terça-feira, 23 de abril de 2024

25 de Abril – data grande e bela

Vivo emotivamente esta data, desde que ocorreu, era eu adolescente. Fiz-me adulto com os seus valores e ideais, num país libertado, e morrerei com eles no peito. Não conheço, em parte alguma, em qualquer tempo, revolução tão bonita e generosa, em que os seus protagonistas não derramaram sangue e colocaram no cano das espingardas (de um tipo chamado G3, que eu ainda tive na mão, lá por Mafra, dez anos mais tarde) cravos vermelhos – os cravos do 25 de Abril. E desde então, os cravos, que eu bem conhecia dos jardinzinhos das casas humildes dos meus pais e dos meus avós, de cor vermelha, passaram a ter, para mim, um significado como mais nenhumas flores têm. Vejo-lhes a cor e logo lhes associo o perfume. E, se lhes recordo o aroma, logo o relaciono com o vermelho vivo e apaixonante da revolução havida e muito querida.

Os que detestam o 25 de Abril têm, pelo menos, a liberdade de o expressar. E com que gosto o fazem!, ou assim parece. Gosto e apreço que os ditadores e os seus admiradores não têm pela liberdade dos outros, característica que me repugna.

Foi feito por homens, o 25 de Abril. E nenhum dos homens que o fizeram era perfeito. Antes assim. Não tinham eles preparação política e remédio social para as chagas do país? É normal que não tivessem. O que (me) importa era nobre e honesta e firme vontade de Salgueiro Maia e dos outros. E não ignoro a profundidade de pensamento de um esquecido Ernesto Melo Antunes. O que tinham era, repita-se, a vontade de pôr termo a um regime ditatorial medularmente injusto, violento e corrupto e velho de décadas. E puseram, corajosamente. O resto era uma oportunidade para nós, cidadãos, construirmos um país digno e livre.

Conseguimo-lo? Penso que não. Livre, formalmente, é. Digno, não. Basta pensar no (a meu ver) péssimo funcionamento da justiça. E na falência de uma área que muito me toca – a «educação». É dos responsáveis que nos devemos queixar. E exigir deles (e de nós) que respondam(os).

O 25 de Abril continua por cumprir. A «chama» vermelha dos cravos continua a interpelar-nos. Assim o penso e assim o digo à juventude.

O futuro depende de como o prepara(r)mos.

José Batista d’Ascenção

sábado, 13 de abril de 2024

Emoções humanas ou (ir)racionalidade?

Dia Mundial da Criança, Amadora 1974,
Fotografia de Alfredo Cunha

«Não vemos as coisas como elas são, vemos as coisas como nós somos». Esta afirmação (ou equivalente) é atribuída a Anaïs Nin, escritora norte-americana, nascida em França. Não sendo (seguidor) de máximas, a clarividência daquele pensamento ficou-me, desde que o vi escrito.

Restringindo-me ao nosso país, causa-me funda (e negativa) impressão a opinião (de tantos) que atribui os males da sociedade actual à extraordinária e bela oportunidade que foi a revolução do 25 de Abril. O país que fomos e o país que somos não têm comparação. De que podem ter saudades as pessoas, particularmente as mais pobres, que têm a minha ou mais idade: de passarem fome?, de andarem descalças?, de trazerem a cabeça inçada de piolhos?, de não terem (qualquer) assistência médica?, de não terem água canalizada, nem esgotos, nem casa de banho?, de casebres de telha vã, com um espaço único onde todos se amontoavam?, de as mulheres serem “propriedade” dos maridos?, de as enfermeiras e as professoras precisarem de autorização para se poderem casar?, de não saberem ler nem escrever?, de os jovens rapazes terem de ir para a guerra na Índia ou em África?, de a polícia política (PIDE) prender por “delito de pensamento”? Etc.

Porque não estamos melhor do que estamos no tempo presente?

As razões são múltiplas, mas, para mim, isso deve-se, em grande medida, ao falhanço do que chamamos «sistema de educação». Há quem gabe o muito que (já) se conseguiu, por comparação com o que então se verificava (mal era…). Esta visão interessa muito aos que são responsáveis pelo dito sistema e vivem à custa dele. Não me interessa a mim, que ando há quarenta anos pelas escolas, a leccionar ininterruptamente. Sobretudo, não interessa aos filhos dos (mais) pobres, que frequentam a escola (e muito bem), mas saem dela pessimamente preparados. Nem interessa, sequer, àquela percentagem de alunos cujas famílias têm boa condição sócio-económica e conseguem suprir as falhas escolares, porque, por um lado, podiam e deviam ser ainda mais bem preparados e porque, por outro lado, terão de fugir para o estrangeiro para conseguirem trabalhos bem remunerados. Também não interessa aos professores (que dão aulas) que vivem e trabalham numa realidade que é muito diferente daquilo que os teóricos dizem, porque lhes convém.

Ora, isto não tem de ser assim. O 25 de Abril fez-se para proporcionar mais e muito melhor. Cumpri-lo é o nosso dever.

 José Batista d’Ascenção

terça-feira, 9 de abril de 2024

O Professor Jorge Paiva (II)

Uma vida de dedicação à Ciência e à Natureza e de profundo respeito por si e pelos outros


Nos alvores da democracia em Portugal assinala e denuncia a diferença entre liberdade e libertinagem política, económica, ambiental e, consequentemente, social. Alerta para a destruição da floresta, do coberto vegetal e dos riscos inerentes. Não se intimida com a força dos predadores em busca de lucro nem se cala perante a submissão dos políticos a esses interesses. Fala/escreve sempre de modo claro, incisivo, concreto e documentado. Com a mesma diligência com que calcorreou o país, vai às escolas (do ensino básico e secundário) levar pessoalmente a mensagem em defesa do meio ambiente e, por consequência, da espécie humana. Para além dos adultos, crianças e jovens ouvem-no com particular interesse. Desgosta-o que o poder do consumismo tenha depois um efeito contrário muito poderoso sobre a semente que diligentemente levou até eles. Essas acções foram e são todas materialmente graciosas. De ninguém aceitou ou recebeu qualquer provento ou recompensa material.

A sua acção pedagógica influenciou muitos professores, os mesmos que tantas vezes lhe pediram para que viesse às suas escolas - a que sempre acedeu prontamente - e que acorreram interessadamente às extraordinárias acções de formação que lhes proporcionou, inevitavelmente com o ambiente natural como palco, nas diversas regiões do continente e ilhas e, também, com algumas deslocações ao estrangeiro.

Antes, muito novo, como investigador, havia regressado a África para vastos e aturados estudos da flora. A diversos países do continente negro voltou muitas vezes (só a São Tomé e Príncipe foram mais de uma dúzia) em trabalho científico e pedagógico, algumas delas com professores do ensino básico e secundário. Subjacente, o objetivo de, através deles, fazer chegar conhecimento, formação e cidadania aos mais novos. Para além da Europa, particularmente na Península Ibérica, e da África, realizou trabalho científico nas Ilhas Macaronésias, na Ásia e na América do Sul. Também visitou a Austrália e a Região Ártica Europeia (incluindo a Islândia).

Seriam muito longas quaisquer listagens dos trabalhos, da acção, das homenagens, dos prémios e das distinções do Professor Jorge Paiva, como docente (de várias universidades: em Coimbra, Aveiro, Madeira, Viseu, Vigo), investigador, divulgador de ciência, ambientalista e cidadão interventivo. Por não ser o escopo, aqui, limitamo-nos a resumidas e parcas alusões, de que é exemplo a publicação mais recente do «Diario del Jardín Botánico», de Madrid, que refere, em relação ao Mestre, «el envidiable respeto de la sociedad portuguesa»…, [prosseguindo] «pero también es un orgullo y una emoción para sus colegas españoles del Real Jardín Botánico: Jorge Paiva fue el único de los tres pioneros del proyecto Flora Iberica - una ambiciosa empresa botánica que iba a abarcar todo el territorio peninsular más las Islas Baleares - que logró ver concluida la obra más importante de la Botánica española y portuguesa.» (p. 11)

Acrescentemos, apenas, que identificou para a ciência dezenas de espécies novas. Ou que são pelo menos dez as plantas cuja designação científica inclui um termo derivado do seu nome (latinizado) – paivae ou paivana – como homenagem de outros investigadores, portugueses e estrangeiros.  

Repetimos: este pequeno texto não pretende abordar a relevância do trabalho académico e científico do Professor Jorge Paiva, matéria para redactores habilitados. Por ora, ficamo-nos por um registo de afecto e de apreço pelo Bom Mestre que sempre correspondeu ao chamamento dos professores de crianças e jovens, os quais procuraram junto de si, e pela sua acção, esclarecimento, estímulo e exemplo.

Da sua parte, nunca (nos) faltou. Foi e é muito belo o seu exemplo, e inteira e limpa a sua generosidade.

A Escola Secundária Carlos Amarante, de Braga - onde tantas vezes quantas as solicitadas, e foram muitas, tivemos o Professor Jorge Paiva - agradece, com carinho.

Da parte de todos: Muito obrigado.

José Batista d'Ascenção

O Professor Jorge Paiva (I)

Uma vida de dedicação à Ciência e à Natureza e de profundo respeito por si e pelos outros

Aguarela da Artista Teresa Maria Abreu

Nasceu em Cambondo, província de Quanza Norte, Angola, a 17 de Setembro de 1933. Viveu a infância num exíguo povoado do Quanza Norte (Quilombo dos Dembos), “cercado” pela selva tropical de chuva (pluvisilva), para onde, em criança, fugia com frequência. Da mãe, minhota, que muito o influenciou, e por quem guarda afecto profundo, recebeu o estímulo primordial da importância da aprendizagem e do saber, desde a escola infanto-juvenil até à universidade. Ela bem sabia porquê.

Do contacto íntimo com a Natureza, o petiz fascinava-se com animais e plantas e (auto)aprendia a respeitar uns e outras. Interessava-se e compreendia. Era a paixão pelo mundo natural, que surgia cedo em alma receptiva e fecunda.

Porque era muito importante a formação e o saber, a mãe regressou à metrópole com a prole, que devia ser devidamente preparada, até à conclusão da formatura universitária. Chegada a hora de escolher o curso, o pai decepcionou-se com a opção por «Ciências Biológicas», uma via profissional (mais ou menos) «inútil». Com asa protectora e estimulante, a mãe não viu inconveniente: Biologia? Pois que fosse biologia. E em boa hora foi.

Até aí, o seu percurso escolar, a sua sólida formação e as suas opções tinham, segundo o próprio, a marca de cinco grandes professores do ensino secundário do liceu D. João III, em Coimbra (atual Escola Secundária José Falcão): O Dr Álvaro da Silveira, de Matemática, o Dr Alberto Martins de Carvalho, de Filosofia, o Dr António Leitão de Figueiredo, de Inglês, o Dr Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, de Física e Química (pedagogo, investigador, escritor, historiador e poeta – o poeta António Gedeão) e a Dra Raquel Braga, de que o Mestre fala assim: «uma excelente professora de elevadas qualidades humanas e pedagógicas. Foi esta saudosa professora de Biologia, que recordo com veneração, que me ensinou a olhar para os seres vivos com compreensão e respeito, quer fossem animais, quer fossem plantas. Lembro-me bem da maneira delicada como pegava nos animais e nas plantas para nos ir mostrando as respectivas características diferenciais e comportamentais. Foi por causa desta santa professora que escolhi cursar Biologia.» (in: Revista «Parques e Vida Selvagem», Ano XI, Nº 36, Junho-Setembro 2011. 62-64 p.)

Formado, o jovem com a sua visão larga não cabia nos limites das sebentas académicas e dos muros da vetusta e endogâmica Universidade de Coimbra. Apreciava e praticava desporto, representou a Associação Académica de Coimbra como nadador e como atleta de 5000 e 10000 metros, pois, para si, o equilíbrio do mundo vivo e da Natureza, incluía o respeito pela fisiologia, a começar pela sua. Apesar de ter sido medalhado, em natação, nunca gostou de desporto de competição. Sempre praticou actividade física de manutenção: até há meia dúzia de anos corria 10 Km por dia, desde então reduziu a distância para metade e aumentou os tempos de intervalo, para não forçar os joelhos.

Como ambientalista, assume posições criteriosas e fundamentadas. Com coerência e firmeza.

Investigador universitário premiado, professor muito apreciado pelos estudantes (não obstante a exigência estrita de rigor), cujas lições incluíam aulas de campo (no Jardim Botânico, pelos campos do Mondego, na Mata da Margaraça, no Paul de Arzila, no Gerês, na Serra do Açor…), prestava a cada um todo o apoio solicitado (dedicando-se mesmo a explicações, de biologia, de química…, pelas quais nunca cobrou nada a ninguém). Botânico dedicado, percorreu o país a pé, como investigador, como professor e como formador de professores. Depois percorreu o mundo. Despertavam-lhe interesse quaisquer seres vivos, dos mais ínfimos às árvores e animais de tamanho colossal. E as pessoas, claro, e os seus efeitos sobre o mundo natural, bem como benefícios e prejuízos decorrentes.

(Continua)

José Batista d'Ascenção

domingo, 7 de abril de 2024

Não há filhos como os meus, então os netos… (II)

Ao quarto dia, os meninos foram para as respectivas escolinhas, onde tomam o almoço e permanecem ocupados, de tarde, até à hora que os queiram ir buscar. Nós, escapámo-nos para Manhattan, para o «The Met Fifth Avenue», o «Louvre» (não sei se os norte-americanos se indignariam com a designação…) do «Central Park». A Lurdes escolheu as áreas a visitar: limitámo-nos a uma ala do piso 1: começámos pela arte egípcia e a seguir a arte grega e romana, até a fome dominar. Os restantes 90% do museu ficaram para outras oportunidades. Enchemo-nos de pizas num estabelecimento italiano da estação de metro do Calatrava (nada a ver com as «palmeiras» da gare do Oriente…) e regressámos para ir buscar a criançada. O resto da tarde foi em ambiente caseiro relaxante para eles e para nós, porque todos precisávamos e merecíamos.

Ao quinto dia mantivemos o esquema: deixámos os meninos na(s) escola(s) e voltámos a Manhattan, para visitar uma biblioteca maravilhosa: «The Morgan Library&Museum». A Joanina, em Coimbra, é uma lindeza, mas aquela não é menos preciosa, tem um acervo muito maior (imenso, antigo, variado e valioso) e, sobretudo, é um espaço aberto à frequência turística muito prático, acessível e confortável: deixar guarda-chuvas, casacos, mochilas, tomar café, repousar em bancos apropriados, usar cadeiras de rodas… Outra vez a limitação do tempo. O almoço num restaurante espanhol, o regresso, ir buscar os meninos, dar-lhes atenção: por isso fomos o resto da tarde para a piscina interior na base do prédio, devidamente aquecida. Todos ao banho, excepto eu, que prometi ficar sentado a ver e tirar as fotos. E assim se gastaram as energias para sossego e merecido recolhimento ao fim do dia.

O sexto dia teve um desenho parcialmente semelhante. Meninos na escola e os graúdos no museu do metropolitano em Brooklyn. Tudo desde há cerca de cem anos, com a maquinaria, a técnica, as ferramentas e os explosivos para construir os túneis sob o rio Hudson, as carruagens, os sistemas de bilheteira, as máquinas automáticas de cobrança e de “destrocar” moedas, desde então até hoje. Neste dia regressámos mais cedo, almoçámos e fomos logo buscar os meninos, já almoçados. E partimos, de carro, para o museu das crianças de Brooklyn. Aquilo é um mundo fantástico para pequeninos, de qualquer idade, e que impressiona sobretudo os adultos. Ficámos até à hora do fecho, momento de grande pena dos mais pequenos.

O sétimo dia foi o expoente máximo para mim. Novamente deixámos os meninos na escola e fomos para o Jardim Botânico de Nova Iorque. É um espaço fabuloso, pela dimensão (o Botânico de Coimbra é uma jóia em 13 hectares, o de NY estende-se por 100!), pelos espécimes, em número, diversidade, organização, identificação, e pelo cuidado com que tudo é tratado e se apresenta. Uma exposição de orquídeas do outro mundo, ocupando parte de uma estufa gigantesca (olhando, simplesmente, pareceu-me que cabiam dentro dela mais de dez como a de Coimbra). No centro do Jardim um edifício magnificente em estilo e tamanho, que é a biblioteca do Jardim Botânico, a qual só vimos por fora e que deve albergar muitas dezenas (centenas?) de milhares de volumes. Foram várias horas de uma corrida contra o tempo coroada com um prémio reconfortante: na secção dos narcisos encontrámos o belíssimo «Narcissus jonquilla var. henriquesii» (dedicado ao Professor Júlio Henriques da Universidade de Coimbra) com o nome de Portugal no canto inferir direito da etiqueta.

O regresso fez-se já com pena, era preciso arrumar as tralhas, comer qualquer coisa, afagar os meninos, que souberam não chorar na despedida e partir para o aeroporto.

Obrigado, queridos filhos e netos.

José Batista d’Ascenção

Não há filhos como os meus, então os netos… (I)

Este 2º período foi para mim muito desgastante. Estava a precisar de um interregno compensador e entusiasmante. Há meses que o meu filho mais velho, o João, tinha programado para nós, os pais, uma viagem a Nova Iorque, onde ele mora com a família. Ainda se pensou em o mais novo, o Filipe, também ir, mas os afazeres profissionais não lho permitiram.

Portanto, ficámos só sete: nós, os avós, o casal de pais e os três netos: o mais crescidinho, que vai fazer seis anos lá para o S. João, e os mais pequeninos a fechar três no final deste mês. O João planificou tudo com a mais extraordinária precisão e flexibilidade: onde irmos em cada dia e o que fazermos de modo a satisfazer os interesses de todos. A equação era difícil, mas foi resolvida com mestria.

O primeiro dia foi de reconhecimento do bairro, com demora no parque infantil do rio Este entre as pontes de Brooklyn e de Manhattan, os meninos muito hábeis nos apetrechos e estruturas e igual destreza e o cuidado suficiente nas bicicletas de cada um, nas ruas, sob o olhar atento dos grandes. O almoço foi caseiro e a tarde de brincadeiras e jogos, para os avós restabelecerem a vitalidade. A meio já foram ao telhado do prédio, pela mão dos pequeninos, apreciar o enorme espaço e estender as vistas entre a «floresta» de torres que furam o céu, muito acima do voo das aves.

O segundo dia foi igualmente conjunto, manhã de passeio na «Ilha do Fogo», no trilho que bordeja a praia, até ao farol (de enorme altura) e regresso. Os graúdos a pé, os pequenos de bicicleta. Ninguém deu parte fraca, as paragens necessárias e o piquenique merecido, com as gaivotas à coca de umas migalhas. A tarde foi ocupada em espaço interior no «Cradle of Aviation Museum» de Nova Iorque. Extraordinário como um espaço de enorme categoria histórica, técnica e científica pode atrair crianças pequenas e adultos de qualquer idade (quem duvidar que imagine qualquer deles no "cockpit" das aeronaves mais modernas ou no banco rudimentar dos primeiros planadores). Ali está tudo. A mim o que mais me deliciou foi o módulo lunar que desceu e levantou da lua na década de sessenta: um «aranhiço» tão espernegado, parcialmente envolvido em folhas de alumínio (para reflexão da luz, a fim de evitar o excessivo aquecimento no interior) que me fez comentar a falta total de aerodinamismo do engenho. Incisivo, o João logo (me) explicou que, não tendo a lua atmosfera, não há resistência do ar, nem atrito, pelo que a velocidade dos corpos se faz em qualquer direção sem influência da forma. Várias horas depois, os adultos mal podiam com as pernas, pelo que se sentaram numa secção na entrada/saída, essa só com sólidos almofadados para entreter os infantes, e foram generosos a deixá-los saltar o tempo que quisessem.

O terceiro dia foi ainda de todos com todos o tempo todo. Saímos para o Bronx, em visita ao Jardim Zoológico, com selecção de músicas infantis (algumas que eu não conhecia, mas que comecei a trautear, com notória mas tolerada desafinação). As minhas reservas sobre o conceito de jardim zoológico, muito influenciado pelo que fui vendo no nosso país (falta de espaço, bichos sujeitos temperaturas muito diferentes das dos seus habitats naturais…), desvaneceram-se ali. Apesar da imensa variedade, e da presença de exemplares vários de grandes dimensões, os animais estavam sem stress, porque a extensão dos espaços e o seu desenho os preserva das acções importunas dos humanos. Fiquei pasmo, com uma temperatura exterior bem “fresquinha” as girafas ficaram num espaço interior aquecido como se estivessem em África. Quem sabe e pode, pode mesmo. O mesmo para os outros bichos, ainda que fossem insectos, como as baratas.

(Continua)

José Batista d'Ascenção

sexta-feira, 29 de março de 2024

Política corrente: resolver problemas que não existem criando problemas que não conseguimos resolver.

Entre nós, teorias, normativos, burocracia, práticas e comportamentos emaranham-se sob um verniz de boas intenções aparentes, que tornam a vida das pessoas um inferno e desencadeiam turbilhões de novas situações irresolúveis ou quase. Neste fadário, uns poucos tiram proveito e proventos e a maioria não sai da cepa torta - aquele marasmo típico e desanimador.

É assim, da habitação aos bens públicos, da justiça à saúde, da produtividade aos vencimentos, da organização económica e social à acção política e da educação ao civismo.

Que utilidade teve o programa de apoio à habitação do anterior governo? Quantos portugueses serviu e quantos iludiu ou decepcionou? E agora, o que vamos ter?

Quando é que a justiça termina os processos dos poderosos e quando é que o ministério público pondera a espectacularidade televisiva das suas acções? Que descrédito resultou para uma e para o outro? E que prejuízo para os cidadãos e para a cidadania? E daqui para a frente?

A política de fecho de maternidades que benefícios trouxe e a quem e quantas grávidas (e suas famílias) prejudicou? E a confusão das urgências? Como vai ser, doravante?

A predação da banca e os enormes lucros que proporcionou em quanto extorquiu os cidadãos, particularmente os de menos rendimentos? Temos escapatória?

Que normas simples e claras para a escola lidar com a indisciplina e a violência crescentes? Quantos professores, alunos e funcionários s(er)ão vítimas? E que prejuízo para os cidadãos e a cidadania? Finalmente, alguém dará um pontapé em aberrações como o projecto Maia? 

Que benefícios resultaram da imposição de um (des)acordo ortográfico que vários países (de língua portuguesa) rejeitaram? Que dificuldades origina? Ninguém mexe naquilo?

Etc.

Por tudo isto e muito mais, Portugal é capaz de continuar a ser um país bom para emigrar. Velhos e novos que o digam.

Estamos condenados?

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 25 de março de 2024

Sol, saúde, solicitude e completude

Ante a Páscoa vêm os Ramos. E de novo se apressam vento e chuva. Soube bem a manhã soalheira de Domingo. Soube bem o café na esplanada, em companhia agradável, perante quem nem o silêncio pesa.

As árvores começam a cobrir-se de verde. E, então, aquele verde do meu (pequeno) diospireiro (que eu supus que morria, mas que ainda dá sinais de alguma esperança) e o dos carvalhos alvarinho – a minha árvore de eleição, que vou semeando e (trans)plantando onde e sempre que posso – é mesmo um verde reconfortante e esperançoso.

Eis senão quando surgem o frio e ameaças de chuva, que não podem ser mais do que passageiros, durem os dias que durarem.

A Primavera está aí.

E os abraços aos meus netos estão quase a poder acontecer.

É uma ressuscitação.

Boa Páscoa.

José Batista d’Ascenção

domingo, 17 de março de 2024

A “tretúlia” de que faço parte

Encontramo-nos a meio da manhã de Domingo e conversamos até à hora do almoço. Somos três, quatro, cinco ou seis, mas já fomos mais. Todos professores do ensino secundário aposentados, excepto eu, que continuo na labuta. O grupo reúne-se há vários anos, em cafés de ambiente simpático e propício. Já tivemos vários poisos, para variar o espaço e a ambiência. As conversas vão da política (segundo várias sensibilidades de gente moderada, incluindo os desiludidos que deixaram temporariamente de votar e os que não admitem abdicar da prática desse direito), ao ensino (área em que nos definimos como «vencidos do ministério da educação») e ao desporto, mais comummente o futebol, domínio em que sou (consensualmente) o mais incompetente (e pouco interessado, tirando alguma atenção aos gastos faraónicos dos clubes, às suas monstruosas dívidas e à necessária corrupção, nunca resolvida).

Em duas horas de conversa percorremos o mundo, sentenciamos instituições, organizações e pessoas, de modo expedito e sumário, às vezes de modo consensual, outras nem por isso.

O decano do grupo é António Bastos que, com a sua memória precisa, faz o contraponto entre o que foram os tempos desde a ditadura e da guerra colonial (que fez, na Guiné) e o que é a actualidade, parecendo que o país tem certa apetência pelo regresso ao autoritarismo e à falta de liberdade de antanho, com a escola que temos a contribuir para isso.

O A. Antão é o homem das «finanças», que esclarece sobre impostos e poupanças. E também se pronuncia veementemente sobre desporto. É ainda uma «autoridade» em filatelia. Para além disso, dá explicações gratuitas e claras a muitos jornalistas (de jornais de referência) sobre léxico e gramática, que nem todos nem sempre agradecem, embora muitos o façam. Relativamente à imprensa regional e local desistiu, por não ter tempo nem braços para tamanha tarefa.

O Toni R., o D. Loureiro e o L. Guerreiro faltam e aparecem imprevistamente, nunca sendo os primeiros a chegar. O Toni, senhor de humor fino, quando chega recebe sempre com indulgência a pergunta dos presentes sobre se não precisam de se levantar, logo, permanecem sentados. O Loureiro é um homem das pedagogias e das viagens e um conhecedor do futebol, que praticou, dando opiniões a propósito, com ponderação e moderação. O Guerreiro, muito ocupado com as edições dos manuais escolares da equipa a que pertence, aparece quando pode e recorda sempre saborosos trechos das suas vivências cívicas e escolares. Veja-se este exemplo: Nos anos seguintes ao 25 de Abril, havia no Minho certa senhora, já com alguma idade, que nunca tinha visto o mar. Por imperativo de generosa solidariedade, cavalheiros disponíveis levam-na gratuitamente até à praia de Esposende. Chegados ali, a anciã põe a mão em pala, fixa os olhos no horizonte líquido e exclama: «Ai meninos, que puta de poça!»

Pelo meu lado, bastante ignorante de todas as matérias, dedico-me (mais) a ouvi-los e a apreciar o humor de cada um, o que faço com muito gosto.

José Batista d’Ascenção

domingo, 10 de março de 2024

O quadro político mudou em Portugal – cautela com o extremismo

Como era previsível, o xadrez político no país alterou-se substancialmente. O futuro não é claro e preocupa. A mim, o que se me afigura mais problemático é o peso eleitoral da extrema-direita. Gostaria que o mundo e a Europa não caminhassem para situações explosivas, que degenerem em (mais) guerra, elevado custo de vida e sofrimento. Portugal, com a sua débil economia e resiliência social, ficaria em sérias dificuldades.

Peguei há pouco num livro pelo qual não me tinha interessado antes. O título é doce: «Chocolate», a autora chama-se Joanne Harris e a edição é de 2006 (Asa). Em tempos de ódio, detive-me em várias passagens de conteúdo tristemente actual: Na página 56 um personagem cheio de bílis refere os «ciganos que expulsámos das margens do Tannes. […] como levou tempo, quantos e quantos meses de queixas e cartas infrutíferas até tratarmos do assunto com as nossas próprias mãos. […], os sermões que eu preguei! Uma porta atrás da outra foi-se fechando para eles. […]. Alguns […] lembravam-se dos ciganos anteriores e das doenças e dos roubos e da prostituição. […] por fim conseguimos desalojá-los a todos […]». Na página 75, continua […] «os ciganos do rio espalham doenças, roubam, matam quando conseguem escapar.» E na página 104, mais do mesmo «É deixar os ciganos entrarem-lhe em casa e Deus sabe o que pode acontecer-lhe. Valores pilhados, dinheiro roubado. Não seria a primeira vez que uma senhora de idade era agredida ou morta por causa dos seus escassos bens.»

Chega de amostra. Chega. Trata-se de um livro, mas alerta para um problema de xenofobia que está a ser plantado no nosso país. E adubado. E regado com demagogia.

A causa dos males do país não está nos ciganos, nem nos pobres nem nos deserdados da sorte.

O caminho é perigoso. Eu recuso condescender, quanto mais ceder.

José Batista d’Ascenção

sábado, 9 de março de 2024

Menos de “cem éme èle” – a eurovisão não nos merece

Acabo de passar hora e meia frente à TV1. Não sei como, hoje deixei-me ficar. E não desgotei do que vi. Os músicos são jovens, cheios de sonhos, e as músicas soaram-me bem, pese as minhas dificuldades de audição fina. Creio que haveria ganho em evitar o desperdício de pano em várias das vestimentas, mas gostos são gostos. E da indumentária dos apresentadores gostei, confesso. Além disso estiveram moderados e breves nos comentários, o que convém a indivíduos como eu. O Palmeirim ainda inventou nova designação para a simbologia das medidas de capacidade, mas não será mal que se propague. Retirei-me imediatamente depois das actuações.

Não sei quem vai ganhar, nem isso me interessa. Felicito os jovens artistas. Vá quem vá ao festival da Europa, naquele «reino» não deslustrarão. Podem estar à vontade.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 7 de março de 2024

Jornalismo e política

Temos jornalistas muito bons. Precisamos, contudo, de ter muitos mais. Deixo de lado insuficiências no léxico e na gramática, que são cada vez mais (notórias) e condicionam (muito) a função. Nesse campo, a escola (e o estado a que chegou) tem importância (e responsabilidade) não despicienda, uma espécie de “pecado original” de base. Mas isto dava um tratado.

Há, depois, as condicionantes e a complexidade dos tempos que correm. Os instrumentos técnicos e as redes sociais espalham repentina e alargadamente avalanches de conteúdos verdadeiros e falsos com a mesma credibilidade. Não se compram jornais nem se pagam notícias, pelo que a capacidade financeira depende da publicidade, motivo por que convém dar às pessoas o que elas querem ver e ouvir. É mau caminho.

Mas há também o rebaixamento dos jornalistas com carteira profissional que, em vez de interrogarem os políticos, por exemplo, e de os confrontarem com factos relevantes, lhes dão o tempo e a palavra em que veiculam o que lhes convém para se manterem na retina dos espectadores e prepararem o “terreno” para os interesses que perseguem ou defendem, seus ou dos seus correligionários. Há aqui uma espécie de denegação da função.

Noutros casos, os jornalistas focam-se nas suas opiniões, crenças ou desejos, o que é legítimo em colunas editoriais ou de análise, se não deturpam os factos subjacentes. Porém, tratando-se de notícias, estas deviam sê-lo de forma objectiva, clara e fundamentada, deixando para o leitor/ouvinte/espectador a extracção de interpretações e conclusões.

Degradantes, a meu ver, são as chusmas de “repórteres” que perseguem pessoas caídas em desgraça, bombardeando-as com as perguntas mais idiotas ou mesmo ofensivas. As escolas de jornalismo deviam cuidar seriamente da matéria…

Não sei ainda se haverá antídoto para os que se esfalfam à cata de crimes de faca e alguidar, em que se demoram eternidades, até à saturação que faz passar para horrores do mesmo jaez, com iguais objectivos.

Não são problemas fáceis de resolver, mas convém tentar.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Vazios da maré de propaganda eleitoral

Fecham-se a breve trecho 50 anos de democracia em Portugal. O país é hoje muito diferente e melhor do que era antes do 25 Abril libertador. Não há comparação possível: nas cidades, nas aldeias, no litoral, no interior, nas vias de circulação rodoviária (em prejuízo criminoso e estúpido da ferrovia), nos indicadores de saúde (sim!, na mortalidade infantil, na esperança média de vida, nas grandes estruturas hospitalares…), na generalização das pensões (ainda que pequenas), nas habitações, nas redes de energia, de água e de esgotos, na pavimentação das ruas, etc.

Onde falhámos, então, e muito? Falhámos, por exemplo:

- na “justiça”, que não é célere nem justa (também por isso mesmo);

- e na “educação”, que é um cancro sem terapia adequada, principalmente porque a escola pública serve ideologias e interesses instalados, de modo errado e uniformemente acelerado, sem possibilidade de os professores ensinarem os alunos e de os cidadãos escolherem para os seus filhos escolas com metodologias diferenciadas (aquela coisa dos «projectos educativos» que temos é, basicamente, uma treta). E precisam-se exames sobre conteúdos programáticos bem definidos e respeitadores do esforço honesto dos alunos e do trabalho dos professores.

Ora, sem justiça e sem educação a democracia não é uma democracia plena.

Vamos, por isso, comemorar as oportunidades perdidas, por incompetência própria.

Os que nos deram a liberdade merecem (a minha eterna) gratidão, mas não os que libertinamente degrada(ra)m as possibilidades de usufruirmos dela.

Agora, a campanha eleitoral é preocupantemente vazia sobre estas (e outras) matérias.

José Batista d’Ascenção.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

A política (portuguesa) em comentários de comentários

Mea culpa. Vou procrastinando. Os motivos são a aversão (que sinto) pela generalidade dos políticos que temos. Obviamente, não posso colocar-me nalgum nível de «assepsia» donde me pronuncie sobre os agentes «feios, sujos e maus» que só procuram o poder e a fama. O defeito também tem que ser meu. Assumo-o. Portanto, preciso (forçar-me a) dedicar-lhes (mais) atenção. E até nem será difícil, porque os tempos de debate nas televisões são curtos. Curtos e pobres (pelos excertos que vi de alguns…), não só por culpa dos políticos, que as perguntas fazem-nas os moderadores, jornalistas que se querem bem preparados e incisivos, como, de modo geral, são, mas é preciso tempo para que se façam todas as questões pertinentes e se exija as devidas respostas.

O que é menos suportável (e, para mim, algo escandaloso) é o muito tempo que se dá, depois dos debates, a supostos especialistas da análise política. Como se eles tivessem alguma capacidade especial e nós, o público, fôssemos lerdos. O tempo, a desnecessidade, a subjectividade e a ideologia destes comentaristas afastam-me das suas ladainhas que, às vezes, tendem para uma espécie de «luta de galos». Preferia-os em versão escrita, seguramente mais ponderada. Em qualquer caso, pouco lhes ligo.

Ainda menos agradável é ter políticos profissionais com interesse manifesto nos mais altos cargos de poder (Marques Mendes, Paulo Portas, à cabeça) a fazer prédicas semanais nos canais de televisão. Fazem a sua propaganda mais ou menos disfarçadamente, ao mesmo tempo que menorizam os jornalistas que lhes servem de «ajudantes de palco». Pensarão, aqueles dois, que conseguem imitar o comentarista (intriguista-mor, que em tempos foi) Marcelo Rebelo de Sousa? Por mim, não creio.

Ou seja: pairando sobre a qualidade sofrível dos políticos comuns, que nos saem em sorte, temos outros uns furos acima, a disfarçarem-se de analistas isentos e desinteressados.

Mas não são imparciais, nem eles nem as televisões que os promovem.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Nós como instrumento e produto das redes sociais

Leitura perturbadora, a do livro «Dez argumentos para apagar já as contas nas redes sociais», de Jaron Lanier («Ideias de Ler»). Escrita crua, directa, frontal. Argumentos de quem conhece o âmago das redes digitais, porque esteve na sua origem, pertence ao meio e acompanha o seu desenvolvimento e os seus resultados (produtos).

As plataformas digitais destinadas a dar lucros (colossais), não obstante o seu carácter (aparentemente) gratuito, assentam em algoritmos que recolhem, ao segundo, os dados, as preferências, os gostos ou as aversões de cada utilizador. E o que mostram a cada um de nós (o «feed») é seleccionado, direccionado e ajustado a partir dessa informação (monumental) estatisticamente dirigida. Ninguém vê nem sabe (exactamente) o que cada um dos outros vê. Os algoritmos trabalham permanentemente com infinita «paciência», zero cansaço e extraordinária eficácia.

Como os instintos e impulsos negativos vêm à tona muito facilmente, esses algoritmos usam-nos, mais do que às qualidades, para manipular e tornar legiões de utilizadores (reais ou virtuais) sujeitos activos (muito diligentes) dessa manipulação. Ou seja, os dispositivos subjacentes às redes sociais puxam globalmente os seres humanos para baixo. A sociedade, em geral, perde. As influências negativas afectam todos os aspectos das relações humanas, da intimidade à política (como terá acontecido nas votações que elegeram Trump, Bolsonaro e outros).

E, diz o autor, as pessoas dependentes das redes sociais tornam-se, ironicamente, mais solitárias e menos felizes.

Crente nas possibilidades da tecnologia para melhorar as condições de dignidade e liberdade humana, Jaron Lanier defende que, para já, a melhor medida contra o aprisionamento pelas plataformas digitais deste tipo é cada um de nós abandoná-las (a este propósito, refira-se que muitos dos filhos dos «gurus» de «Silicon Valley frequentam escolas Waldorf, as quais, de uma forma geral, proíbem equipamentos electrónicos». (p. 22).

O livro desconcerta, mas alerta.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Discrição, realização pessoal e liberdade

O ser humano não pode viver só. Mesmo os amantes da solidão não dispensam a sua teia de relações psico-afectivas que, no isolamento, ainda vivem com maior intensidade.

Sem (os) outros não somos. Precisamos de ver e de ser vistos. E suspeito que precisamos também de apreciar e elevar uns e de desconsiderar e rebaixar outros, implícita ou explicitamente. Não é bonito, mas é geral e intemporal. Poderíamos viver sem “ódios de estimação”? Seria desejável, mas não vejo como torná-lo possível. Confirmam-no as religiões, a história, a política, o desporto, as relações sociais, as interacções familiares e o percurso de vida de cada um. Esconder estes factos não (nos) adianta muito. Saber como minimizá-los e aos seus efeitos seria conveniente, embora difícil, muito difícil.

As redes sociais potencia(ra)m a mais drástica exposição de dados pessoais, dos instintos e das tendências pessoais (generosas, bem intencionadas, egoístas, exibicionistas, consumistas, políticas, religiosas ou outras). Surgem depois tentativas (compensadoras?) de retrocesso sem sentido, como as de ocultar as faltas dos alunos às aulas ou mesmo a publicação das suas “notas”, a pretexto de uma reserva da privacidade que pode abrir caminho a práticas pouco honestas. Contradições que não alteram o sentido do fluxo e da pobreza relacional em marcha.

As grandes bases de dados “sabem” muito mais de cada um de nós do que nós mesmos: seja a da autoridade tributária, sejam as (dos proprietários) das plataformas de interacção digital.

Nunca vivemos melhor (globalmente), longe disso, mas somos cada vez menos donos da nossa vida. Mandam em nós os algoritmos informáticos, em proveito (das fortunas) dos poderosos que servem.

E somo nós que, diligentemente, colaboramos expondo e fornecendo os elementos da nossa vida e da nossa intimidade.

Até onde iremos? E com que prejuízos e vantagens?

Voltarei ao tema.  

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Pela ciência. Por quem a defende. Por nós.

«Leio sempre com muito interesse os artigos de David Marçal versando sobre quaisquer assuntos do domínio da ciência, por contraponto com a pseudociência e as notícias falsas, as quais misturam meias-verdades com falsidades, com motivações que vão da economia, à ideologia e à política.

Foram precisos muitos séculos, o brilhantismo ou o génio e, também, a dedicação de muitas pessoas para atingirmos o nível de conhecimentos científicos que nos permite níveis de vida com um grau de qualidade que nunca se tinha alcançado.

Porém, surgem no horizonte perigos vários, particularmente o falhanço da escola e as limitações da comunicação social séria e isenta, que fazem disseminar a ignorância e facilitam a difusão de conteúdos sem rigor nem verdade.

O caminho da escuridão não augura nada de bom, da alimentação à saúde, ao modo de vida, à justiça e ao bem comum.

Precatemo-nos a tempo. A bem de todos.

Muito obrigado a David Marçal e a outros como ele.»

José Batista d’Ascenção

Adenda: Texto publicado hoje, sob a forma de carta, no jornal «Público», com o título «Pela ciência».

sábado, 27 de janeiro de 2024

Raízes do que somos

Deu-me para ler o livro «Entre o Céu e o Inferno», de Marco Oliveira Borges, da editora «Crítica», sobre as condições de vida nas naus da expansão portuguesas, mais concretamente a «Carreira da Índia», entre 1497-1655.

Estava curioso sobre diversos aspectos, como as linhas orientadoras fundamentais da empresa histórica, o relacionamento entre os embarcados, dos mais poderosos aos mais humildes, e certos hábitos diários, desde a prática da higiene diária ao recurso ao canibalismo. Sobre canibalismo, respigo …«algumas pessoas da nau São Bento, em 1554, já em terra, sentiram necessidade de comer cafres para sobreviver. […] todavia, o contrário também acontecia, com os sobreviventes portugueses de naufrágios a temerem pela sua vida na costa oriental africana, ou até mesmo no litoral brasileiro» (p. 134). A fome e a sede obrigavam a «beber água do mar e urina, comer couro cozido, sola de sapato, serradura de madeira, ratos, papel ou até mesmo cartas náuticas», tornando estas práticas «hábitos relativamente frequentes […], não se podendo «esquecer igualmente a carne pútrida dos cadáveres humanos (p. 139). Acrescente-se que «estes aspectos decadentes não eram exclusivos dos navios portugueses» (ibidem).

Sempre me pareceu que a tavessia trans-oceânica com o fito na Índia e possíveis transacções comerciais correspondia a objectivos muito determinados, por obra de gente com muita ambição, suportada em mareantes de grande saber e capacidades. Reforcei essa convicção. Porém, o incumprimento das normas e determinações régias, face aos interesses, cobiça e poder de capitães, pilotos e mestres das naus não surpreendeu. Nem foi surpresa a desorganização no recrutamento da marinhagem e dos soldados, os quais, em muitos casos, nunca tinham andado no mar. Da prisão do Limoeiro saíram, para o efeito, muitos criminosos, cujo cadastro e procedimentos os tornavam temíveis e nada recomendáveis. 

Uma agravante de tomo era a imensa ignorância que atribuía aos pecados de tripulantes e passageiros a violência das tempestades, a acção de monstros marinhos, os ventos contrários e as calmarias, o encontro com navios piratas ou o aparecimento e propagação de doenças (como o escorbuto).

Nas naus, procurava-se curar qualquer doença recorrendo a mezinhas e rezava-se para obtenção dos benefícios de Deus, para esse e para todos os males, na crença de que eram concedidos aos confessados e seguidores das práticas religiosas.

As relações entre todos facilmente descambavam na mais brutal violência, particularmente dos mais fortes sobre os mais fracos, como era o caso dos escravos. Os (considerados) culpados podiam ser enforcados, decepados de algum membro ou lançados ao mar (como também o eram os livros profanos, para não tornarem mais pecadores os poucos que os sabiam ler…). O poder e o abuso do poder assentavam igualmente na violência, fazendo valer estatutos sociais, de nobreza ou de função; os abusos também eram motivados por interesses materiais ou pela satisfação de instintos corporais, desde a fome ou a sede, ao vício do jogo ou aos apetites sexuais (a que não escapavam alguns membros do clero).

Valeu a pena, a leitura.  

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Saudades de amanhã

A Primavera não demora e, antes de chegar, dias bonitos, luminosos e tépidos a farão desejar ainda mais. O calendário está (a ficar) do nosso lado, como acontece ciclicamente. A disposição de espírito, dependendo de muitos factores, particularmente do estado de saúde, não é alheia à luz e à paisagem, como se sabe.

Do modo como sinto, não tenho lugar para as saudades de primaveras passadas (cronológicas ou outras) e esforço-me por atenuar as lembranças dos invernos da vida pretéritos, dos mais recentes aos mais antigos.

O que (me/nos) aconteceu de bom já foi, mas, recordá-lo, reconforta e fortalece a convicção de que mais – e melhor, quem sabe? – pode acontecer, particularmente no que depende de nós. Suponho que um motivo fundamental da “sorte” reside aí. E é preciso construir a “sorte”, o que dá muito trabalho, e pode não ser suficiente. Por falar em trabalho, é uma sorte tê-lo (outra vez a sorte) e poder realizá-lo com gosto. Claro que há sempre as condicionantes da vida pessoal, desde as qualidades e defeitos, nossas e dos outros, à cidadania, à política e ao governo do país. E tudo isso exige esforços hoje e amanhã, sem endeusamento (e correlativa adulteração) das imagens de tempos idos, pela memória do que desejamos que tivessem sido.

De resto, o país é melhor, muito melhor, do que há cinquenta anos. Que nos sintamos mais ou menos felizes do que supomos que aconteceria então, isso depende da psicologia de cada um.

A educação em casa, primeiro, e na escola, depois, devia ser eficaz nesta matéria.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

A passagem do tempo e a vivência interior da amizade (no meu caso)

Desde menino trago na mente e no peito uma quantidade de pessoas, parte das quais não vejo, nem com elas falo, desde há décadas. Isto é assim e pesa-me. Tanto mais que toda essa gente é muito importante para mim, o que aumenta o meu sentimento de culpa.

São os que sempre estimei e admirei, por terem as qualidades e as capacidades que gostava de ter e não tenho. Os que procediam e procedem rectamente, em obediência a princípios que partilho. Os que são de uma bondade e generosidade como eu gostava de ser e que naturalmente persistem na prática da compaixão e do bem comum.

Estas características só dispersamente as encontrei em familiares consanguíneos, com excepção do meu avô materno, que guardo como figura inspiradora. Os meus filhos são outra conversa, mas aí devo ser muito parcial, pelo que não me pronuncio.

Penso, aliás, que as famílias são como as pessoas: têm do bom e do menos bom, pelo que tomo cada indivíduo pelo balanço do que é e do que faz. Não endeuso ninguém, nem tenho ídolos, mas há aqueles que admiro e estimo profundamente, sendo que alguns deles nem sequer o sabem.

Este grupo engloba os que me dirigem mensagens de carinho, de conforto e de esperança, sem que algumas dessas pessoas me conheçam pessoalmente, nem eu a elas.

Esta bondade das pessoas boas é o bálsamo que encontro para as minhas decepções com o mundo, em que fracamente confio.

A elas estou grato, porque nelas e no seu exemplo, por vezes muito discreto, reside a minha esperança.

A elas envolvo num abraço amigo, solitariamente vivido.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Em quem (vou) votar? (III)

Sobre os pequenos partidos, do 5º ao 9º, segundo a sondagem referida na figura ao lado.

A IL, do que percebi dos seus líderes (politicamente melhor o anterior do que o actual) e do candidato que apresentou à presidência da república, para além de visibilidade e poder, não sei bem o que pretendem. E também não sei se eles sabem.

O partido PAN é o palco da sua líder, uma máquina de falar que parece tratar bem da vida (dela), enquanto a organização que dirige se envolve em causas como a de reclamar a justificação de faltas ao trabalho devido a luto por animais de estimação, possibilidade que, deixando de fora prioridades orçamentais, dificilmente teria aplicação universal justa, porque há muitas pessoas, particularmente as mais pobres, que, tendo animais (dos mais diversos…), não fazem registo deles. Mas, que (lhes) interessa isso?

O PCP tem um líder abnegado, que sucedeu a Jerónimo de Sousa, homem firme, simples e simpático. Para além da ideologia, que não resultou bem em tempo algum, em nenhum lugar, ambos me deixaram sem pinga de sangue quando consideraram a invasão da Ucrânia uma «operação militar especial». Álvaro Cunhal era ortodoxo como um rochedo, mas tinha uma qualidade intelectual fora de série, tão elitista como a sua cultura, o que não devia ser crime, sob qualquer ponto de vista. Firmes, os militantes do PCP caminham para a extinção natural, dá-me ideia. O que (também) é um direito deles.

O Livre tem um líder com um discurso coerente e algumas ideias. Mas como esquecer aquela escolha para deputada de Joacine Katar Moreira, que se achava fadada para o cargo, que exerceu excessivamente centrada na exibição das suas tendências pessoais, confundidas com algum referencial de ética e valores extensível a todos?

O CDS parece jazer morto e enterrado e ninguém lhe chora o finamento. Justamente, parece-me, atendendo ao seu percurso evolutivo e à diversidade incongruente de chefes (saudade de Lucas Pires). O líder actual talvez ainda não tenha percebido que não o é. Por isso, procura salvar-se numa coligação, que não lhe diminui a subalternidade. No mínimo ficará como deputado, nacional ou europeu, quando já devia ceder o lugar a outro. Está cheio de sorte.

Chegado aqui, constato: o sistema político-partidário é o que é e como é por falta de cidadania exigente de cada um de nós, eu incluído.

Quanto à questão em epígrafe, permaneço na dúvida.

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Em quem (vou) votar? (II)

Sobre os 3º e 4º partidos nas intenções de voto, segundo a sondagem a que a figura se refere.

O terceiro partido em intenções de voto, a fazer fé nas sondagens, é um horror, de ideias idênticas às de Trump, Bolsonaro ou Milei e não destoando de Putin ou Maduro. Portugal não está bem, mas não é de um Salazar(zinho) que precisa. Acontece que o seu líder é um demagogo muito hábil e sem escrúpulos, o que me parece perigoso. Sape, gato!

O bloco de esquerda, que sempre teve personalidades de valia intelectual (Louçã, Marisa Matias, Mariana Mortágua) navega com pouca lucidez em questões supostamente fracturantes. Recordo um seu quadro que, um dia, numa entrevista de jornal, se orgulhava de, no seu tempo de estudante, ter conseguido que os sanitários de professores da sua escola passassem a ser usados pelos alunos. O que logo me lembrou os meus colegas docentes que, como eu, envelhecidos e fragilizados, nem dos mictórios podem servir-se com os cuidados e o vagar necessário, porque pode haver alunos que entram por ali adentro, abrindo as portas a empurrão, molhando o chão ou esfarelando papel, e saindo indiferentes ao dístico que, à entrada, informa que aquele espaço é (seria) para professores. Um visionário que ficou na adolescência, aquele militante. Nem falo daqueloutro que, muito esquerdista na teoria, conseguia bons rendimentos no negócio de alojamento local em Lisboa, contrariando a filosofia do partido.

Mariana Mortágua sabe de economia. Coisa diferente é saber se a política real, com pessoas concretas, poderia levar à prática certas ideias teóricas… Ora, não se conhece lugar onde isso tenha acontecido com sucesso.

José Batista d’Ascenção

domingo, 7 de janeiro de 2024

Em quem (vou) votar? (I)

Sobre os líderes dos dois maiores partidos do espectro político português, de que sairá o novo primeiro ministro.

O secretário geral do PS e o presidente do PSD inspiram(-me) pouca confiança.

O novel líder do PS, impetuoso e voluntarista, em tempos, propôs que se ameaçassem os credores de não lhes serem pagas as dívidas, pondo-os a «tremer»; enquanto ministro, autorizou, via redes sociais, uma indemnização a uma «girl», que saiu de um cargo apetecível na TAP para ir ocupar outro porventura mais apetecível no governo, e «esqueceu-se» de que tinha dado a dita autorização durante o tempo todo em que as circunstâncias o não obrigaram a recordar-se. Acabaria por abandonar o governo na sequência de despacho pessoal sobre o famigerado novo aeroporto, que obrigou o primeiro-ministro a revogá-lo de imediato, parecendo, dessa vez, que morria politicamente. Escassos meses depois começou a ressurreição que entusiasmou os correligionários do aparelho. O homem é determinado, mas preocupa os que, como eu, associam certas impetuosidades à lembrança do ex-primeiro ministro Sócrates, que conduziu o governo do país, durante anos, de modo similar àquele que usara para obter um diploma académico de engenheiro técnico, e queixando-se, desde a sua queda política, de ser um perseguido da justiça.

O presidente do PSD esforça-se sem chama e sem carisma; é involuntariamente secundarizado pelo seu «pai político» mais antigo, quando este lhe indica o caminho; vive incomodado com a popularidade do governante que foi «além da troica», cujas medidas não pode assumir nesta altura; chamou «pipis» aos adversários, ele que mora numa habitação com seis pisos (será uma casa «pipi»?); e viu-se atarantado quando um seu próximo partidário, acusado de corrupção, tardava a afastar-se da vice-presidência da bancada parlamentar do PSD. Ele sabe que o seu partido “canibaliza” presidentes a um ritmo voraz. Não adivinho se a glória dele está para vir ou se nunca virá, mas não creio que nos pudesse ou possa levar longe nem bem.

Dava os dois – Santos e Montenegro - pelo preço mínimo: o favor de os levarem para onde não dessem prejuízo.

José Batista d'Ascenção