segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Cabelos brancos

Habituamo-nos facilmente às modificações subtis que o espelho nos mostra fielmente todos os dias, mas em que, de ordinário, não reparamos (nem, talvez, queiramos reparar…). Quando nos encontramos com alguém que (já) não víamos há algum tempo – às vezes anos – frequentemente soltamos um «estás cada vez mais nova(o)» ou «o tempo não passa por ti», esperando porventura um cumprimento equivalente da pessoa com quem deparámos.

Creio que todos duvidamos da autenticidade do que pronunciamos e ouvimos nestas circunstâncias, mas seria uma falta de simpatia confrangedora não procedermos naqueles termos. Há «mentiras» necessárias, que confortam e não prejudicam.

Nada nem ninguém pode parar a seta do tempo. E em tudo e em todos ficam as marcas da sua passagem. É assim.

E, contudo, há pessoas a quem o devir acrescenta serenidade e bonomia, muito apaziguadoras de si e dos que as rodeiam ou com quem se cruzam. Mesmo em senhoras, que bem que ficam, por vezes, os cabelos brancos: as minhas colegas e amigas I. Mendes e H. Lobo são disso exemplo. A alvura crescente dos seus penteados assenta-lhes plácida e harmoniosamente. Ficam simples e bonitas. Eu gosto. Nos homens também pode ser assim, embora a careca, a meus olhos, não beneficie nenhum.

Que a velhice, tirando a maravilha dos netos, não traz nada de especialmente agradável. Se vejo mal, velhos ou novos que me apontem onde e em quê.

Mas a sabedoria e a bondade só alcançam verdadeira maturidade em que viveu muito. E não apenas por isso, a velhice é encarecidamente merecedora de respeito e veneração.

José Batista d’Ascenção

domingo, 20 de agosto de 2023

Ele, o mar

Fugido do calor e da secura do interior, reconfortado com os sorrisos (mesmo os mais tristes), as conversas e o carinho de tantos velhos e alguns novos, imersos no bastio de eucaliptedo que afoga a paisagem, desci ao sabor do mar imenso.

Chegado (ontem) à tardinha, fui ter com ele, o mar, já o sol se escondera por detrás da massa líquida. Um casal que restava aprestava-se a deixar a praia e, então, enquanto a Lurdes caminhava na areia molhada, primeiro para sul e depois para norte, sentei-me na cadeira (bastante cómoda) do banheiro e olhei-o de frente, ao mar, percorrendo a vista a 180º, para a esquerda e para a direita. Foram vinte minutos de brisa fresca, de cheiro a maresia, do som repousante das vagas mansas, de descanso da vista pelo longe, cada vez com menos luz.

Procurei não pensar em nada, só para repelir quaisquer pensamentos tristes, com ponderada isenção.

É bonito e diverso o nosso país. E agradável e sereno.

Nisto, o alerta da minha companhia e o escuro progressivo encaminharam-me para casa.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Aquém e além do Moradal

Sento-me à janela, na casa em que nasci, e demoro a vista nos contornos da serra que todos os dias olhei quando menino. Conheço-lhe o perfil quartzítico, de antes do espreitar do sol, que nasce entre os seus cumes, até ao findar do dia, à luz esmaecida do poente. É como se aquela montanha me conhecesse ou eu a sinto como se fizesse parte dela. A sua rudeza maciça e os gumes dos seus rochedos – “canchos”, no dizer dos antigos - resistentes à erosão, são de uma nobreza humilde e sólida, que nem precisava do monumento de Siza Vieira que lá se constrói agora.

Os rasgões na paisagem, em vertentes mais próximas, são recentes. Destinar-se-iam a um daqueles projectos megalómanos sem futuro nem respeito pela orografia e pela Natureza. As chuvas de sucessivos Invernos podem demonstrá-lo da pior forma, mas, se acontecer, ninguém será responsável… Dizem-me que já foi embargado. Eu pergunto-me como é que deixaram que acontecesse.

Escassas semanas depois dos incêndios de 2020, os eucaliptos vingaram-se, iniciando uma explosão de milhões de sementes que germina(ra)m em todos os espaços disponíveis. Uma asfixia, que não se vislumbrava (ainda) há quarenta anos. E que a violência das chamas ceifará, quem sabe se antes de estas árvores darem o primeiro corte, fonte de rendimento com que os residentes, apesar de envelhecidos e desesperançados, contam. É um fado. Uma “sina”, que até eu consigo prognosticar, desejando, porém, que a realidade (me) desminta.

Ocorrem-me pensamentos difusos quando, solitário, fico imerso nestas terras a que pertenço e que sempre transportei comigo, silenciosamente.

Aquém ou além do Moradal, esteja onde estiver, ou ande por onde andar, as minhas raízes são (d)aqui.

José Batista d’Ascenção

domingo, 6 de agosto de 2023

Em cem hectares cabem muitas árvores – haja delas bons frutos

A «Jornada Mundial da Juventude» promovida pela Igreja Católica, com a vinda a Portugal do Papa Francisco, que está em Lisboa desde a manhã de quarta-feira passada até ao fim da tarde de hoje, domingo, tendo-se apenas deslocado a Fátima na manhã de ontem, sábado, foi uma impressionante manifestação religiosa, mas também social e política. Nunca, em Portugal, em tempo algum, se juntou tanta gente, no Parque Eduardo VII e adjacências e, depois, no novo recinto preparado nas margens do Trancão, do lado de Lisboa e do lado de Loures.

Francisco é um colosso: como ser humano simples e bom, como homem de cultura abrangente e profunda e, naturalmente, como líder religioso. A sua capacidade de, aos 86 anos, envolver e entusiasmar os jovens, fazendo-os vibrar da forma mais fina e comovente é algo que nunca (eu) tinha visto.

Não creio que estes acontecimentos mudem o mundo, mas deixam marcas e têm consequências. E tudo se deve à hercúlea fragilidade de um Homem que soube sacudir e repelir as misérias da instituição que dirige. Os simples perceberam-no e apoiam-no. Os empedernidos da ortodoxia formal retraíram-se. A paz é mais verosímil no espírito de muitos, utópica que seja. E isso não é pouco.

E Lisboa e Loures ganharam um espaço maravilhoso que bem poderia reverter para os cidadãos, se betão e estruturas o não tragarem mais ou menos vorazmente. Em cem hectares cabem muitas árvores, as pessoas precisam de espaço livre, sombra, temperaturas amenas e oxigénio. E uma das capitais mais bonitas e luminosas do mundo e as áreas envolventes muito ganhariam em se repetir o aproveitamento que foi feito no local em que teve lugar a «Expo 98». Essa seria também a melhor forma de homenagear e de materializar as ideias do autor do melhor livro de ecologia que me foi dado ler – a encíclica «Laudato Si».

De boas árvores bons frutos.

José Batista d’Ascenção