terça-feira, 25 de julho de 2017

A desmesurada voracidade dos bancos. Como contê-la?

Imagem obtida aqui
Longe vão os tempos em que os bancos pagavam a quem lhes confiava as poupanças para eles lucrarem com a aplicação desse dinheiro. Agora, as pessoas que depositam dinheiro nos bancos quase não recebem juros, e pagam comissões diversas e desproporcionadas até pelo (suposto) trabalho de os bancos as cobrarem. E os depositantes vão ficando cada vez com menos. E pagando cada vez mais, cada vez mais… E o resultado final, consequência de negócios duvidosos, pode até ser a falência, com prejuízo total para… quem, de boa-fé, fez os seus depósitos.
Sobre parte destes assuntos li ontem na imprensa escrita (jornal “Público”) e pude ouvir (com interrupções), também na manhã de ontem, na RDP-Antena1. E não gostei do que li, mas gostei do que ouvi. Felizmente, começamos a ver cidadãos comuns que se preocupam e se manifestam veementemente contra o esbulho, por vezes criminoso, a que estão sujeitos. Esperemos que o ruído de tantos outros assuntos não oculte este tema, a que é preciso prestar a máxima atenção, por parte:
- dos cidadãos;
- das organizações que se dizem de defesa do consumidor;
- do regulador (banco de Portugal), o qual, nesta matéria, pelo que tem acontecido, não (me) merece confiança;
- do governo, em acções de âmbito nacional, sobretudo sobre a banca pública, como é o caso da CGD, e em toda a influência que possa ter internacionalmente (que o problema tende a ser global);
- do legislador, ou seja da Assembleia da República, que tem o dever de representar e proteger as pessoas.
É uma questão de dignidade fazer alguma coisa, muito especialmente em favor dos mais pobres, mais vulneráveis e mais indefesos.

José Batista d’Ascenção

domingo, 23 de julho de 2017

A racionalidade, a paciência, a persistência e a resiliência na superação de dificuldades

Christopher Froome, imagem colhida aqui.
Sem ser amante do ciclismo, tenho despendido algum tempo a olhar as imagens da Volta à França em bicicleta. Não tinha nem tenho qualquer preferência por ciclistas ou equipas, que conheço mal. Mas impressiona-me o vencedor da prova (virtualmente ainda, à hora a que escrevo), pela inteligência, atenção constante, planeamento e gestão da sua participação. Christopher (Chris) Froome não venceu nenhuma etapa, teve até uma saída de estrada numa das etapas, que o obrigou a maior esforço logo de seguida para recuperar uma posição conveniente, noutra etapa foi prontamente ajudado por um colega que lhe forneceu a roda traseira em substituição da sua, procedimento que é próprio, mas que exige frieza e gestão, e não se perturbou visivelmente nos dois dias em que foi interrompida a sua condição de “camisola amarela”. Vejo aqui um conjunto de lições.
Porém, antes da extracção dos ensinamentos, preciso referir que, a meu ver, as performances em provas desportivas individuais, incluindo as modalidades olímpicas, estarão, em geral, muito próximas dos limites que a fisiologia humana permite, logo, completamente fora do alcance de indivíduos normais. E suspeito até que haja provas, (e não só no estrangeiro: penso, por exemplo, se não há risco elevado para os ciclistas da Volta a Portugal, quando correm etapas de 200 km ou mais, com temperaturas de 35 ºC ou superiores), em que se está a exigir prestações que talvez sejam… desumanas. No caso da Volta à França, pedalar milhares de quilómetros, durante três semanas, e ganhar por uma diferença inferior a 60 segundos, não constitui para a minha razão qualquer diferença apreciável de qualidade entre o primeiro e o segundo lugar do pódio, e ambos os competidores mereciam igual prémio. Naturalmente, compreende-se que, se não houvesse vencedor, a competição perdia o interesse e frustrava a humana exigência de encontrarmos sempre o indiscutível campeão. É da nossa natureza.
Porém, se a diferença de qualidade dos ciclistas de maior potencial me parece tão pequena, por que é que um campeão como Crhis Froome repete essa façanha pela quarta vez? E é aqui que surgem as lições: não basta ter fortes músculos, ser um bom “trepador” ou melhor “velocista”, treinar e alimentar-se bem, ter a convicção e a consciência de que se é capaz, ter uma boa equipa, etc., – será preciso, para além de tudo isso, ser um equilibrado superior que, a todo o momento, estuda os adversários, considera as suas condições, atende a diversas variáveis, minimiza os pontos fracos e conjuga e potencia os aspectos fortes. E como somatório, talvez surja a vitória, se não houver concorrente que faça melhor toda essa conjugação ou tenha maior sorte, factor que também conta.
Daquelas lições faço uma extrapolação: em Portugal, embora tenhamos (e sempre tivemos) bons exemplos do que vale o empenhamento e a racionalidade, a vontade de aprender, o trabalho rigoroso, atempado e organizado, a dedicação e o gosto pelo que se faz, bem como a humildade de corrigir o que sai menos bem, no entanto, o que agora se chama a “eficácia e a eficiência” da nossa acção laboral, académica e social fica muito prejudicada. Parece-me também que o avanço que os países da Europa do norte nos levam em tantos domínios radicam em parte aí. Por outro lado, há em nós uma tendência grande para contarmos com a protecção sobrenatural, esquecendo-nos da nossa parte, e igual tendência para contarmos com a sorte quando não encaixámos as peças do “puzzle” que a permitissem, ou nem sequer reparamos que tivemos sorte e que não a soubemos aproveitar. E nisto a nossa “elite” política é como é porque o nosso povo é como é, ou seja: somos como somos… e pagamos (muito caro) por isso.
Voltando a Froome: desejo muito que, por corresponder à verdade, nunca se venha a provar que recorreu ao “doping” como aconteceu com a estrela caída em desgraça chamada Lance Armstrong.

José Batista d'Ascenção

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Sobre o tempo (em) que vivemos

Hoje há em muitas pessoas, eventualmente a maioria, um sentimento de decepção e frustração, em termos de realização pessoal e de perspectivas de vida. Crianças e jovens estão na escola, uma parte deles aplica-se, e muito bem, mas é um problema a integração de todos no que se chama o “mercado de trabalho”. As pessoas da meia-idade que têm emprego vivem na preocupação de não conseguirem acompanhar as mudanças que a todo o momento lhes são exigidas e temem perdê-lo. E os que já se aposentaram acodem a filhos e netos, acompanhando, prestando apoio e, tantas vezes, compartindo despesas monetárias. Há, entre os portugueses, uma grande insegurança, que até as crianças - que entre nós são poucas - sentem, mesmo que não verbalizem… E pelo mundo, onde a ganância financeira, o mercado de armas e a guerra, o fanatismo religioso e a acção de ditadores dizimam populações indefesas e originam hordas de migrantes, os problemas, sendo outros, não são menores.
Voltando ao nosso país. No tempo dos nossos pais e avós, Portugal era melhor?
No século XX, antes do 25 de Abril de 1974, Portugal tinha uma taxa de analfabetismo escandalosa (70%, em 1930) (1) em comparação com os países do norte da Europa. A mortalidade infantil era também vergonhosamente alta, quando comparada com a daqueles países (77,5‰ em 1960 contra 2‰ em 2016) (2). As habitações eram, a maior parte delas, no campo ou na cidade, miseráveis: nem água canalizada, nem quarto de banho, nem saneamento básico. A electricidade só no último quartel do século passado chegou a muitas casas! Antes disso, na capital, os bairros de lata eram o espelho da miséria económica, social e humana do país. De norte a sul, as pessoas pobres, que eram a maioria, andavam descalças, andrajosamente vestidas e inçadas de parasitas, sobretudo piolhos. A alimentação destas pessoas era muito má e houve alturas, muitas, em que não havia que comer e se passava (e se morria de) fome. Não havia acompanhamento das grávidas e os partos ocorriam em casa, com a ajuda de uma curiosa. Nos alvores da democracia, as pessoas do meio rural ainda não tinham assistência médica. Das crianças que iam à escola, no interior, algumas percorriam dois, três ou mais quilómetros a pé, descalças, por veredas de montanha, nalguns casos “aquecidas” por um cálice de aguardente dado pelos adultos; findo o dia de escola, faziam a caminhada inversa, com recomendações de pressa, para ajudarem em casa ou na lavoura. Para fugirem à miséria, em três décadas, na segunda metade do século XX, “um milhão e oitocentos mil portugueses tinham deixado o país” (3). Socialmente, era comum as pessoas com morada próxima, sobretudo nas localidades da província, conhecerem e discutirem a vida umas das outras, o que, descontando a contrariedade a que todas estavam sujeitas, também proporcionava apoio e conforto. Só a partir da década de 1980 todos os portugueses ficaram abrangidos pela Segurança Social (3). As notícias difundiam-se lentamente e de modo distorcido ou manipulado, a vida corria em ambiente social restrito, tantas vezes constrangedor e não necessariamente protector.
Hoje, temos um sistema de saúde que, com falhas e dificuldades conseguiu feitos notáveis, como uma taxa de mortalidade infantil das mais baixas do mundo. A escola, a braços com as carências sócio-económicos de grande parte da população e afogada nos problemas psico-afectivo e culturais dos alunos da era das redes sociais, tenta manter-se à tona e cumprir o seu papel. Crianças e jovens desconhecem a dureza da vida de pais e avós e, sujeitas à publicidade e às ondas comportamentais que se propagam via “gadgets” tecnológicos, parecem não se dar conta dos sacrifícios dos progenitores para que “nada” lhes falte.
O desporto, a política, a moda, as novelas, os concursos televisivos, os jogos digitais, etc., criam, estimulam e divulgam fenómenos de comportamento que obnubilam as consciências e modelam vontades no sentido do que é gostoso, imediato, acessível e sem esforço… do próprio.
Só e solto cada um de nós, facilmente se senta ao teclado, digita uns caracteres, faz a sua “justiça” e condena o mundo. E assim cada um se vai expondo irrevogavelmente, com nome próprio ou fictício, à mercê de cada um dos outros julgadores. E todos ficamos mais sós e mais frágeis e mais prisioneiros.
Para não alongar e adensar este texto, ficam de fora questões do ambiente natural e as armadilhas que, pelas nossas mãos, vamos montando, as quais deflagram já de forma inclemente, de que são exemplo os incêndios…
Mas não são piores estes tempos do que outros tempos do passado, são, isso sim, diferentes e mais exigentes, particularmente na educação das crianças. Temos, talvez, que parar um pouco, para não nos perdermos. Mas não podemos parar, de todo, para não ficarmos perdidos.
Por falta de alternativa, creio em amanhã.

José Batista d’Ascenção

(1) Maria Filomena Mónica. Os Pobres. A esfera dos livros. 2016 (pg. 136)
(2) Pordata: http://www.pordata.pt/Municipios/Taxa+de+mortalidade+infantil-371
(3) António Barreto, segundo Maria Filomena Mónica. Os Pobres. A esfera dos livros. 2016 (pg. 148)
(4) Maria Filomena Mónica. Os Pobres. A esfera dos livros. 2016 (pg. 151)

domingo, 16 de julho de 2017

Histórias de antigamente: «O patrão e o moço»

Odre de vinho (Wikipédia)
Pelo primeiro quartel do século passado, no interior da Beira Baixa, onde a fome, o frio e o mau passadio condenavam violentamente a quase totalidade da população, a que nem os remediados, em grande parte dos casos, escapavam, o humor e o riso seriam abundantes, mesmo no meio da miséria e, talvez, uma forma de melhor a suportar.
Em histórias contadas ao jeito do narrador, dizia-se que certo criado era muito astuto e contrariava amiúde o patrão, que gostava dele, não só por ser bom trabalhador como por ser franco, um pouco segundo a ideia de que mais vale a crítica ou discordância cara-a-cara do que a louvaminha que esconde a faca(da) nas costas. Pois assim viviam o patrão e o moço, nome por que era chamado o criado para todo o serviço.
Como por aqueles tempos o trabalho começava ao romper do dia e não acabava nem com o pôr-do-sol, a bem dizer, o trabalhador do campo vivia mais como servo da gleba, senão mesmo escravo, muito longe das condições aceitáveis que, também os assalariados agrícolas, adquiriram a seguir ao 25 de Abril de 1974, data que tardaria ainda longas décadas.
Por isso, ao romper da alva, o patrão chegava-se ao palheiro, onde o criado dormia, e gritava:
- Ó moço levanta-te, é meio-dia e tu na cama!
Ao que o rapaz respondia:
- Ó patrãozinho, é meio-dia e eu em jejum.
Não se continha o patrão:
- Homessa!, ainda é noite e já querias ter comido?
Ao que tornava, ágil, o criado:
- Ó meu rico patrão: pois se é noite, quer ter a bondade de me deixar dormir?
E deixava-se ficar por alguns minutos mais.
Sempre zeloso de que o criado não perdesse tempo, na manhã seguinte, o patrão insistia de novo, assomando, cedíssimo, à entrada do palheiro e clamando:
- Ó rapaz acorda e levanta-te. Olha que o moço do vizinho já hoje encontrou um odre (1) de vinho.
Imediatamente, vinha a resposta:
- Patrãozinho, mais madrugou quem o perdeu! E é de justiça entregá-lo, sem lhe faltar uma gota...
E o trabalhador dava um pouco mais de descanso ao corpo, ele que não se poupava a esforços para merecer o que comia. De resto, o patrão reconhecia a sua honesta dedicação e, mais companheiro que superior, na partilha de árduas tarefas e, sobretudo, em tantos sofrimentos da vida, tinha alturas em que lhe comunicava o seu apreço, de forma sentida:
 - Sim senhor, o meu moço podia ser mais madrugador, mas é um bom trabalhador.
Ao que não tardava resposta:
- Mais vale quem Deus ajuda que quem muito madruga!
Durante as horas do dia, aos rigores do sol ou do frio, com o suor ou a chuva a encharcarem as roupas humildes, tantas vezes em farrapos, se o patrão dava ordens mais cruamente exigentes, o criado, com firme determinação e esperteza, tinha artes de lembrar as condições humanas necessárias para um trabalho mais… produtivo. Foi o caso certo dia, em que a fome apertava, que ele se impôs ao mando, protestando:
- Sem almoçar, não levanto mais uma palha do chão! (2).
E o patrão condescendeu, tentando gracejar:
- O meu moço moço tem: quando eu mando nele manda ele em mim também.

José Batista d’Ascenção

(1) Odre – saco feito de pele de animais para transporte de líquidos.
(2) «Não levantar uma palha» - não fazer nada.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

RTP1 – Que serviço público?

Imagem obtida aqui
Os nossos políticos, no governo e na oposição, deviam «obrigatoriamente» ver a «Volta à França» em bicicleta. Talvez aprendessem alguma coisa sobre ordenamento do território e conservação e limpeza do ambiente, particularmente das áreas florestais.
Sempre que posso, e não me esqueço, fico frente à TV, mais pela delícia das imagens do que pelas vicissitudes da corrida e muito menos ainda pela preferência por algum atleta ou equipa. Do que também gosto é dos comentários serenos e oportunos de Marco Chagas e João Pedro Mendonça. Ontem foi um desses dias, mas irritei-me na parte final, quando os ciclistas se aproximavam da meta: a cerca de 18 Km do fim houve interrupção súbita para publicidade (depois de outras), altura em que tirei o som e fiquei longamente à espera. Quando a transmissão foi retomada faltavam 12 Km: uma eternidade, bastante mais de 5 minutos de bombardeamento com anúncios. Bem sei que aquela casa precisa vorazmente de dinheiro, mas também sei que o serviço que presta é, em minha opinião, muito insuficiente, como também sei que alguns dos seus apresentadores, muito atreitos à gritaria e ao espalhafato, senão mesmo ao insulto e à zaragata, no que se assemelham aos futriqueiros do futebol (não confundir com gente do nível de um João Gobern, entre outros…) e aos politiqueiros da berraria e da confusão, me fazem ter saudades de príncipes da televisão como Fialho Gouveia e Júlio Isidro, e não justificam as somas que auferem, para além do que se gasta noutros negócios de que aquela casa é sede e que os contribuintes são obrigados a pagar em facturas de serviços de outras empresas, como é o caso da EDP.
Alguma coisa devia poder ser feita, por respeito pela ética e por quem paga.

José Batista d’Ascenção

Histórias de antigamente: «O ébrio, o burrico e o casaco»

Em tempos que já lá vão, pelos anos trinta do século passado, antes da guerra civil de Espanha, numa aldeia próxima de Castelo Branco havia um aldeão que, como a generalidade dos camponeses daquela e das outras aldeias do interior, gostava dos “copitos”, como era vulgar dizer-se por aquelas terras .
Pois esse senhor, cujo nome não vem ao caso, gostava de «molhar a palheta» sempre que tinha oportunidade: dizia ele que para esquecer as agruras da vida, quando se sentia triste, e para se não lembrar delas quando (já) estava mais animado. Além disso, o bálsamo deixava-o não só com uma alma nova como também lhe amainava as dores do corpo. Ora, a propósito do corpo, porque se queixasse e porque a mulher muito insistiu, acabou por ir ao médico. Ouvidas as queixas e feita a auscultação, o doutor foi terminante: melhor alimentação, bebida - só água!, e fumo nem vê-lo, excepto o da lareira. Ironicamente, o paciente ainda comentou com o clínico: para ser feliz só faltou abolir o trabalho e arranjar-me forma milagrosa de sustento!
Abatido, regressou o casal à vida diária: trabalho muito, e de sol a sol, comida pouca, sem bom conduto nem azeite que se visse para o tempero de batatas e couves, e copos de vinho só às escondidas da mulher, que porfiava com zelo na sua função de vigilante.
Certo dia, pelos Santos, o pobre homem lembrou a mulher de que devia fazer-se ao caminho até à cidade, com o burrito, para mercar na feira tal e tal ferramenta de que precisavam e sempre lhe trazia do tendeiro do costume a fazenda de que ela desse as devidas indicações e para os fins que entendesse por necessário.
Manhã cedo, tomou a desjejua, aparelhou o animal, pegou em magro farnel que a “patroa” aviara, mal ouviu os conselhos de que ela não descuidava, tomou o caminho e lá foi. Antes ainda do largo da feira, em taberna improvisada, mas muito frequentada por amigos e conhecidos, parou o nosso amigo, a dessedentar-se, bebendo e pagando, para si e para outros, e bebendo também, e muito, à conta de quantos lho ofereceram. Não passou dali: bebeu o que pôde, jogou cartas, e voltou a beber, quando ganhou, porque ganhou, e quando perdeu para comemorar a vitória dos adversários; fome mal a sentiu e apaziguou-a com o naco de broa e um “cheiro” de queijo, que tirou da bolsa, e assim deixou escapar o dia até o sol declinar para o acaso.
Trôpego das pernas e aliviado do pouco dinheiro que levava, meteu-se ao caminho de regresso, cambaleando atrás do burrico, por não ser capaz de montar e porque não se aguentaria em cima dele, e também porque ninguém melhor do que o animal o conduziria a casa. E que animal: uma mansidão só comparável à inteligência, pois que a alimária nem precisava que a prendessem enquanto esperava pelo dono: comia o que apanhasse a jeito: erva, palha seca ou alguma ponta de mato, sossegando a barriga e inspirando confiança e ternura.
Ora, o nosso homem, trupe-zupe, cambaleando para a direita e para a esquerda, os braços abertos, em paragens instáveis e arrancos mais instáveis ainda, prosseguia em marcha incerta, com calores demasiados para o frio que, naquela altura e àquela hora, já se fazia sentir. Com dificuldade, despiu o casaco e balançando-se, atirou-o para cima do burro, que seguia pachorrentamente. Passos depois, o viandante tropeçou em algo e quase caiu ao apanhar o que se lhe emaranhara nos pés: erguido o trapo, observou-o e reconheceu um casaco que supôs pertencer alguém que tivesse regressado da feira antes dele. Com esforço, deu-lhe balanço e fê-lo cair nas costas do burro. – A alguém há-de ser útil! – disse consigo. E avançou. Porém, novo tropeção, agora com queda, a motivar palavrão grosso e novo arremesso para os lombos do burro. Não andou muitos metros e novo tombo, com os pés embrulhados… num casaco. Raios partam tanto casaco! Como já estava em cima da ponte do Ocreza, abeirou-se da grade e atirou-o de lá abaixo.
Noite escura chegava a casa. Percebeu ao longe o seu estado a mulher que o aguardava. E não conteve as reclamações: - Olha para ti, homem! Nem para teu bem, nem por eu te pedir nem pelo médico te proibir! Arre! Que há-de ser de nós?
Ao que ele replicou, entaramelado: - deixa lá mulher, não tive oportunidade de fazer negócios. Como o taberneiro gritava: - É vinho do bom! Ai que se acaba, ai que se acaba!, fraquejei com gosto pela que podia ser a última vez. Mas olha, nem tudo perdemos – trago o burro carregado de casacos, por bom preço.
Ríspida, a mulher calou-o, repentina: Trocaste-os seguramente pelo teu – grande há-de ser o proveito!
Passada a fúria, aquela santa, muito conhecedora e condoída do seu homem, que não era mau, levantou-se ao raiar da manhã, fez o percurso do marido, que bem conhecia, e havia de encontrar o casaco, amarfanhado e descosido, dependurado de um galho a beijar as águas do rio Ocreza.

José Batista d’Ascenção

sábado, 8 de julho de 2017

Histórias de antigamente: «A coragem do pisco»

Pisco-de-peito-ruivo - a ave injustamente tratada no texto.
Imagem da Wikipédia
Conta-se que, em dia de calmaria, certo pisco, com precisão de comer, conseguiu capturar duas moscas de uma vez só, porque, em acto de acasalamento, uma se encavalitava na outra dificultando a fuga de ambas. Para o pisco foi um golpe de sorte: juntara-se a fome com a vontade de comer com a disponibilidade de uma refeição substancial.
Saciada, a ave procurou de beber e a seguir quedou-se em saborosa modorra, refastelada em solo fofo, sob uma sombra frondosa. Deitada, primeiro sobre um lado, depois sobre o outro, encontraria a posição mais confortável de costas, com as patas viradas ao ar. Antes de ser tomada por sonolência profunda, espreguiçara-se ainda, esticando longamente uma perna, depois a outra e a seguir as duas; e, lobrigando uma nesga de azul por entre as folhas, blasonou: - Ah, Cristo!, se o céu agora caísse segurava-o nas patas.
A moleza e o sono venceram, quase imediatamente. Entretanto, a atmosfera ia adquirindo a cor do chumbo, cada vez mais densa. Até ao momento em que um raio iluminou vivamente o espaço logo seguido de um violento estampido que atroou os ares.
Petrificado, e encolhido até à insignificância, o pisco olhou vagamente o infinito e suplicou:
- Ó Cristo, não te atenhas ao pisco, que não tem pernas para isso!  

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Por que razão a ADSE está “sempre” a emitir cartões para os beneficiários titulares?

Deve ser por motivos simples, que “todos” conhecerão, menos eu: não percebo porque é que, de tempos a tempos (de três em três anos…), sou chamado aos serviços administrativos para levantar um novo cartão, que pode ser igual ou diferente ao(s) anteriore(s) (o de agora é diferente e ligeiramente maior do que o que tinha, o que faz que não caiba no compartimento do porta-documentos onde me habituara a colocá-lo - uma irritação!), mas com os mesmos dados (número e condição de titular). Afinal também eu sou o mesmo, só que (cada vez) mais velho, trabalho na mesma instituição e tenho a mesma morada, ou seja: reúno as mesmas condições de beneficiário, sem nada haver a alterar.
Então, por que há-de alguém dar-se ao trabalho de desenhar outro cartão (alguém teria reclamado do grafismo ou do aspecto do que havia antes?), de obrigar a nova impressão, de obrigar uma funcionária a convocar-me e de obrigar-me a mim a ir levantá-lo, se nem eu nem ninguém ganhou nada com isso, antes pelo contrário?
Os funcionários daquele serviço não têm mais nada que fazer? O desperdício de energia, de tinta e de papel são irrelevantes? O ambiente não sofre? Já nem falo da minha paciência… pronto.
E depois há outros funcionários e entidades que têm que conferir os dados quando o cartão é usado: como os cartões mudam e há até períodos em que há mais do que um modelo em vigor (durante os próximos dias eu tenho dois cartões diferentes, ambos válidos, enquanto não expira o prazo de validade do que tinha…), não pode mais facilmente haver enganos?
Às vezes, chego a pensar que era melhor o Estado pagar a certas pessoas para elas dormirem… sossegadinhas.

José Batista d’Ascenção

domingo, 2 de julho de 2017

Quando, por más razões, a chuva e o frio sabem bem

Os dias amenos e a chuva da semana passada foram um refrigério. Oxalá não se tenham limitado a um intervalo saboroso no inferno dos incêndios. O Verão é o tempo do calor e o calor devia saber bem, não fora o trauma e o “medo pânico” que se alojou no peito de pessoas como eu. O governo parece à nora; a oposição é casuística e oportunista; o que chamam “protecção civil” aparenta ser uma inutilidade - excepto para os que nela têm algum emprego ou função remunerada ou negócio relacionado… - em que ninguém confia, se bem que todos reconheçam o esforço e a coragem dos bombeiros, que, no entanto, deviam estar mais ligados à prevenção do que ao combate, particularmente quando as condições o tornam impossível. Os políticos e os autarcas (ainda) não envolvidos no turbilhão fazem figas em silêncio. As entidades que deviam proteger o ambiente e, especificamente, a floresta mantêm-se discretamente no limbo. Os interesses económicos relacionados com a celulose tratam da sua vida. E os cidadãos, que são capazes de uma solidariedade comovente, procedem com indiferença e fraca noção de responsabilidade e nenhum espírito de exigência nos meses do Outono, do Inverno e da Primavera, relativamente ao que não se faz/fazemos pela nossa floresta, que devia ser um “activo” - como agora se diz – muito valioso para as pessoas e para a economia do país. E o panorama torna-se ainda menos animador quando se ouvem disputas sobre como aplicar os donativos já recolhidos para acorrer às vítimas.
Parece que só nos resta rezar… Mas é pouco avisado empurrar para Deus ou para os santos o que é do nosso estrito dever.
Teremos sorte?

José Batista d’Ascenção

sábado, 1 de julho de 2017

Civismo à portuguesa (II)

Na margem esquerda do Cávado, próximo de Braga, em zona aprazível, onde foram construídos, lado a lado, um trilho pedonal e uma pista para bicicletas foi recentemente colocada pela Junta de Freguesia, num dos extremos do percurso, uma placa com as regras de utilização do espaço. A placa anterior, muito vandalizada há longos meses (ver aqui), foi devidamente substituída, e ainda bem. O facto de estarmos quase “em cima” das próximas eleições autárquicas não retira mérito à acção.
Porém, o trabalho e o gasto não deviam ser necessários, se o civismo das nossas gentes fosse um nadinha melhor. Para além de instintos destrutivos de explicação intrincada, o apelo ao cumprimento de certas regras parece desagradar a pessoas que ali vão passear os seus cães, o que não tem nada de mal, antes pelo contrário, desde que os levem com trela, especialmente quando os animais são nervosos e agressivos com quem faz a sua caminhada ou corrida, e que recolham os seus dejectos, especialmente quando ficam no meio da “pista”. Quer num caso, quer no outro, há motivo de queixa e de atrito, não com jovens acompanhados dos seus cães, que se comportam de modo sensível e simpático, mas com pessoas da ordem dos sessenta anos ou mais, cuja mentalidade parece ser mais antiquada… Atrevo-me a pensar que a escola, com todos os seus defeitos, tem um papel positivo no modo de pensar e agir da gente mais nova…, o qual, no entanto, não é de efeito universal, porquanto, também há os mais jovens, embora muito poucos, que optam por seguir de bicicleta no trilho para os peões. E, muito raramente, o espaço também já tem sido utilizado por jovens com veículos motorizados…
Ora, aquele local e todos os locais como aquele devem ser usados de acordo com as regras, a fim de que sejam cada vez mais os que, sem pagar, podem usufruir dos seus benefícios e contemplar e apreciar a natureza. E ali, cabem muitos, muitos mais. E todos deviam ser bem-vindos.
Vamos ver quanto tempo dura a nova placa.

José Batista d’Ascenção