terça-feira, 31 de agosto de 2021

Marcas do tempo em espíritos brilhantes

Nos dias que correm, tornaram-se vulgares as referências ao carácter “racista” de muitas obras de artistas maiores da História da humanidade. Também a protecção dos animais se tornou um assunto importante para cada vez mais pessoas, e ainda bem, pese o possível desconforto de certos bichos, que não podem fugir às consequências do amor mais ou menos bem resolvido que os seus donos lhes dedicam.

Acontece que cada autor, enquanto ser humano, é sempre um produto modulado pelos padrões sociais, culturais e educacionais do seu tempo, e das suas aventuras de vida, face às possibilidades que as condições biológicas (a genética, a neurofisiologia, a alimentação, a saúde…) determinam ou permitem. Inescapavelmente.

Vem isto a propósito de uma das minhas leituras de férias, «O Retrato de Dorian Gray», de Oscar Wilde. Pois li com desconforto a opinião de uma das suas heterodoxas e brilhantes personagens sobre as mulheres, em várias passagens. Trata-se de preconceitos tão taxativos quanto infundados, numa obra literária de grande fôlego - «O mais importante romance de Oscar Wilde» - lê-se na capa, por debaixo do título (Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2003). E surgiu-me a dúvida sobre se tais opiniões são (apenas) da personagem ou do próprio autor, mesmo descontando o seu apego ao cinismo, ao sarcasmo e à ironia. O mesmo senti sobre as relações amos-criados, em que estes são tratados mais como autómatos ou coisas do que como pessoas, pessoas de quem se aprecia «a plácida marca do servilismo» (pg 175).

Recentemente, li algumas referências aos registos de S. Paulo sobre a posição dos homens e das mulheres no casamento. Umas condenando, outras defendendo. Ora, poucos opinadores são capazes de situar o apóstolo no seu tempo, por incapacidade ou falta de habilitações, ao contrário do que faz brilhantemente o académico Frederico Lourenço, em textos de luminosa profundidade. Tem tanto sentido acusar(mos) o Santo de desprezo pelas mulheres como acusá-lo de não se opor à escravatura…

Ou seja: tendemos a olhar o passado com os olhos e o pensamento do presente e a julgá-lo pelo prisma que nos é imediato ou conveniente. Acontece que é desejável algo mais para um entendimento esclarecido.

Que às marcas do tempo nem os santos escapam.

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Pequeninas coisas do que fui sendo e sou

Por estes dias rumei ao sótão da casa da minha mãe, na aldeia, e decidi-me a abrir o “sarcófago” onde, há dezenas de anos, jaziam elementos escritos importantes na minha aprendizagem e na minha formação. Lá estavam “preciosidades” como as provas de treino e de avaliação da escola primária, algumas atacadas pelas traças, os cadernos diários das diferentes disciplinas dos tempos do liceu – o Liceu Nacional de Castelo Branco -, os “Cadernos de Educação Popular” e outros fascículos, revistas e livros com pendor político, que “estudei” avidamente na adolescência, na sequência da inebriante festa da liberdade, que foi o 25 de Abril de 1974.

Sempre tive uma grande atracção pelos ideais políticos e pela «coisa pública», diametralmente oposta à opinião repulsiva que ia formando sobre a acção de grande parte dos líderes e protagonistas, desde então até hoje. Por um lado a esperança funda num caminho de progresso da humanidade e, em particular, da sociedade portuguesa. Por outro, a realidade, no modo como em cada tempo a fui (vi)vendo, sempre a frustrar-me as expectativas.

Mas os tempos de hoje em Portugal são melhores, incomparavelmente melhores, do que a vida miserável do país, naquela altura e antes disso. Em termos gerais, naturalmente.

Acalentei o sonho de que a Escola havia de resgatar o povo português, na sua preparação e mentalidade - um atrevimento e uma ilusão.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Até ao próximo incêndio

São eucaliptos. Crescem bastos desde o último fogo, vai fazer um ano. Ninguém os semeou. Não é preciso. Há courelas que parecem (enormes) canteiros, sem que ninguém tenha feito nada para isso. Ou melhor: alguém fez, sim: quem, bem-intencionado e calculista, plantou os que, ao arderem, libertaram as sementes, em número infinito. Da cepa desses crescem vigorosos rebentos, alguns já com 3m ou mais de altura - árvore fabulosa: quase se vê crescer de dia para dia. Mais rápidos que (todas) as outras plantas, ocupam os espaços e roubam a luz, em proveito próprio. E crescem, crescem. Ironicamente, ou talvez não, sendo um mal, as pessoas vêem-nos como a (única…) fonte possível de rendimento, daqui por dez anos. Se não arderem entretanto, o que não é pouco provável. Neste Portugal interior, da Beira Baixa, antiga zona do pinhal, com muito poucas pessoas, não sei se não se caminha para um “deserto” de eucaliptos. Em sítios (mais) baixos e na margem das estradas, também as acácias proliferam… Dura lei da vida: é uma luta entre plantas, em que vencem as mais “fortes”.

Morta a agricultura (de subsistência), abandonadas as (pequenas) vinhas de produção própria e algumas oliveiras galegas, de bom azeite, a beleza da paisagem, doravante ainda mais monopolizada pelo eucalipto, nada pode contra a falta de ocupações remuneradas em qualquer tipo de indústria, a ausência de centros de saúde e de farmácias, o encerramento dos CTT e de agências do banco público, etc. Como se poderão fixar pessoas permanentemente nestas paragens?

Não sei. Não sei responder.

Mas gosto de vir aqui, ao sítio onde nasci e fui menino, até ao fim da escola primária.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Montemor-o-Velho, o tributo que lhe devia

A vista do Castelo de Montemor-o-Velho, na aproximação pelo Poente (estrada nacional 111), sempre me maravilhou. Desta vez fiz-lhe um retrato, com as limitações do meu talento fotográfico somadas às do humilde telemóvel que tenho há vários anos. O produto está ao lado. Da estrada vi, demoradamente visto, o monumento. Do seu interior tentei captar a extensão e a beleza dos campos de arroz, que sempre tocou a minha sensibilidade, de onde quer que os olhasse, ali ou noutro lugar qualquer.

Do concelho de Montemor-o-Velho, carregado de História, guardo outras memórias boas. Na primeira metade da década de oitenta do século XX, tive o privilégio, eu e os meus colegas do curso de Biologia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, de ir em visita de estudo ao Paul de Arzila, sob a orientação conjunta do Professor de Ecologia Animal – o Professor Ferrand Almeida e do Professor de Plantas Vasculares, de Anatomia Vegetal e, sobretudo, de outros saberes informais não menos importantes, como ambientalismo (fundamentado), cidadania, camaradagem e cultura geral – o Professor Jorge Paiva. Lá voltaríamos mais do que uma vez, a esse e a outros pontos de interesse. Essas visitas de estudo com o Doutor Paiva, frequentes e diversificadas (que incluíram o Jardim Botânico, os Campos do Mondego, o Choupal, a Mata da Margaraça, o Piódão, o Buçaco, o Gerês…), eram verdadeiramente formativas.

Os pastéis de Tentúgal, doces tradicionais muito conhecidos, como a generalidade dos doces, não são para mim nenhuma perdição. Já a broa de milho branco (branca também, e macia) de Montemor é (para o meu gosto) uma delícia de que abusei dias seguidos este Verão.

Quando, em 2001, as cheias do Mondego submergiram grande área do concelho doeu-me a arrogância do “Homem que sabe” perante as forças na Natureza que ou não haviam sido calculadas com o rigor devido ou a execução das obras de regularização do caudal do rio não cumpriu todos os requisitos desejáveis. Admito que este meu sentimento se devesse, em parte, ao meu gosto antigo por Montemor-o-Velho, de que faço (este ligeiro) registo.

Por fidelidade, registo também um pormenor desconfortante que me persegue nas deambulações pelo meu país: À entrada do Castelo, à ombreira direita, plantava-se uma figura feminina, de meia-idade, que, pela atitude e indumentária, se me afigurou como alguém com défice cognitivo. Pedia. A um olhar que troquei com a Lurdes (a minha mulher) recebi o sinal habitual: devia dar-lhe alguma coisa. Ia levar a mão à carteira quando surge um funcionário a invectivar a mendiga, que não podia permanecer ali, naquela actividade… De olhar vivo, ela lera-me a intenção, mas afastou-se dois metros para o lado de fora. O homem, cumprido o seu dever sem muita convicção, virou costas e perdeu-se no interior. À saída, no mesmo local, surgia a mulher, expedita, ao meu lado, de mão estendida, num rosário de justificações: «só dá quem quer, que mal faço eu aqui?», etc. Em silêncio, mecanicamente, e sem parar, depositei a moeda de euro na palma aberta. Tão desconsolado por tê-lo feito como ficaria se o não fizesse. Em tempos pensei que a democracia no meu país, e a escola, em que depositei grandes esperanças, resolveriam isto. Agora, procuro alento na ideia de que, no tempo dos meus filhos e netos, se possam desvanecer as razões destes sentimentos que permanecem no meu modo de olhar o meu país e os meus concidadãos.  

José Batista d’Ascenção

sábado, 14 de agosto de 2021

Vacinas de RNA

O carácter revolucionário das vacinas de RNA reside no facto de proteínas estranhas, contra as quais certas células do sistema imunitário produzem anticorpos, serem sintetizadas pelas células do próprio organismo. Como é isto possível?

As proteínas, todas as proteínas, são sequências (rigorosamente definidas) de aminoácidos, ligados entre si (por ligações peptídicas), formando longas cadeias, ditas polipeptídicas ou simplesmente peptídicas. Associados à(s) cadeia(s) polipeptídica(s) (uma proteína pode ser constituída apenas por uma cadeia peptídica ou por duas, três, quatro ou mais…), muitas proteínas apresentam grupos químicos que não são de natureza peptídica (como é o caso da hemoglobina, a proteína dos glóbulos vermelhos do sangue, constituída por quatro polipeptídeos, cada um com um grupo que contém ferro, ao qual se liga o oxigénio que é transportado dos pulmões para os tecidos).

Qualquer proteína específica de um ser vivo apresenta sempre o mesmo número de aminoácidos e com a mesma sequência, excepto se houver mutação do código genético que define rigorosamente essa sequência, a qual determina uma estrutura tridimensional característica.

A codificação das proteínas está escrita (literalmente) numa molécula bioquímica de uma substância acídica que se chama ácido desoxirribonucleico (DNA na sigla inglesa ou ADN, em português).

O código genético (uma sequência linear de quatro grupos químicos que funcionam como quatro “letras” diferentes), contido no DNA, está normalmente protegido nas células, a fim de não ser corrompido por “acidentes” físico-químicos que, a qualquer momento, podem ocorrer, devido a radiações, venenos, etc. Por essa razão, as porções de DNA que codificam proteínas (genes) são transcritas para outro suporte – outra molécula linear, constituída igualmente por uma sequência de quatro “letras” (três delas comuns ao DNA) – e é este suporte, chamado RNA mensageiro (RNA ou ARN são siglas de “ácido ribonucleico”), que é traduzido em sequências específicas de aminoácidos, por organelos celulares chamados ribossomas, que executam a síntese proteica.

Esquema base da síntese proteica em bactérias
Ora, de modo simplificado, sempre que os organismos animais complexos têm (o primeiro) contacto com moléculas biológicas (por exemplo proteínas) reconhecidas como estranhas pelo seu sistema de defesa (constituindo o que chamamos antigénios), as células do sistema imunitário, após muitas horas, durante dias, produzem outras proteínas específicas, chamadas imunoglobulinas, de várias categorias, capazes de se ligar, por complementaridade, àquelas proteínas estranhas contra as quais foram “desenhadas”, formando complexos que lhes anulam a patogenicidade ou a dos micróbios em cuja superfície se apresentam. Além disso, depois do primeiro contacto, há células-memória que, em contactos posteriores, produzem rapidamente (em poucas horas) quantidades enormes de anticorpos, desencadeando o efeito de imunidade (dita humoral). As vacinas consistem basicamente em provocar artificialmente este mecanismo. O recurso às vacinas permitiu a erradicação de doenças infecciosas terríveis, como a varíola.

E quanto às vacinas de RNA?

Estas vacinas consistem em inocular nos organismos não as proteínas estranhas (antigénios), ou os micróbios que as contêm, mas o RNA mensageiro que codifica aquelas proteínas. As células do organismo a imunizar recebem o RNA mensageiro, este é traduzido nos seus ribossomas com produção das proteínas antigénicas, estranhas, portanto.

A partir daí, o processo é idêntico: porque são estranhas, o sistema de defesa elabora anticorpos contra elas e guardará em memória essa capacidade. Se tudo correr bem, a imunidade adquirida é assim conseguida.

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Nós e a miséria do mundo

Temos o mundo digital e tecnológico.

Temos a riqueza do mundo pertença de muito poucos e a pobreza chocante da maioria dos seres humanos.

Temos quem pague somas estratosféricas para ir ao espaço sentir a ausência de gravidade por escassos minutos. E quem, no que chamamos desporto, negoceie pessoas por quantias astronómicas.

Temos um planeta que caminha a passos largos para um clima insuportável, perante a nossa inconsciência, não obstante tantos avisos.

E também temos muito próximo de nós (Braga, no caso) o que a foto documenta.

No entanto, este é o melhor dos mundos que a espécie humana conheceu.

O que virá para os nossos filhos e netos, e restante criação?

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

A alma das gentes

A qualidade artística das figurações não é proporcional ao tamanho do painel (em minha não avalizada opinião). Assim mesmo impressionou-me agradavelmente. São muitos metros quadrados com cenas rurais num amplo e aprazível santuário religioso (de Santa Luzia) do centro (mais ou menos) desertificado (de pessoas, claro) do interior do país (Castelejo, Fundão).

A capela (principal), muito harmoniosa, é do século XVIII, em estilo barroco.

Por aquelas paragens, que pouco interessam aos governantes, se os políticos não resolvem, nem inspiram confiança, restam sempre os santos, que «esperam mas não perdoam» (pel)o cumprimento das promessas dos aflitos. Foi assim que o ouvi de várias bocas, agora como noutros tempos.

Por ali passei e registei.



José Batista d’Ascenção

sábado, 7 de agosto de 2021

A solidão no Portugal profundo

De retorno, por uns dias, à terra e à casa onde nasci, pude voltar aos sabores e cheiros da infância. Não às cores. Não ao verde da paisagem, que o negro ainda (a)tinge com dureza. A juventude é pouca e a que existe é-me desconhecida, embora simpaticamente receptiva às minhas humildes e tímidas indagações. Raparigas e rapazes impressionam(-me) pelo tamanho físico. Abençoada alimentação e vivências, que os fizeram crescer bem acima da estatura dos meninos e meninas da idade deles no meu tempo, já lá vão umas décadas.
Mas são os idosos que me tocam até à emoção (que disfarço como posso). Corrijo: idosas, e muitas, felizmente. Mas os anos sobrepesam demasiado, cada vez mais. Já volto a elas. Antes, uma referência a eles, os homens, que já eram (quase) velhos quando eu era rapaz (ou eu assim os via). Os trabalhos, na agricultura, na madeira, na resina, na construção ou na abertura de poços (para captação de água), em surriba, a roçar mato ou cortar lenha eram duros e desgastantes. Mas não foi isso que os fez morrer antes delas. Suponho que terá sido, principalmente, o consumo de álcool (com que fugiam às dores da existência, afundando-se noutras mais violentas ainda, arrastando consigo os mais próximos, mulher e filhos, normalmente). Na minha pobre família foram vários os casos… Muitos daqueles homens, alguns em acúmulo, agravavam a saúde com o vício do fumo, “queimando” os pulmões e parte do dinheiro que fazia falta para necessidades básicas, quais fossem as de alimentar a família. Depois havia ainda os acidentes muito frequentes, quer porque a segurança no trabalho era um conceito ausente, quer porque a sobriedade desejável nem sempre era um facto, mesmo quando os perigos do ofício o exigiam.
Portanto, os homens morriam mais cedo. E para muitas mulheres, pese embora os choros e lamentações fúnebres e o luto perdurável (a condição de viúva envolvia o negro definitivo da roupagem), a morte do «seu homem», apesar da dificuldade de conseguir sustento, significava o alívio de uma vida de martírio, mais ou menos prolongado.
A maioria destas velhinhas anda agora pelos noventa anos e algumas já os ultrapassaram. Doces e ternurentas, algumas, e não tanto outras. Uma delas, com o olhar longínquo, queixava-se da solidão, acusando: «estas serras esmagam o peito da gente». Quase todas prodigalizam abraços e palavras profundamente reconfortantes (esquecendo-se facilmente dos procedimentos preventivos da pandemia…). Algumas fazem-no como se se estivessem a despedir. Mas nem elas nem eu o referimos. Não podem imaginar como lhes aprecio e agradeço a bondade do gesto!
Em sua homenagem escrevi estas palavras.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

A crise actual da condição humana, segundo António Damásio

Excertos do capítulo 12 do livro «A Estranha ordem das coisas»


«A crise atual da condição humana é uma crise curiosa, pois embora as condições locais sejam distintas em cada ponto do mundo (…), as respostas que a definem são semelhantes, marcadas pela zanga, fúria e confronto violento, a par de apelos ao isolamento dos países e de uma preferência por governação autocrática. Mas a crise é sobretudo dececionante (…). Seria de esperar que pelo menos as sociedades mais avançadas tivessem ficado imunizadas pelos horrores da Segunda Guerra Mundial e pelas ameaças da Guerra Fria (…).

Os tempos que vivemos poderiam ser a melhor das épocas para se estar vivo» (…). Tais são as descobertas científicas, o brilho técnico e a quantidade de conhecimentos disponível e de fácil acesso ou as extraordinárias possibilidades de interligação humana à escala planetária (comunicação electrónica, viagens, acordos internacionais…), bem como o diagnóstico e a cura de doenças, que permitem o aumento da longevidade, que pode «prolongar-se de tal forma que se espera que os seres humanos nascidos após o ano 2000 possam viver, e bem, (…) até uma média de 100 anos. (…)

No entanto, para considerar os nossos dias como sendo os melhores de sempre seria preciso que estivéssemos muito distraídos, já para não dizer indiferentes ao drama dos restantes seres humanos que vivem na miséria. Embora a literacia científica e técnica nunca tenha estado tão desenvolvida, o público dedica muito pouco tempo à leitura de romances ou de poesia, que continuam a ser a forma mais garantida e recompensadora de penetrar na comédia e no drama da existência, e de ter oportunidade de refletir sobre aquilo que somos ou que podemos vir a ser. (…) Curiosamente, ou talvez não tanto, o nível de felicidade nas sociedades que mais beneficiaram com os espantosos progressos do nosso tempo mantém-se estável ou em declínio, caso possamos acreditar nas respetivas avaliações.

Ao longo das últimas quatro ou cinco décadas, o grande público das sociedades mais avançadas aceitou, com pouca ou nenhuma resistência, o tratamento cada vez mais deformado das notícias e das questões públicas concebidas para se enquadrarem no modelo de entretenimento da televisão e da rádio comerciais. As sociedades menos avançadas não têm demorado a imitar essa atitude.

(…)

Em geral, o público não dispõe nem de tempo nem de método para converter as quantidades imensas de informação em conclusões razoáveis e de uso prático. Além disso, as empresas que geram a distribuição e a agregação de informação ajudam o público de forma dúbia: o fluxo de informação é orientado por algoritmos da empresa que, por sua vez, influenciam a apresentação, de modo a adequar-se a uma variedade de interesses financeiros, políticos e sociais, a par do gosto dos utilizadores, para que estes possam continuar fechados no silo de opiniões que os entretêm.»

Afixado por José Batista d’Ascenção