sábado, 17 de junho de 2023

Previsões científicas e realidade

A meio da segunda metade da década de 70, o meu amigo Chico Agostinho, que ia mais vezes à capital do que eu, facultou-me o livro «A revolução biológica», de G. Rattray Taylor, jornalista britânico que o publicara em 1968. A sua leitura causou-me viva impressão, apesar de não alcançar plenamente, nem sequer entender suficientemente bem, o âmago de algumas das matérias abordadas. Mas o sentido fundamental, sim, esse julgo tê-lo captado na essência, o que aumentou as minhas perplexidades.

Os interlocutores com quem procurei abordar uma ou outra questão que se (me) levantara não comungaram do meu interesse. Tomei então a decisão de guardar o livro sem o perder de vista, os anos necessários, até a minha formação e a realidade me ajudarem nas respostas.

E esperei durante cerca de 45 anos. O que aprendi não resolveu o miolo das minhas dúvidas, mas o devir foi elucidativo, não dessas problemáticas, mas da ilusão dos sábios, que não se contêm na ribalta da fama que os arrebata.

Sorri com a afirmação de que em breve se pudesse comprar castidade na farmácia, assim como adquirir líbido (p. 48), com a prudência de não definir proporções entre as duas possibilidades.

Chocou-me que um vulto da ciência como J. B. S. Haldane tivesse sugerido a clonagem de centenários saudáveis. A sua ideia era que, depois dos 55 anos, os grandes génios passassem a educar os seus descendentes clonados (p. 29).

Pareceu-me bizarria destituída de senso a ideia de aumentar a inteligência de símios para os transformar em escravos, o que não passaria de uma “extensão do aproveitamento prático dos cavalos para sela e tiro” (p. 87). Ou adaptar braços de símio e cabeça de cão a um canguru, para criar um animal capaz de cobrir grandes distâncias num instante e de executar qualquer tarefa de destreza manual (p. 88). E por aí adiante, em mirabolâncias sobre transplantes de órgãos, controlo da memória e da inteligência ou prolongamento da vida (em 1966 um perito em cirurgia do coração da Univ. de Birmingham disse numa conferência que “alguns dos presentes viveriam até aos 180 anos” – p. 102). Até à eugenia humana e à criação de vida, temas tão delicados hoje como então, e que não cabem em abordagens ligeiras.

Horrorizei-me ao reler que em Seattle, em 1965, na Univ. de Washington, uma mulher que sofria dos rins foi ligada [pela circulação] a um canceroso, com o argumento de que cada um deles podia beneficiar o outro. Morreram ambos (p. 132). O mesmo senti com a referência à extracção do cérebro da caveira de um macaco para tentar mantê-lo vivo com circulação sanguínea artificial (p. 134).

Para encurtamento, finalizo, referindo que é de loucos prever que “em breve conseguiremos não só provocar a loucura, como curá-la” (p. 145). Para mais sabendo, com Erasmo de Roterdão, que «o número de loucos é infinito, [e que] este número abrange todos os mortais, excepto alguns que ninguém consegue encontrar» (in: Elogio da Loucura).

Não se pense, porém, que o livro é só disparates. Há nele muita biologia, bem fundamentada. E boa escrita. E humor.

Mas, em biologia, não podemos tudo, porque a biologia não permite tudo.

E ainda bem.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Agricultura «biológica» - a mistificação começa no nome (*)

O Professor Miguel Mota (1922-2020), insigne (e entre nós quase desconhecido) cientista, nos seus escritos, esclareceu meridianamente a inadequação do qualificativo «biológica(o)» aposto a qualquer tipo de agricultura ou produto obtido da prática agrícola.

Por mais químicos (de síntese industrial) que se usem, cereais, legumes, frutos, forragens para animais ou outros produtos agrícolas não deixam de ser o resultado do desenvolvimento de seres vivos, logo, biológicos. E as espécies agrícolas, sejam as seleccionadas ao longo de milénios ou as obtidas por transgenia, na actualidade, não são menos biológicas por isso.

O mesmo se aplica a animais, como se aplicaria a micróbios com metabolismo, bactérias, por exemplo (o caso dos vírus biológicos é mais problemático…).

Pensemos no caso das pessoas: poucas haverá que nunca tenham tomado quaisquer medicamentos, mas isso não altera em nenhuma delas a sua condição intrinsecamente biológica.

Por outro lado, a prática da agricultura, como a da jardinagem ou a da gestão florestal exigem de quem as tem ao seu cuidado enormes esforços e despesas “contra”… a Natureza. Se isto choca pense-se na rapidez com que certas espécies selvagens (ervas daninhas ou infestantes e espécies invasoras) muito rapidamente eliminariam as variedades cultivares de que nos nutrimos ou com que alimentamos os animais domésticos, que embelezam os espaços de jardim ou de que extraímos madeira, resina, cortiça, etc., se faltasse a acção permanente de hortelãos, jardineiros, couteiros, engenheiros agrícolas ou florestais e outros.

É assim. E, por extensão exemplificativa, passa-se o mesmo com a acção protectora das vacinas e dos antibióticos na prevenção ou no combate de infecções letais em animais e em seres humanos. 

Esclarecer isto não significa qualquer desvalorização da Natureza, muito menos a apologia das acções que a poluem e destroem. Antes pelo contrário.

Por isso, uma boa designação para qualificar uma agricultura amiga do ambiente seria, por exemplo, «agricultura ecológica».

Porque é de ecologia que se trata, antes que a degradação da Natureza trate de nós.

José Batista d’Ascenção

(*) Adenda: recomenda-se a leitura do artigo «Comer biológico “é uma decisão, não uma recomendação de saúde”», in: caderno P2 do jornal «Público» de 04 de Junho de 2023, p. 4-9.

sábado, 3 de junho de 2023

Verdade, beleza e bondade

Parece que Einstein entendia os conceitos de verdade, beleza e bondade (não por esta ordem…) como ideais «que iluminaram o seu caminho». Não é fácil discordar, e não apenas induzidos pelo reconhecimento da importância e da influência daquele génio.

A formulação é concisa, directa e geral. Mas é menos clara e muito menos objectiva na sua aplicação concreta do que pode supor-se.

O que é a verdade? Não é o mesmo para todos, sobre a maioria dos assuntos. E, no entanto, não há ética sem princípios que se aceitem como verdadeiros. Princípios, atitudes, procedimentos, opções, decisões. Os próprios factos são-no se os aceitamos (ou conseguimos ver) como tal: A Terra não é plana, mas os “terraplanistas” não aceitam esse facto!

Para o conceito de beleza, a destrinça é ainda mais problemática. A minha cultura e a minha educação determinam os meus padrões de beleza. Quando eu era menino (ainda) ouvia a pessoas mais velhas: «gordura é formosura». E hoje, quando me deparo com certas obras de pintura ou escultura do século XX, vejo nelas beleza ausente e arte nenhuma. É com certeza impreparação minha, mas não apenas (suponho), nem principalmente, em muitos casos.

A bondade é para mim um conceito aparentemente mais transparente. Mas qual é o grau de aparência? Não o sei quantificar. Conheci e conheço pessoas extraordinariamente bondosas. Mas essas não correspondem, em minha opinião, a “protótipos” frequentes. E, a meu ver, quem é bom ou menos bom razões há-de ter, conhecidas ou não, voluntárias ou involuntárias. E não se é bom (ou menos bom) sempre. Mandela ou Luther King foram sempre bons (por quaisquer critérios humanos)? Mais: era possível ou desejável que o fossem?

Seja como for, a tríplice fórmula “einsteiniana” é o melhor que se pode arranjar.

Se aspirarmos a ser verdadeiros e a conhecer a verdade, se apreciarmos e respeitarmos o belo e se nos esforçarmos por ser bons, «desde que haja saúde e paz, o resto a gente faz»; li este acrescente não sei onde, em entrevista a Alice Vieira.

E faz(emos) melhor.

José Batista d’Ascenção