prendendo os donos, para que aquele regime totalitário possa «garantir a felicidade dos seus súbditos», ocorreu-me alinhar uma série de citações, resultando um texto que é naturalmente da minha responsabilidade.
Num tempo em que a leitura mais reflexiva passa ao lado de um número extraordinariamente grande de pessoas, mais dadas à fugacidade das imagens e das frases curtas e sonantes, parece-me que temos muito a ganhar com o regresso sereno e calmo à (ou ao refúgio na) sabedoria dos bons livros. Vamos a esse texto:
«Primeiro, os livros apenas interessavam minorias, aqui e ali. Podiam permitir-se ser diferentes. O mundo era vasto. Depois o mundo encheu-se de olhos, de cotovelos, de bocas. A população dobrou, triplicou, quadruplicou. Os filmes, os magazines, os livros, foram nivelados, normalizados sob a forma de uma espécie de pasta de bolo. (pg. 57)
[…] O homem do século XIX, com os seus cavalos, os seus cães, os seus comboios; lentidão do movimento. Depois a aceleração, a câmara. Os livros resumidos. As condensações, os digests, os gráficos; tudo subordinado ao mote, ao fim percutante. […] Os clássicos reduzidos para compor emissões de um quarto de hora na rádio, cortados de novo para darem extractos de dois minutos de leitura, enfim, arranjados para um resumo de dicionário de dez a doze linhas. […] Para muita gente, Hamlet era apenas um resumo de uma página, num livro que declarava: “Finalmente todos os clássicos ao seu alcance; o seu nível de conhecimentos igual ao do seu vizinho” […] Da sala das crianças ao colégio e do colégio à sala das crianças. Eis o traçado da curva intelectual para os últimos cinco séculos. (pgs 57-58)
[…] Resumos de resumos. Resumo de resumo de resumos. A política? Uma coluna, duas frases, um título! E tudo se volatiza no ar! 
[…] Vive-se no imediato. Apenas o trabalho e, após o trabalho, a dificuldade de escolha de uma distracção. (pg. 58)
[…] O fecho éclair substitui o botão, pois o homem não tem tempo para reflectir nem para se vestir, de manhã. Não há hora de filosofia, nem hora de melancolia.
[…] A vida torna-se uma imensa glissagem. [manobra de aeronaves com o fim de aumentar a razão de descida] (pg. 59)
[…] Multipliquem as fitas desenhadas, os filmes; o espírito tem cada vez menos apetites. A impaciência, as auto-estradas percorridas por multidões que estão aqui e ali, em todos os sítios, em parte nenhuma. Os refugiados do volante. As cidades transforma-se em albergues de automobilistas. (pg. 60)
[…] Quanto maior é a população mais numerosas são as minorias. É preciso cuidado para não pisar os amigos dos cães, os amigos dos gatos, os médicos, os advogados, os comerciantes, os patrões [..] Todas as minorias com o seu umbigo bem limpo. Autores cheios de maus pensamentos fechem as vossas máquinas de escrever. E eles fizeram-no. […] Não é de admirar que os livros deixem de se vender, diziam os críticos. Mas o público, sabendo o que queria reagiu sem medo e deixou sobreviver os comic-books. E as revistas eróticas em três dimensões, naturalmente. (pgs. 60-61)
[…] Formando os estabelecimentos de ensino cada vez mais corredores, saltadores [em Portugal, suponho, não seria bem isto…] oportunistas, intrujões […] e assim sucessivamente, em vez de professores, críticos, sábios, artistas, a palavra “intelectual” tornou-se, bem entendido, a injúria que merece ser. Tem-se sempre medo do insólito; lembras-te do garoto que sabia sempre a lição, que se punha sempre à frente para responder enquanto os outros, sentados como ídolos de chumbo o odiavam? Não era esse brilhante indivíduo que vocês escolhiam sempre para espancar e troçar, depois de horas de estudo? Claro que era. Devemos ser todos parecidos uns com os outros. […] Assim, toda a gente fica satisfeita. Já não existem montanhas para esmagar os vizinhos e provocar comparações. (pgs. 61-62)
[…] As pessoas querem ser felizes. […] Não velamos nós para que estejam sempre em movimento, sempre distraídas? Não vivemos senão para isso, para o prazer, para a excitação?
[…] O ambiente familiar pode minar o ambiente escolar. Foi por essa razão que baixámos progressivamente a idade do jardim de infância e vamos agora buscar as crianças praticamente ao berço. (pgs. 62-63)
[…] [Não querer] saber o como, mas o porquê das coisas pode ser muito incómodo. A gente interroga-se sobre o porquê das coisas e, se insiste, podemo-nos tornar muito infelizes.» (pg. 63)
[…] Encham os homens de informações inofensivas, incombustíveis, que eles se sintam a rebentar de “factos”, informados acerca de tudo. Em seguida, eles imaginarão que pensam e terão o sentimento do movimento, enquanto realmente apenas se arrastam. Serão felizes […] Não os levem para terrenos escorregadios como a filosofia […] em que tenham de confrontar a sua experiência. É a fonte de todos os tormentos. (pg. 64)
[Uf!, finalmente, os aspectos redentores] O que [a personagem principal do livro] procura [espalhar livros, ou seja, o conhecimento] encontra-se no mundo, mas a única possibilidade para um homem de o conhecer noventa e nove por cento, é abrir os livros. (pg. 90)
[…] Todos devemos deixar qualquer coisa atrás de nós, ao morrermos. Um filho, um livro, um quadro, uma casa, uma parede, um par de sapatos. Ou ainda um jardim plantado de flores. Qualquer coisa que a mão tocou e para onde irá a alma no instante da morte. (pg. 152)
[…] Conserva sempre o espanto nos olhos. Vive como se fosses morrer dentro de dez segundos. Olha o mundo. Ele é mil vezes mais extraordinário que todos os sonhos que se podem fabricar em série» […] (pg. 153)
E no fim, neste livro, os livros salvaram-se. Amemos os livros.

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

A curiosa «realidade» das crianças

Quando os meus filhos eram pequenos passei com eles longas horas: em casa, na prestação dos cuidados de que necessitavam, nos encontros familiares, com avós, tios e primos, e em passeios pequeninos, em que lhes fui mostrando a cidade em que cresceram e os seus arredores, ou em férias e passeios por esse Portugal fora, a fim de que conhecessem minimamente o país que é o seu. Tive, por isso, o privilégio de acompanhar o seu crescimento e de observar os seus comportamentos e reacções afectivas, bem como as asneiras e os «acidentes» que caldearam o percurso das suas vidas até serem adultos. E, não raro, deliciei-me com a maneira como viam o mundo à sua volta, fosse a realidade física, fosse a «psico-sociologia» dos crescidos. Opostamente, também houve momentos ou alturas em que as acções dos adultos lhes causaram viva impressão (ver figura). 
Certo dia, à mesa, convidei o mais velho a provar uma deliciosa feijoada para que ele olhava sem entusiasmo, enquanto mascava sem vontade uns quaisquer flocos instantâneos. À sua recusa firme, com receio de me desagradar, seguiu-se imediatamente um gesto de ternura e, olhando-me nos olhos, disse-me com a maior doçura: - Olha, pai, se eu gostar eu provo, «tá bem»?
Outra vez, no cimo de um miradouro de onde se contempla a cidade e se pode ver o mar, no horizonte, este mesmo filho, atirava pequenas pedras ao ar. Ao recomendar-lhe cuidado, não fosse alguma cair-lhe em cima (naquela zona, sem pessoas, não havia perigo de atingir alguém), perguntou-me: - Se eu atirasse uma pedra muito muito alto podia partir o céu?
Noutra altura, viajávamos pelo litoral oeste, nas proximidades da Praia de Santa Cruz, e parámos para ver o sol, disco vermelho, a escapar por detrás do oceano. Enquanto apreciávamos as belas cores do ocaso, comentei como era fácil perceber ali a esfericidade da Terra e, a brincar, disse-lhe: - Vês, o sol não toca na água, está lá muito looonge! Ao que tive resposta lapidar: - Claro que não toca na água, senão apagava-se!
Em ocasião diferente, este meu rapaz, bem pequenino ainda, num fim de tarde, quando o fui buscar ao jardim infantil, no percurso a pé para casa (a escolinha era ali ao lado), não foi capaz de esperar mais um pouco, para me perguntar com grande ênfase: - Pai, como é que nós sabemos qual é a nossa equipa?, querendo com a sua pergunta significar opção clubística. Não sabendo o que responder, diferi a resposta para quando chegássemos a casa e, enquanto comíamos alguma coisa de merenda (não ele, por um lado porque já tinha comido na escola e, por outro lado, porque a sua urgência naquele momento não era alimentar…), não achei melhor que falar-lhe da possível beleza do futebol, servindo-me do que sabia de um grande futebolista português chamado Eusébio. Devo ter sido esclarecedor, tal foi a atenção do meu ouvinte. Só era preciso saber bem qual tinha sido a equipa desse jogador fabuloso. Lá lhe disse. E foi assim que o menino arranjou clube, definitivamente, sem nunca esmorecer no seu entusiasmo.
Anos mais tarde, em conselho familiar, decidimos ir ver Braga do ar, numa avioneta de aluguer que descolou e aterrou no aeródromo de Palmeira. E lá fomos, a mãe, os filhos, o mais novo com três anos, talvez, e eu. Dadas umas voltas sobre a cidade, todas as vistas nos pareceram muito curiosas e agradáveis: a geometria dos grandes edifícios e dos quarteirões, os telhados vermelhos, os campos de milho das imediações e até um ferro-velho, visto lá de cima, nos pareceu bonito. Tudo muito harmónico e interessante. A seguir, mais umas voltas sobre Guimarães e a mesma impressão e o mesmo agrado. Depois a Póvoa de Lanhoso e idênticas sensações, mas só até ao momento em que, sobre o monolítico do Castelo, uma rabanada de vento abanou a aeronave, produzindo uns sons de tábuas a bater que me provocaram severo estremecimento interior acompanhado de auto-censura, em que pensei para mim próprio: - Estúpido, se esta coisa cai, morre a família inteira! E então, senti uma mãozinha leve e afável sobre um dos braços e uma voz meiga: - Pai, não tenhas medo. Eu estou aqui!
Estávamos todos. Dali a Palmeira foram apenas uns minutos. O triângulo aéreo fechara-se, descemos e regressámos confortavelmente a casa.

José Batista d’Ascenção

domingo, 27 de agosto de 2017

Saudade – um mistério sem grande mistério

In: «A Obsessão da Portugalidade» de Onésimo Teotónio Almeida (págs 223-226)

«A palavra é hoje tão sinónimo de Portugal como o galo de Barcelos. E não menos arbitrariamente. […] Se calhar os portugueses, por razões diversas, tiveram inúmeras oportunidades para sofrer de saudades, a começar com as ausências prolongadas dos navegadores de Quatrocentos. Mas não podemos afirmar isso ao de leve, sem estabelecer comparações: os espanhóis, por exemplo, dispersaram-se igualmente pelo Globo e não criaram um termo equivalente com tanto peso. Os ingleses, um século e tanto depois, espalharam-se também pelos mares e continentes, aliás como os holandeses, e nenhum desses povos cunhou uma palavra única para expressar os sentimentos dos ausentes da pátria quando dos seus se lembravam, ou destes quando sentiam a falta dos embarcadiços. Quer dizer: são as culturas que criam os termos, os mantêm e desenvolvem, vá lá alguém saber exatamente porquê. […] E porque [os portugueses] concentraram as diversas facetas dele [do sentimento de saudade] num só vocábulo, ele ganhou mais força por uso repetido, adquirindo, pelo menos desde o rei D. Duarte um estatuto especial. Entretanto, ao uso sobreveio o abuso, a ponto de Fernando Pessoa chegar a falar de “a saudade do que nunca houve”.
[…] Ora, em semântica é regra fundamental que o significado é o uso. […] Para se saber o que significa uma palavra ou uma expressão, analisa-se o contexto em que é usada. E, santo Deus!, quão vastos são os contextos de «saudade» na nossa cultura. Usa-o o fado em letras sobre amores destroçados […]; usa-a um filho que chora a morte da mãe; como o usa um emigrante em carta para a família, ou um adulto revivendo os doces momentos da infância. Como resumir então, numa entrada de dicionário, o significado de um termo com tanta abrangência e com uma carga histórica assim pesada […], a ponto de um pensador e poeta lusitano, Teixeira de Pascoaes, ter afirmado que a alma portuguesa é «onticamente saudosa» (1). (Apetece perguntar se o Ronaldo em campo dribla e remata também com saudades, mas isso desviar-nos-ia […].)
É, pois, nessa polissemia desbragada do termo em tão variadas circunstâncias que ele adquire cargas semânticas [significados] cada vez mais intraduzíveis, porque em nenhuma outra língua um termo semelhante foi tão frequentemente utilizado para cobrir tão diverso número de situações.
Nada disto envolve qualquer magia; está-se apenas em presença de uma impossibilidade linguística de resumir tanta diversidade de usos e encontrar um equivalente em uma só palavra noutra língua.»

Muito claramente dito. Para aprender e ficar a saber (muito) mais há que ler o livro.
Obrigado ao Mestre.

José Batista d’Ascenção

(1) onticamente - de modo ôntico. Ôntico - relativo ao ser. In: dicionário Priberam

«A Obsessão da Portugalidade», Onésimo Teotónio Almeida

Por estes dias, terminei a leitura do livro «A obsessão da Portugalidade» de Onésimo Teotónio Almeida, publicado pela Quetzal, em Fevereiro deste ano. Em boa hora o li. O autor analisa diversos aspectos do tema com extrema clareza e rigor, dissecando resumidamente cada assunto com mão firme em manejo preciso e exacto do “bisturi”, que faz incidir aguda e objectivamente na tessitura das matérias, expondo, de modo irrefutável, algumas maleitas da clássica exegese lusitana sobre a portugalidade. De caminho, nota-se um sentido de humor próprio de quem vê largamente e por antecipação, face à realização do “puzzle” que vai executando com maestria. E ainda (me) permite o conhecimento de palavras (neologismos?...) que não devem pertencer ao léxico de muitos portugueses.
Foi tão grande o impacto recebido que não resisto à vontade de trazer aos meus “cantinhos da blogosfera” alguns pequenos excertos da obra. Claro que sendo eu a compor estes textos com as frases do autor, relativamente a algo que resulte menos bem ou suscite dúvida, a responsabilidade é (inteiramente) minha, o que é motivo acrescido para quem me ler consultar também o livro, com o que só tem a ganhar.

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Empresas públicas e empresas privadas – o caso dos CTT

Imagem obtida aqui.
Os CTT eram uma empresa pública que funcionava bem: servia diligentemente os cidadãos e era rentável – creio que o foi sempre.
Agora, os CTT são uma empresa privada que não recebe bem os clientes. Esta manhã, mais uma vez o comprovei: espera longa para muitas pessoas de várias idades, quase todas de pé, encostadas às paredes e aos móveis expositores de livros e outros materiais, por falta de bancos, e funcionários sempre aplicados, mas comprometidos e até desconfortáveis nas solicitações que são obrigados a fazer a quem atendem (para, por exemplo, recomendar a compra de bilhetes de lotaria!), desviando as pessoas dos motivos que ali as levaram e, porventura, fazendo-as perder mais tempo ainda com o que não lhes interessa ou nem teriam dinheiro para comprar.
Como sempre, fui atendido irrepreensivelmente ao balcão, mas esperei demasiado tempo para fazer coisas simples. Para coisas mais complexas já tenho razões de queixa dos próprios serviços prestados pela empresa CTT privada. E tenho saudades dos CTT eficientes, simpáticos e icónicos de quando eram um serviço público.
Para que conste.

José Batista d’Ascenção

PS: por motivos compreensíveis nesta altura, este espaço ficará silencioso durante a próxima semana.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Bons livros por preços módicos

Terminei há pouco a leitura do livro “A Guerra do Fim do Mundo” de Mário Vargas Llosa. Tinha esta obra em dívida, há muitos anos, e só agora cumpri o meu “dever”. É um romance do outro mundo: impressionante, empolgante, comovente, perturbador e… chocante. Só um génio arquitecta e desenvolve uma trama assim, densíssima, “matematicamente” articulada, com personagens arrepiantes e uma análise/exposição da natureza humana tão profundas quanto incomodativas.
O livro pertence à “Coleção Essencial”, editada pela Leya e pela RTP. Felicito ambas pelo esforço de colocar no mercado obras de referência de autores consagrados a preços (mais) acessíveis (10,00 euros). A tradução parece-me bem. Se a minha opinião interessasse recomendaria cuidado acrescido com a ortografia: na página 74, escreve-se «gado estraviado», em vez de «extraviado»; na página 76, está escrito «Monárquicos embuscados», em vez do correcto «emboscados»; e na página 346, escreve-se …«a viagem é tão cumprida»…, em vez de «comprida». Pode-se dizer que são três erros (em que reparei) em 620 páginas, mas são três erros ortográfios que estão a mais, numa obra tão extraordinária. Raras, uma ou outra imperfeição em construções frásicas (na minha opinião) não deslustram o imenso trabalho do tradutor (Salvato Telles de Menezes). Tratando-se da edição de livros cujo objectivo será levar a leitura a pessoas de menos posses, convém também que a escrita seja irrepreensível a fim de que todos a apre(e)ndam com o maior rigor possível.
A este propósito, convém não perder de vista que o «novo acordo ortográfico» cria por vezes situações indesejáveis, razão por que é preciso não esconder a cabeça na areia e rever aquele «acordo», a fim de eliminar as mais óbvias e inaceitáveis. Na obra «Os Buddenbrook» de Thomas Mann (tradução de Gilda Lopes Encarnação), da mesma colecção, na página 378, na primeira linha, escreve-se …«breves interruções»… suponho que por causa do dito «acordo». Isto são pormenores? São. Têm importância numa obra com 783 páginas? Sim, têm, como teriam em qualquer mensagem curta…
Sou bastante avesso a nacionalismos e regionalismos ideológicos (que não os culturais e tradicionais) e desconfio de certos ideais proclamados como «patrióticos», mas acalento a ideia de «mátria», no sentido em que a referia Natália Correia. Donde, roubando a ideia a Pessoa (heterónimo), digo a mim próprio que a minha mátria é a belíssima língua portuguesa, que me esforço por não maltratar.
Boas leituras.

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Apelo sentido aos bombeiros do meu país

Caríssimos bombeiros de Portugal:
Esta manhã, quando saí à rua, olhando além só via fumo. Minutos depois, ouvia notícias de mais de uma centena de pessoas deslocadas das suas casas, devido aos incêndios. Desde há semanas atrás carregamos o peso imenso da tragédia de Pedrógão. Em cada dia são inúmeros os focos de mais e mais fogos, sempre fogos, durante o Verão.
Caríssimos bombeiros: Aprecio imenso a abnegação e mesmo o heroísmo da vossa acção, mas desgosta-me viver num país assim. E não me conformo com a realidade que se agrava, de ano para não, ao longo de décadas, como se os portugueses não tivessem olhos para ver e cabeça para pensar. Creio que é manifesto que o modo como lidamos com a nossa floresta e enfrentamos a calamidade dos incêndios não resultam. E eu gostava que fossem os próprios bombeiros, pela voz de quem os representa, a afirmar perante os portugueses e a informá-los de que é preciso mudar muita coisa. Mudar a atitude dos cidadãos. Mudar (exigirmos que mude) a atitude dos autarcas locais (veja-se como não faltam milhares e milhares para tantos “outdoors” ridículos por essas 308 câmaras e 3092 juntas de freguesia fora…). Mudar a atitude das autoridades. Mudar a atitude das forças militarizadas. Mudar a atitude e a acção da protecção civil (que, a meu ver, ainda não merece o nome). E mudar também a atitude… dos bombeiros.
Caríssimos bombeiros, não me leveis a mal. Vós sabeis muito melhor do que eu que é preciso mudar e melhorar a vossa imprescindível acção, até para protecção das vossas vidas, de que tanto precisamos. Porque estais calados e quietos durante o Outono, o Inverno e a Primavera? Não é preferível identificar todas as áreas perigosas, especialmente na proximidade de povoações e casas e, durante as estações frias e de chuva, queimar preventivamente os matos que ardem horrivelmente no Verão? Esses matos podem ser queimados com preservação das árvores (vi fazer isso sob a orientação do meu falecido pai, quando era menino…). Os proprietários opõem-se? Talvez, mas nem todos e muito menos se oporiam se os bombeiros o propusessem. E se a legislação o permitisse. E se as autoridades assegurassem a possibilidade dessa forma de prevenção. Desse modo, os bombeiros seriam eficazes e mesmo eficientes, pois que o que se gasta em combustível, em mecânica e em novos veículos de combate ao fogo em cada Verão deve somar quantias astronómicas. Sem falar das vantagens ambientais, ecológicas e económicas e da poupança de tantas vidas, incluindo, naturalmente, as de bombeiros.
Era isto que queria dizer-vos. Calculo que não tenhais tempo nem paciência para me “dar ouvidos” por agora, tal é a azáfama. Nem no nosso país se costuma dar qualquer importância à voz isolada dos cidadãos. Mas muito gostaria que lá por Setembro e Outubro alguém de (entre) vós pudesse atentar no que singelamente escrevo neste momento.
Com o meu fraterno abraço.

José Batista d’Ascenção

domingo, 13 de agosto de 2017

Queimar o país - o país dos meus filhos, dos jovens e das crianças de hoje e do futuro

Destruímos a floresta, diminuímos a produção de oxigénio, aumentamos a concentração de dióxido de carbono atmosférico, porque, por um lado, este gás é produzido na combustão e, por outro, deixa de ser consumido pelas plantas no processo da fotossíntese (responsável pelo crescimento de toda a vegetação), contribuindo duplamente para o aumento de temperatura, quer derivado ao calor que resulta imediatamente do fogo quer devido ao aumento dos gases que, como o dióxido de carbono, retêm o calor na atmosfera (efeito de estufa). Diminuímos drasticamente a riqueza em madeira que poderia ter uso na indústria do mobiliário e outras, com reflexos negativos no emprego e na economia do país. Desfeamos miseravelmente a paisagem, eliminamos o conforto da sombra no Verão e o consolo para a vista e para a alma em qualquer altura. Afectamos muitas espécies vivas ou destruímos mesmo os ecossistemas. Os topos das montanhas são os primeiros a desertificar-se: após aos incêndios, as sementes que caem podem eventualmente germinar no inverno seguinte, mas se o fogo se repete, em anos sucessivos, à superfície só restará a rocha nua. Sem as raízes das plantas, o solo, mais ou menos espesso, sofre erosão, é arrastado pelas águas das chuvas e levado para as barragens, que ficam assoreadas. Estes solos, mais cedo do que tarde chegarão à foz dos rios e aos fundos dos oceanos, e deles não tiraremos qualquer proveito.
Entretanto, os habitantes que ainda restam no interior (é irónico: o nosso interior dista da linha de praia menos que duas centenas de quilómetros em qualquer ponto do país…), velhinhos a maior parte deles, vêem a destruição impiedosa da floresta, do cultivo das suas terras, dos seus animais, senão mesmo das suas casas e das suas vidas.
E contudo, não tinha que ser assim. A superfície florestal em Portugal é muito extensa e devia ser rentável ambientalmente, ecologicamente, socialmente e economicamente. Não o é por responsabilidade nossa, dos cidadãos em primeiro lugar e dos políticos, governantes e autarcas a quem não temos sabido exigir medidas. Com a tecnologia que existe, no mínimo, cortar mato, pinheiros e eucaliptos, obrigatoriamente, numa faixa de contenção suficientemente larga (100, 200, 300 metros?...) à volta de todas as casas e de todas as povoações, aldeias, vilas e cidades, e plantar nelas árvores menos inflamáveis (castanheiros, carvalhos, sobreiros, azinheiras…) ficaria seguramente mais barato do que os ineficazes e caríssimos sistemas de combate directo ao fogo que usamos todos os verões. E ordenar minimamente a floresta não é coisa que não saibamos fazer, há muito tempo…
Porque não o fazemos? É isto que não compreendo.
Às crianças de hoje e de amanhã apresento desculpas pela irresponsabilidade, incúria e incompetência dos portugueses adultos como eu.

José Batista d’Ascenção