quarta-feira, 27 de julho de 2022

Jovens de espírito

Oiço a expressão com alguma frequência. Julgo perceber o sentir de quem a afirma, mas o seu significado, adequação e pertinência deixam-me dúvidas.

Há os que compreendem, tanto quanto é possível, o mundo físico e biológico e as sociedades passadas e presentes, na sua imensa diversidade. E que se questionam e pesquisam com senso e lucidez primorosos, da matemática à filosofia. E os que nos dão a arte e a poesia. Felizes deles e de nós. Infelizmente, o seu número é restrito.

E há a imensa mole dos que se esforçam por se sentir jovens imergindo no “ar do tempo”, comportando-se como ditam as modas e fazendo com gosto o que a publicidade determina, discreta ou agressivamente. Não poucos imitam os jovens (na indumentária, na linguagem, nas atitudes…), que, por sua vez, se imitam uns aos outros, satisfazendo os objectivos de negócios poderosos, que dirigem a psicologia de crianças, jovens e adultos no sentido do hiperconsumismo.

De resto, nunca se viu jovem algum reclamar para si próprio um espírito jovem. Devemos reconhecer que só quem sente o peso de décadas invoca a energia da juventude. Desses, muitos procuram convencer-se, com ou sem razão, da sua frescura física e psicológica. De algum modo fazem uma confissão involuntária de preocupação com o fluir do tempo que se escapa. Não devem ser apontados a dedo, porquanto é geral o desejo secreto de conseguir o impossível e indesejável “elixir da juventude”.

Em contraste, aceitemos que há saberes que só são possíveis com a idade e também com experiências nem sempre gratificantes; e que as mazelas do corpo e do espírito se acumulam com o tempo, mas podem ser muito úteis a quem as respeite e aprenda com elas.

Esse é o bem que fica e que devemos agradecer aos que já foram jovens. 

José Batista d’Ascenção

domingo, 17 de julho de 2022

Música galega numa noite de Verão

Numa dúzia de anos tornou-se tradição, o festival «Castro Galaico», em Braga, no monte da N. Srª da Consolação. Este ano, por causa do calor e de outras contingências, limitei-me à última noite e apenas às (duas) bandas que actuaram no palco principal.

Começaram os «Voces de Arrieiro» (1), com músicas muito vivas, inspiradas em recolhas em «tabernas» e nas marcas da emigração do povo galego, muito bem cantadas entre nós pelo saudoso Adriano Correia de Oliveira. As influências são variadas e colhidas, para além da Galiza, no lado português, no «mesmo povo» que o «rio Minho une». E não apenas, que a “Senhora do Almortão», da raia albicastrense, elevada pela voz ímpar de Zeca Afonso, e o «cante alentejano» também fazem parte do repertório, com pronúncia e tonalidades galegas. Mas este grupo extravasa a península e colhe influências em países da América Latina, por causa da emigração, claro está, como Cuba, Brasil e Argentina. Tocaram, cantaram e interagiram com o público. E encantaram.

Na segunda parte tocaram os «Milladoiro», um grupo instrumental, com executantes de elevada craveira, polivalentes, vários deles, e todos de um rigor sem falhas. As gaitas de foles não são instrumentos da minha preferência, excepto quando tocadas e integradas assim. Ritmo elevado, a onda crescia em intensidade, a merecer ouvido atento e imersão na sonoridade. Mas há ouvir e mexer e as duas coisas a um tempo, consoante a sensibilidade de cada um. Para maior interacção o grupo ofereceu ao público uma ou outra música cantada com estribilhos que a maioria das gargantas não tinha facilidade em acompanhar. Com o culminar da festa, latejava em muitos um ferver do sangue a puxar para a dança. Captaram-no bem os irrepreensíveis músicos que passaram aos ritmos dançáveis dos minhotos, para explosão dos dançarinos. Os mais velhos em agitação nas bancadas, os jovens de “meia-idade”, principalmente mulheres, em rodopios e pulos voadores. Um ou outro adolescente também. Houve até aquelas que tiraram os sapatos para melhor sentirem o suave contacto dos pés na poeira.

As crianças, despertas do sono, bebiam o exemplo. 

(1) Arrieiro = almocreve = condutor de bestas.

Nota adicional: a má qualidade das imagens é da inteira e exclusiva responsabilidade do autor.

José Batista d’Ascenção

sábado, 16 de julho de 2022

Boa música que desconhecemos – The Soaked Lamb

Numa semana que me trouxe do bom e do menos bom, ontem à noite, sexta-feira, depois de uma tarde funéria, fui com a mulher espairecer até à “feira do livro” de Braga. Percorridas todas as “lojas”, folheados uns tantos alfarrábios, sentámo-nos na última fila do auditório de rua para descansar e degustar umas páginas, no meu caso, de Camilo. Projectadas em frente umas palavras que nada me diziam – The Soaked Lamb – e que, na verdade, só li largos minutos depois. 

A banda musical com aquele nome tivera problemas na estrada, atrasara-se, e eu só dei agradavelmente pelos membros quando começaram a ensaiar o som.

Senhores, começada a actuação saltei com gosto da leitura para a audição atenta e foi com alguma contrariedade que, depois de duas músicas, comecei a ouvir o apresentador a intercalar a história do grupo, não obstante a pertinência da informação e a fluência e o humor do discurso.

Regressados à música, que havia de ser interrompida mais vezes para o mesmo efeito, dei comigo entusiasmado e envolvido. Muito afinados, muito certinhos, bem ritmados e melodiosos. A vocalista muito clara, simples e expressiva, bem casada com os instrumentistas, e todos eles entre si.

De repente acabou.

Há muito tempo que, na rua, não desfrutava de um descanso tão saboroso e animador.

Parabéns aos “ensopado de borrego” (a “tradução” é um atrevimento meu), que merecem bom futuro, e aos organizadores que os convidaram. 

José Batista d’Ascenção

domingo, 10 de julho de 2022

Gerês (Sul)

Na paisagem, o verde, abaixo dos topos descarnados, (já) não é o que era dantes.

As acácias invadem luxuriosamente todos os sítios. E os eucaliptos começam a progressão. Duas árvores extraordinárias que não faziam falta no nosso (único) parque natural, que comemorou há pouco 50 anos.

Contudo, o Gerês atrai como nunca.

O turismo também é invasor.

Dele faço parte hoje, com a minha mulher, embora tenhamos andado a pé, só com uma mochila cada.

Já a idade pesa, mas fizemos com calma: Vilar da Veiga – Vila do Gerês – Vidoeiro – Pedra Bela – Cascata do Arado – Ermida e fecho do circuito. Uns bons 25 km, a cálculo. Aguentámos, o percurso e o calor. Também o ruído das motos e o pó, na parte de terra batida. Claro que não se vê bicho algum. De simpático e agradável: a paisagem, as sombras, as fontes de água fria (muitas) e os estímulos e cumprimentos dos viajantes em transporte motorizado. O descanso mais prolongado foi numa sombra a meio do leito de pedregosos matacões do rio Arado. Uma torreira, no dia de hoje, no que há mais de 10.000 anos era um vale glaciário, que ali deixou todos aqueles calhaus. Como será (já) nas próximas centúrias?

Como será toda a zona no tempo dos nossos netos?

Fica o testemunho deste dia, calcorreado lentamente por mim e pelo meu par.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 7 de julho de 2022

O dióxido de carbono e o futuro da humanidade

Acabei de ler o livro «Uma breve história da Terra», de Andrew H. Knoll. Da mensagem que encerra detenho-me apenas sobre algumas relações entre a abundância de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, as variações dramáticas do clima e as extinções em massa de seres vivos.

As rochas são (como que) as páginas de um livro em que a Terra escreve (com uma mão e apaga com a outra) a sua história (que é fragmentária, pelo que exige meticulosa reconstituição), desde tempos muitíssimo anteriores à vida humana. «E uma das lições mais persistentes da geologia é o reconhecimento de quão fugaz, frágil e precioso é o momento presente» (p. 15). «As notícias da área da biologia não são melhores: um declínio de 30% das populações norte-americanas de pássaros desde a década de 70 do século passado; populações de insetos reduzidas a metade; elevada mortalidade de corais (…), rápido declínio de elefantes e rinocerontes (…); áreas de pesca comercial ameaçadas em todo o mundo» (idem).

A razão por que tantas pessoas continuam indiferentes às mudanças planetárias resume-se a que, «no fim de contas, só vamos preservar aquilo que amarmos, só vamos amar o que compreendermos e só vamos compreender o que nos ensinarem» (p. 16).

«As amostras mais antigas conhecidas de atmosfera antiga são bolhas de ar retidas no gelo da Antártida há cerca de dois milhões de anos, pelo que as inferências sobre o ar e os oceanos mais antigos têm de ser feitas com base em registos químicos nas rochas» (p.85), pois «podemos formar uma ideia da atmosfera primitiva da Terra baseando-nos em rochas e minerais cujas composições refletem contacto com ar e água à época em que se formaram» (idem).

Os gases com efeito de estufa, «a maldição do aquecimento global do século XXI» são também «o fator que durante muito tempo garantiu à Terra um clima habitável» (p. 78).

O estudo dos fósseis, da sua diversidade e abundância, em rochas que sabemos datar, mostra que a biodiversidade terrestre sofreu cinco extinções em massa nos últimos 500 milhões de anos (Ma). Só a extinção ocorrida há 66 Ma «pode ser associada com segurança ao impacto de um meteorito» (p.150). «A maior extinção em massa ocorreu há «252 Ma (…) quando mais de 90% das espécies de animais marinhos desapareceram» (idem).

Rochas como o basalto resultam de erupções vulcânicas. A actividade vulcânica liberta CO2 para os oceanos e a atmosfera. Pelo volume e extensão das massas basálticas, que sabemos datar, podemos extrapolar a grandeza relativa e a duração dos eventos de vulcanismo e correlacioná-los com as enormes quantidades de CO2 injectadas na atmosfera. O aumento de CO2 na atmosfera provoca o aumento da temperatura (por efeito de estufa). O aumento de temperatura diminui a quantidade de oxigénio (O2) que se pode misturar na água (os mares empobrecem em oxigénio). Por outro lado, ao dissolver-se na água do mar, o CO2 acidifica-a. Cada um destes factores agrava os efeitos dos outros – um «trio fatal» (p. 155). A isto há ainda que somar os efeitos fisiológicos directos do CO2 na respiração (hipercapnia) e sobre os animais que produzem esqueletos de carbono de grande dimensão, como os corais (idem). Com o intenso vulcanismo de finais do Período Pérmico, há 252 Ma, «a biologia tinha o destino traçado nos oceanos» (ibidem). Não obstante, deve salientar-se que o vulcanismo pode também ser responsável pelo arrefecimento do clima, quando a abundância de cinzas se opõe à passagem da radiação solar, como aconteceu com a erupção do vulcão Tambora, na Indonésia, em 1815, que provocou um «ano sem verão» em lugares tão distantes como a Nova Inglaterra.

As espécies que são mais vulneráveis são as adaptadas a condições específicas drasticamente alteradas. Uma vez extintas, quaisquer espécies são passado na história da vida, mas, após cada extinção em massa, a diversidade biológica refaz-se, por evolução e expansão de novos seres a partir dos que sobreviveram, originando-se diferentes grupos de seres vivos, que vão contribuir para uma ecologia distinta.

Uma outra consequência do aumento do CO2 atmosférico e da subida de temperatura que provoca é o degelo das massas glaciárias, o que aumenta o nível do mar. Eis um fenómeno actual que nos atormenta.

Há poucas dezenas de milhões de anos, o soerguimento das Montanhas Rochosas, dos Alpes e dos Himalaias, aumentou a meteorização das rochas com consumo de CO2 atmosférico (p. 165). O clima arrefeceu. «Há cerca de 35 Ma, os glaciares começaram a espalhar-se pela Antártida (p. 166); (…) há 6-7 Ma a Terra precipitava-se para uma nova idade do gelo» (idem).

A espécie humana, que apareceu muito recentemente na história da Terra [os fósseis mais antigos de Homo sapiens são de rochas com 300 000 anos, em Marrocos. (p170)] desenvolveu-se extraordinariamente, sobretudo a partir do século XX, interferindo seriamente no ciclo do carbono. A queima de combustíveis fósseis, armazéns de carbono retirado da atmosfera há muitos milhões de anos pelas plantas, devolve-o à atmosfera, sob a forma de CO2, em quantidades enormes a um ritmo vertiginoso. As consequências fazem-se sentir. Para já não afectarão todos por igual; «haverá vencedores e vencidos» (p. 182). «Alguns canadianos poderão apreciar uma vida com menos neve» (…), mas, «no final de contas todos pagaremos» (idem). «Prevê-se um decréscimo da precipitação nos estados do Sul dos EUA, em áreas populosas do Médio Oriente, no sudoeste de África, na Península Ibérica» … (ibidem)

Ou seja: «o trio assassino (…) [de há 252 Ma] regressará em força durante o século XXI. É um processo que já começou» (p. 184).

A vida na Terra não acaba se a espécie humana se extinguir. Passaríamos ao registo fóssil e na Natureza surgiriam outras formas de vida.

Para nós, o tempo urge, para o planeta será mais um ciclo biológico.

José Batista d’Ascenção